sexta-feira, 19 de junho de 2020

CRÔNICA: UM SONHO

Um sonho

        Como se de repente a noite fosse uma sombra que se elevasse em silêncio e parasse fria sobre as águas ele sentiu-lhe o peso total. Estava como um lavrador com as sementes fechadas nas mãos. Ali elas cresceriam implumes e germinariam entre os espinhos. Achou que pensara que fosse ele quem estivesse olhando aquelas águas, mas logo compreendeu que na imobilidade geral que se impunha sobre todo o mundo ele não poderia estar dentro das coisas observando-as de fora. A menos que ele estivesse não-dentro. Mas e se quisesse falar? Ah! se quisesse falar com palavras seria tanto o esforço que sua saliva secaria e não haveria húmus para que as frases crescerem. Assim não sendo nenhuma verdade sua mudez, sempre estava impedido de chamar as palavras e arquitetá-las numa fala completa e audível. Onde essa cantiguinha? Que cantiga que não se ouve? Só os cristais brutos e frios do silêncio estavam reluzentes. Então todos calados? Era ele, eram suas irmãs, era sua mãe. Mas todos esperavam. E o medo transia e era expectante. Alguém curvou-se e o dia era luminosos e claro. Alguém olhou para cima e havia um céu amplo e iluminado. Alguém pisou a terra e estava sólida e segura. Quem se aproxima? Parou e escutou. A mãe olhava dentro das cinzas apagadas e o fogo estava frio e o teto e a parede da casa estavam escuros da fuligem mais antiga. Era real isto que era? Ele compreendia que tinha medo e o medo o deixava ficar estático e finito. Voltou-se para si, mas descobriu que ele apenas parecia que pensava. Mas se ele pensava então tinha mãos e poderia estendê-las para frente numa ânsia pura de tocar, de pegar o que fosse bruto e táctil. A mãe, ele e as irmãs. Tudo olhando para frente. Tudo apanhando o que não havia pela terra. Tudo ouvindo o céu uniforme e o dia, uma paisagem branca incolor. E ar que faltava. Se eu pudesse respirar. Mas era se eu pudesse respirar aqui dentro. Com as mãos seria fácil de erguer uma camada de terra e respirar com alguma força. Assim ainda sobreviveria, mas ainda teria medo. Tudo então completava-se nisto – Ele estava ali porque ainda tinha tanto medo. E era um medo curvo que crescia para fora e o crestava como uma folha que cai dentro das chamas. Primeiro ele estalava como a folha, depois ele ardia e cheirava a clorofila queimada. Como na folha nele cresciam bolhas escuras nas pontas e na superfície queimada. Se não tivesse mais como sair dali ele não se perdoaria e nem poderia voltar. Afinal que era tudo isto? Não era um sonho? Sim que era, ah! era isto. Faltava-lhe ar? Acordasse. Ele veria como tudo aquilo se esvaneceria como nuvem depois de grossa chuva. Antes era a necessidade de pôr ordem para poder pensar com tranquilidade se lhe sobrasse algum tempo depois que houvesse uma cantiga irreal. Ouvia que havia o sol e que com o sol vinham as sombras. Que as sombras eram o fruto crescido nos pontos sem sol e que a noite era um vasto campo sem sol coberto de sementes guardadas na mão fechada. A mãe providenciara o fogo. As irmãs vinham com as frutas. Mas ele que era o inútil pensava. Onde começou isto? Como eu não sei onde começou então não existe nenhuma flor dentro dessas sementes. E o que ele tinha eram duas mãos vazias e a sensação de desconsolo e abandono. Mas se tudo de repente começa a ser real então estou perdido. Como regresso para a mesma sombra de onde vim antes? Longos são meus dedos para arrastar-me nesta terra. De onde vim não há memória e eu apenas compreendo que acho que estou pensando e que meus pensamentos são relutantes e já vêm completos até mim. Se ele vem estou perdido. Mas a casa não está vazia. Não mãe. Nem as meninas. Mas quem? Eu não posso te dizer isto. Se eu tomo essa coisa e a faço real e fácil não sei se sobrevivo. Posso passar por aqui e depois voltar? Vim por esta estrada, volto por este caminho. Eu caio, eu caio, mas é nas pedras que eu fico. É nas pedras que eu esqueço minha natureza e me sucumbo. Vim para cá, posso voltar como já pensei e a recusa de, não é o que eu quis. Vejo minhas mãos, vejo meus pés. Minha cabeça é o que está ausente. Então era isto desde o princípio. Sem minha cabeça eu não tenho orientação e voo para fora. Nesse voo eu nem mesmo abro minhas asas. Então ele veio e sentou-se. Mas onde sentara-se que eu não tinha nem mesmo visto? No ar? Sob a sombra? Que tinha uma cantiga que se cantava, ele podia dizer que sim, pois era real e escura. Só havia mesmo um lugar seguro. Dentro dele e de olhos abertos pensando claro no meio do escuro da luz apagada. Como começar a sair lá dentro sem temor das folhas que caem? Como tomar nas mãos a pedra, pô-la na boca e vir andando para fora com a naturalidade do pensamento tranquilo? E a mãe? Onde ficaria a mãe depois de tudo isto? Se acabasse com o que vinha acontecendo mesmo as irmãs se desmanchariam e o que ele teria era apenas o crivo real que o ajudava a escolher os fatos e o que ele desejava. Então precisou achar que pensava que poderia chorar. Daria a volta na casa e o veria de frente, sem previsão ou sustos. Ele era um ser e não tinha medo de outro ser. Mas por que mentia tanto a si? Tudo estava como ele tinha deixado no começo. Apenas não se via mais as sombras, a cantiga e a sensação de sementes nas mãos. (Abandono!) Queimou as pontas dos dedos, mas ele sabia que era somente uma sensação de sonho e quando acordasse não doeria tanto. A mãe que era uma mulher triste e sem expressão diante dele com a tarde sumindo. As irmãs eram coisas mudas e inerentes à irrealidade total que ele concebia dentro das sua realidade de ar. A única coisa que era viva era a que ele mais temia. Depois que tudo isto tiver terminado eu sei que não sentirei nenhuma dor, nem mesmo a dor aparente. Vou dar a volta na casa. Paredes rachadas onde se escondem cabeças de lagartixas lixosas. Dentro de cada greta enorme aranha que me olha em silêncio com seus inumeráveis olhos escuros. Galinhas no monturo. Caco de vidro na moita de erva-cidreira. Lagarto comedor de ovos. Flores de fedegoso. Vargem de fedegoso. Galho seco de árvore morta. E eu. Eu que me recuso. Era nesta casa? Quando? Agora? Nunca que eu quisesse voltar para cá. Mas nunca que eu quisesse isto mesmo. Não vim, foi que me trouxeram sem prevenir-me disto. Eu um homem e outra vez feito menino. Vou com ele que é meu pai. Então é ele. É este que está vivo e me chama incessante. Eis que não o vejo, mas sua ausência é precisa e é um fato agora. Estou confuso e a casa começa a me parecer real como era antes. Vem meu pai. Dele tenho medo. Desse touro valente. Me joga no chão. Me pisoteia. Me cobre com seu olhar tonante e força anelante. E sinto-o em mim. Está sobre mim. Oprime minha vida. Por isso mãe tão infeliz. Por isso as irmãs tão longe. Eis meu pai, a totalidade que avança, se estende completa, total e infinita sobre meu ser. A noite que é ele vinha e tomava-lhe os sonhos. Vinha com suas mãos vastas enormes. Cobria-o. Impunha-o. Mesma morte experimentada sempre, sempre. Quem era então o pai? Era o sonho que sempre vinha. Era o medo, era o medo paralisante. Mas e se ele pudesse acordar antes que fosse? Dar a volta na casa. O pai estava do outro lado. Descer para o rio. O pai estava na outra margem. O pai estava dentro do rio, tomando banho de rio e ele que o viu. Viu o pai. O corpo do pai. Era o corpo do pai. Não era como o seu. Era o corpo que crescia nele. O corpo escuro do pai. Glória da força. E ele ficou olhando o que via. Teve medo, mas sentiu que tinha que ficar olhando enquanto via. Aonde o pai tão bonito? E o pai era um ser. E o pai era todo o ser possível. Dentro do pai ele principiara. E ele via que o pai era a virilidade hostil e que ele era fraco. Um homem que era barro, que era aço, que era semente, e era terra, e era fruto, e era um campo inteiro com espigas douradas e grãos louros. Então seu coração tremeu. Suas mãos caíram. Seus olhos cegaram com a tanta luz plúmbea. Seu sexo se paralisou. A única visão não possível. Uma chama de fogo saía do meio de uma sarça que ardia sem se consumir. A única visão que ele não podia olhar. Onde espinhos que furassem seus olhos? Onde raio celeste que o fulminasse logo? Voltar? O pai era o rio. O pai era toda a pujante força que o vergava e vergava todo o mundo. Como pudera esconder-se do pai para o ver? Agora para sempre lançado nessa voragem. Se tivesse feito barulho. Se tivesse errado o pé. Se o pai o tivesse ouvido. Mas ele que fora na sombra. Ele que se escondera dentro do sol por. E ele que empedrara para sempre a cantiguinha no seu coração aos pulos. Visão última de todas as coisas. O pai nu. A contemplação da única beleza eterna. A verdade total com que surpreendera-se ao descer para aqueles lados da vida. Depois cada coisa apenas uma cópia do ser completo onde ele começara a existir. Depois apenas simulacros de onde manara o que ele era e para onde voltaria sempre, o lugar onde sua vida tinha tido sua fonte também era o lugar onde ela alimentaria a vontade de morrer. Então é tu mesmo meu pai. Todo o ser total e perene em mim. Posso tocá-lo. Mas isto é certo? Nunca meu pai. Tu és também o meu medo. Não vou a ti. Meu temor é maior. Sob tua guarda nunca fomos felizes. Deixa-me viver então. Liberta-me. Volto a ti, mas não sou forte para suportar com destemor de filho ou coragem de homem tua presença natural e física. Fala-me a mim, mas fala-me somente por meio das memórias que me ficaram. Fala-me através do ódio e do rancor que fui tecendo desde que nos tornamos dois homens dentro do nosso lar. Fala-me sem, contudo ser tua presença real perante mim. Sou fraco meu pai. Não me tornei um homem como tu. Para fazer-me um ser eu te neguei. Mas tu eras tão grande e total que me fiz pequeno e néscio. Não te peço perdão. Tu me reduziste a isto. Para ser eu, fiz-me o contrário de ti e errei tanto. Mas meu erro não me consome, porque eu quis que eu não fosse teu ser. Meu rancor é ainda meu alimento. Meu pai. Aquele dia no rio acabou, mas sua revelação continua. Vem e me cobre. Eu te nego e não te aceito. Vem e me cobre. Estou com medo. Meu coração é uma desordem e uma noite na sombra. Sentiu que rodava. Viu que caia. Viu que muitos cavalos de tropelia o levavam nas patas. Viu que caia. Caia de tão alto e não chegava nunca acabar de cair. Se acordasse terminaria tudo. Mas o sono era um tempo necessário. Acordar no meio da madrugada. E se não dormisse outra vez? Se nunca mais conciliasse o sono e a vida? Sufocava, não podia mais. A roda que o levava poderia levá-lo para sempre. Estaria de todo modo perdido. Melhor acordar, tomar um copo d’água, não pensar e com a luz acesa e voltar para cama, tranquilo e com a memória voltada para coisas próximas.

         Abriu os olhos. A treva da casa era silenciosa e dura. A mulher dormia. A filha dormia. Sentou-se na beira da cama. O coração e a cabeça opressos. Se o quarto não fosse um espaço tão exíguo nem precisaria agitar-se tanto. Mas de algum lugar daquelas sombras, atrás dos móveis as ranhas e seus mil palpos o olhavam comovidas.



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