Memórias Póstumas de Brás Cubas
Brás Cubas, um autor defunto, se cansa da eternidade da morte e decide escrever suas memórias. Não sabemos por que decidiu fazer isto. A vida de Brás Cubas foi comum, vida de um parasita das elites oligárquicas nacionais do século XIX. Resumida cabe em poucas linhas. Nasceu em 1805, bacharelou-se em direito na Europa, frequentou os salões do segundo reinado, teve uma amante casada, envolveu-se com a política miúda do parlamento brasileiro na década de 1850. Ouviu certas ideias filosóficas, compreendeu algumas, outras nem isso, depois envelheceu alimentando veleidades de fama e de ser lembrado por algum tempo entre os vivos e por fim morreu aos sessenta e quatro anos.
Existência bem vulgar e digna de ser devidamente esquecida, pois o próprio defunto não deixa nem mesmo um descendente que possa continuar seu sangue na terra. Nada, nada mesmo. Tudo que aconteceu na vida de Brás Cubas parece propício a fazê-lo esquecido como qualquer um dos homens apenas passasse a missa de sétimo dia.
Mas a verdade é que passados cento e cinquenta anos ainda não esquecemos Brás Cubas e passados trezentos anos ainda dele falaremos e ainda em sua existência pensaremos. Que não há substância nas vivências de Brás Cubas lá isso é indubitável, existência vulgar e comum, mas o que Machado de Assis fez desse homem vulgar, desse inútil, dessa vida desperdiçada, isto tem dado matéria para vivas discussões, reflexões, digressões, interpretações e reinterpretações, enfim, toda uma hermenêutica que vai da história social, a filosofia nietzschiana, ao niilismo schopenhauriano, passando pela tentativa de explicar o Brás Cubas de Machado de Assis através de táticas da crítica literária moderna (historicista) pós-moderna (estruturalista).
Gostamos de ler Machado de Assis primeiro porque acreditamos que ele é um dos gênios da literatura universal. Nunca chegamos a duvidar que podemos sim, equiparar o nosso mulato letrado aos grandes nomes da literatura mundial. Pomos Machado de Assis na mesma lista em que inscrevemos os nomes de Turguêniev, Stendhal, Charles Dickens, Dostoievski, Flaubert, Walter Scott, Balzac e tantos outros. Tão imenso quanto esses escritores Machado de Assis também o é.
Prova disso é como transformou a vida de um homem inútil como Brás Cubas num dos personagens mais inesquecíveis da literatura. Não foi somente Brás Cubas, Machado de Assis criaria uma galeria toda sua e hoje nossa de personagens inesquecíveis – Quincas Borba, Simão Bacamarte, Capitu, José Dias, Conselheiro Aires, Helena, Conceição, D. Severina, Estela, Camargo.
Memórias Póstumas de Brás Cubas nem é considerada a obra prima de Machado de Assis, título que a crítica e os leitores em geral atribuem a Dom Casmurro, não discordo deles, mas confesso que ler Memórias Póstumas de Brás Cubas me dar mais prazer. Sou sem dúvida um dos muitos entusiastas da inocência de Capitu e que sustenta as manias patológicas de Bentinho, inclusive Dom Casmurro foi o primeiro romance que eu li na minha vida, o segundo foi Memórias Póstumas de Brás Cubas.
A diferença está em que ao ler Dom Casmurro lembra-me que chorei com a esposa desgraçada que é deportada pelo marido paranoico para morrer na frigidíssima Suíça e com o filho que é enviado pelo pai para morrer de febre tifoide no oriente. Mas contrariamente ri muito com o relato desse defunto autor que escarnece de mim, de ti e de nós todos. Não há ocasião em que não ria relendo as Memórias Póstumas de Brás Cubas.
E o fato de que gosto mais de rir que de chorar, principalmente de rir esse riso reflexivo que a narrativa do defunto autor provoca, faz-me apreciar tão bem as Memórias Póstumas de Brás Cubas.
Como ri da primeira vez do Vilaça e do episódio de 1814, volto ainda a rir relendo-o, também rio sempre de Marcela e do “asno da paciência, manhoso e teimoso” que levou o pelintra Brás Cubas do Rossio Grande ao coração de Marcela enquanto a pátria brasileira nascia em meio ao arruído cívico e as proclamações liberais de uma constituição outorgada e de um imperador que era proclamado absolutista no Brasil e liberal em Portugal.
E o riso volta-me ao reler “Do trapézio e outras ideias,” ao ler “O almocreve,” “ A flor da moita,” “Um Cubas!,” “O embrulho misterioso,” “O abraço,” “Entre a boca e a testa,” “O vergalho,” são tantos os episódios maravilhosos dessas memórias de além túmulo que para mim é sempre difícil escolher uma para exemplo.
Há os leitores que gostam do Brás Cubas de Machado de Assis como uma leitura política o que ele é também. Machado de Assis era um autor de inteligência e perspicácia acima do comum, ele sabia que ao escrever tinha em mãos um instrumento político que era a Literatura.
Os gênios do romance do século XIX, Stendhal, Flaubert, Zola, Dostoievski, Tolstói, Gogol, Thomas Hardy, foram geniais porque escreveram a novela que não se rendia ao panfletarismo político, mas ao debruçar-se sobre os problemas do seu povo, da sociedade do lugar de onde escreviam foram capazes de refletir com uma profundidade que nenhum filósofo, historiador ou sociólogo do seu tempo puderam fazer tão bem.
Machado de Assis que era um desses gênios e foi-lhes contemporâneo, pensou como eles e escreveu como eles. Escreveu sobre a periferia do capitalismo como bem notou Roberto Schwarz um dos bons leitores das Memórias Póstumas de Brás Cubas. Há política e há história no Brás Cubas, há sociologia e há filosofia, sobre isto muito já se escreveu, pois Machado de Assis e sua obra possuem vastíssima bibliografia que o analisam de muitas perspectivas.
De modo que como leitor já li e reli as Memórias Póstumas de Brás Cubas sob vários ângulos. Li-o como leitor em viagem que o ler para matar o tempo ou num saguão de hotel. Já o li também para compreendê-lo como um documento histórico do Brasil, uma análise das transformações ocorridas no país desde a transferência da corte portuguesa para a colônia em 1808 até a Guerra do Paraguai, evento que desencadearia ao seu fim em 1870 as primeiras crises nas estruturas de poder que sustentavam a monarquia e o escravismo no Brasil.
Dessa posição de leitor veria nas datas escolhidas por Machado de Assis para nascimento de Brás Cubas, (1805) e sua morte (1869), escolhas deliberadas, pois estariam ligadas ao período decisivo de formação e consolidação de um projeto elitista de nação, organizado a partir de pressupostos políticos gestados por uma classe que se aboletara no poder seguindo a ideologia liberal-conservadora da burguesia europeia que ela queria transplantar para os trópicos.
Exercitei também uma leitura filosófica do romance me propondo a compreender o livro como um texto filosófico de Machado de Assis. Que há filosofia nas Memórias Póstumas de Brás Cubas afirma-o o próprio autor, quando informa ao leitor que suas memórias estão eivadas de uma filosofia chocarreira e desigual. A filosofia do Brás Cubas é mesmo brincalhona. Há muito de sátira filosófica a maneira de Voltaire, do Cândido, citado mais de uma vez no livro. Quem Machado de Assis satiriza no Brás Cubas?
Não é uma classe, não é uma filosofia, não é um homem, mas as classes, as filosofias e os homens. Com efeito, o Humanitismo é a sátira do Positivismo. Essa crítica de Machado de Assis a penetração do Positivismo no Brasil e no pensamento ocidental em geral será muitas vezes retomada em outras obras – O alienista, Quincas Borba, A sereníssima república (Conferência do Cônego Vargas). O moralismo burguês é igualmente achacado ao longo de toda a narrativa das Memórias Póstumas de Brás Cubas.
Li também o romance pondo-me numa perspectiva sociológica, observando como o autor constrói as relações entre as classes no decorrer da ação. Atentando para suas alusões ao escravismo, ao domínio das oligarquias, ao surgimento da elite urbana brasileira a medida que a nação vai se formando, moldada pelos valores liberais das classes abastadas e dos políticos e intelectuais bacharelescos que compunham a elite do poder no Brasil do século XIX.
Assim, as Memórias Póstuma de Brás Cubas não se oferece a nós somente a partir de uma perspectiva única de leitura, como todo grande livro, como toda obra imortal, pode ser lida e relida pelo leitor como ele desejar, pois não importa a perspectiva que ele utilizará para penetrar no substrato do romance, sempre encontrará lá, vicejando entre os vermes do escárnio machadiano aquilo que todo leitor vai buscar ao ler uma obra literária imortal – uma compreensão de si próprio e do mundo em que ele vive.
Nem sempre leio para encontrar a mim mesmo no que leio, nem tampouco para conhecer a mim mesmo a partir do livro que leio, mas quase sempre é isso que acabo concluindo que fiz realmente. Quando termino de ler um livro saio transformado, não sou mais quem eu era antes, mudei, me fiz mais humano, estou com aquele olhar embaciado de quem descobriu um segredo e o quer logo comunicar, partilhar do mistério para que ele cresça, sim porque o mistério de um grande livro não se revela quando o pomos diante de um novo leitor, muito ao contrário, aquele que nos segue na leitura verá seu próprio mistério no livro, pois cada leitura renova o livro, ressignifica-o e novos leitores lançarão novas luzes sobre outros aspectos do ele leu e que nós também lemos, mas não tínhamos percebido antes essa riqueza no recanto daquela frase ou daquela palavra as quais não tínhamos prestado atenção, mas que esse novo leitor achou, conservou para si um tempo, mas não podendo resistir foi logo comunicar a outro leitor para que este também se fizesse um iniciado. E assim expande-se um livro clássico como Memórias Póstumas de Brás Cubas se eternizando entre os leitores.
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