terça-feira, 6 de julho de 2021

CRÔNICA - A ILHA BARATÁRIA

 

A Ilha Baratária

  Era um dia de vento, pois fazia dois dias que tinha chovido muito e desde então chovera sempre, o sol entrando e saindo entre nuvens, o ar crepitante e o canavial feliz. André parou numa margem do rio, iscou o anzol e pôs na água. Não fora pelos peixes que viera? Tinha a expectativa dos lambaris que eram sempre prováveis depois da enchente do rio.

    Esperou que os peixes mordessem ali, mas como achava que aquele não era o lugar próprio do rio para pescar, apenas experimentou ver se eles estavam já estavam mordendo, pois a água do rio ainda estava muito veloz e barrenta. Ajeitou o embornal no ombro, pensou um pouco na crosta grossa que ele tinha nas costas da mão, ferida de corte de faca. Mas ele tinha paciência de esperar os peixes morderem antes de desistir e procurar um poço mais baixo do rio.

         Em volta em podia perceber a força da enchente do rio. A água lavara até na entrada do canavial e o capim penteado na margem ainda não se encrespara completo. Lá na outra margem do rio que desbarrancara uma árvore inteira caíra na corrente, embaixo das raízes crescerão lambaris – ele pensou.

         Como nenhum peixe mordeu naquele ponto do rio, André continuou subindo pela margem esquerda, e como tinha chovido ele caminhava prestando atenção no caminho, pois sempre depois da chuva a terra molhada acordava esses seres ocos com dois olhos e cem pernas. Eram os principais bichos que ele não perdoava e também as tarântulas.

         Pudesse seria o exterminador daqueles descasos de Deus com a vida. As cobras, os sapos, as lagartixas, os bichos-paus ele perdoava todos, compreendia que não eram bichos incertos e guardavam uma necessidade urgente lá neles. Até aos escorpiões ele perdoava. Perdoava mesmo, bichos que não enganam e tem sua vida completa.

         Prestava atenção também ao vento. E o vento vinha passando e entrando no canavial. A cana reunida resiste ao vento, resiste a enchente do rio, raiz de cana pisa na terra escura e luminosa do brejo, só os dedos da cana aparecem fora da lama. O vento era violento, pingos de chuva caíam, mas a manhã clara também resistia.

         André virou um torrão grosso e compacto com a ponta da botina. Nem aranha vermelha, nem escorpião com ferrão levantado, nem rã dormindo, só uma paquinha vesga com medo do sol. Sem sol profundo, pois as nuvens escondiam a luz intensa do astro. Mas não deixou que o cachorrinho-d’água voltasse para as sombras. Depois se chovesse de verdade ali não seria devidamente seguro, quebrou o torrão com a planta da botina e chutou os restos da terra para dentro do rio e assim foi seguindo pela margem, potente e humano.

         Só parou para contemplar aquilo. De repente ela tinha aparecido no meio do rio, tinha aparecido quando ele já tinha quase desistido dos lambaris. André sentiu o coração sôfrego e intranquilo, então compreendeu subitamente que a enchente do rio trouxera a ilha.

         Não era uma coisa extraordinária que o faria feliz sempre, mas era a primeira coisa que ele tinha encontrado e que seria misteriosamente. Olhava pasmo para o que tinha aparecido no meio do rio. A água da chuva trouxera a ilha. Viera à ilha arrastada com os peixes, as folhas, os galhos mortos, os seixos rolados. A ilha viera na enchente do rio.

         De onde ele estava não se podia dizer que fosse uma ilha verdadeira com todas as propriedades de ilha. Mas ele podia concebê-la como uma ilha principalmente porque era uma terra rodeada de água por todos.

         Agora ele tinha que ocupar a ilha, ser o primeiro homem a pisar na ilha, ser o primeiro homem a habitá-la e a chamá-la de ilha. Então André pensou que ele seria o descobridor da ilha. Entraria no rio e chegaria até lá na ilha como o primeiro homem que pisou lá nela. Lá da ilha ele poderia pescar lambaris bem no meio do rio e teria os peixes mais grossos do rio. Mas então como chegar na ilha?

         Com uma jangada atravessaria o canal e seria o primeiro descobridor da ilha. Com uma jangada sim, mas não tinha tempo para uma jangada agora, e a ilha estava tão perto, tão ao alcance de um nado que André descalçou as botinas e despiu-se com pressa para chegar lá na ilha nadando.

         Nadou e chegou na ilha e sentiu que pela primeira vez pisava numa terra bruta, numa terra que era propriamente sua, pois até ali ninguém ainda chegara, naquele lugar ninguém tinha proposto uma rua, uma cidade, um poste elétrico. Era um lugar não habitado de bichos e de homem, era o lugar onde se deveria vir para ficar sozinho pensando como era bom estar sozinho em alguma parte do mundo.

         Uma terra para um homem só, mas ele também tinha que pensar em Marina. Principalmente André tinha que trazer Marina para a ilha. Mas em que dia diria à Marina – Vem comigo, o rio trouxe uma ilha na enchente e eu a descobri e tem lugar pra nós dois lá nesta ilha.

         Marina não viria para a ilha como ele veio, não viria assim como um fugitivo da terra. Diria pra ela – Vamos tomar banho no rio e de repente quando ela chegasse ali mostraria a sua ilha e falaria pra ela que aquela ilha seria dela se ela quisesse.

         Determinou-se fazer da ilha um lugar onde ele habitaria mesmo quando as férias acabassem. Mas ele compreendia que ainda não era tempo de fazer da ilha um lugar humano. Assim não escolheu logo um nome para ela, deixaria para pensar num nome quando voltasse no dia seguinte e nos outros dias.

         Poderia dizer pra Marina – esta ilha não tem nome, você pode chamar com o nome que você achar mais bonito, eu deixo que você escolha um nome pra ela. E ele seria então o governado da ilha, Marina falaria um nome e chamaria ele de o governador da ilha.

         Logo André deparou-se nu e habitando uma ilha. Viu lá na margem do rio que ele tinha deixado o embornal, o anzol e o canivetinho. Também não era ainda possível trazer coisas para a ilha. Quando ele voltasse nos dias seguintes habitaria a ilha com outros seres. Agora ele queria preparar-se para ser livre e feliz.

         Assim pensando André deitou-se na ilha. Agora ele era um corpo nu e esguio deitado na terra. Agora ele uma raiz escura das árvores entrando na terra. Ouviu o silêncio da água, da água escorrendo no rio a sua volta. Era bom e tranquilo ser humano ali na sua ilha. Fechou os olhos só para abri-los logo, que bom está vivendo ali como um ser, como um passarinho voando sempre.

         Quando o avô era vivo... Por onde caminha agora o avô? E o avô sempre sabia que ele ainda não tinha comido o almoço, que ele era um menino que ficava sozinho porque os outros meninos impediam a sua felicidade. Mas agora ele estava vivendo com a avó e aquele tio num desencanto lá só dele. Então era por isso que André precisava do seu rebanho de nuvens e de formigas no quintal. Era por isso que ele via as nuvens se compor-se em cavalos, em bois e em perfis humanos.

         O sol irradiava-o, menino tuíra deitado no chão da ilha. E então agora André não era mais somente aquelas raízes negras da terra, ele era também uma pedra boiando no meio do rio, um peixe que tinha saltado para fora da água, um pássaro que tinha batido numa parede branca.

         Desde dentro de si André sentiu que sua pele realmente não se conformava mais a um corpo que não se rendia mais aos seus próprios limites. Quando tudo aquilo começou a acontecer ele não sabia se lembrar, mas vinha acontecendo com mais frequência todos os dias. Abriu as pernas para sentir com mais força o que ele sabia que estava no auge do fogaréu. A partir daquele fissura começava a crescer e a se nutrir dele outro ser mais faminto e crespo. Sorriu-se porque se se concentrasse muito naquele ponto do seu corpo outro ser se elevaria do chão.

         O sol agora tinha aparecido completo no céu e queimava-o. André ergueu-se, tomou um punhado de terra e seixos e tranquilizou-se com isto, tranquilizou-se com a terra úmida ardendo entre seus dedos. Pensou em fazer um abrigo para si, moitas de assa-peixe cresciam na margem. Voltaria com elas no dia seguinte. Traria o anzol para pescar lambaris e fogo, sim, como traria fogo para a ilha principiaria uma humanização da ilha, porque também teria que trazer sal para lá.

         Marina viria com ele para a ilha. Chegariam numa jangadinha na ilha e Marina o faria o rei da ilha. E assim aquelas férias estariam bem completas.

         Ele traria ingás para a ilha, Marina pescaria lambaris, ele ficaria deitado na areia da prainha e ouviria a água do rio correndo, ouviria o os cabelos de Marina ao vento, limparia com seu canivetinho os peixes que Marina tinha pescado, sim traria o canivetinho e o sal para comerem lá na ilha os peixes que Marina pescasse.

         Construiria também um forte para defender a ilha, as pedras viriam lá da terra. Mas André viu uma pedra no fundo do rio. Entrou no rio, pegou a pedra e trouxe para a ilha, aquela seria a primeira pedra do forte. Sentou-se nesta pedra, olhou a sua propriedade, e era a primeira vez que ele se sentia um homem, que ele se sentia humano, pois tinha uma coisa presa, um objeto moldável, intransferível entre as mãos.


 


 

 

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