Segunda-feira ao sol e Davos
O ano é 1991, segundo semestre daquele ano. A URSS está se desmanchando. Quebrada, a superpotência comunista se esfacelava enquanto os trabalhadores que não tinham nunca acreditado no sonho da sociedade sem classes comemoravam nas ruas das repúblicas independentes do leste europeu o fim de um sonho (ou pesadelo?) que durara 70 anos.
Os dez dias que abalaram o mundo no começo do século XX já não faziam mais nenhum sentido no modelo de vida e sociedade que emergira na Europa Ocidental e no mundo capitalista de alta performance após a Segunda Guerra Mundial.
Democracia liberal, consumo de mercadorias, tecnologias, classe média, new American way of life, fast food, Hollywood. O trabalhador e seus bens móveis e imóveis. Sua hipoteca, seu cartão de crédito, sua conta no banco, suas viagens de férias e Papai Noel no natal. Os filhos na escola, a mulher no trabalho ganhando menos que o marido, mas trabalhando e ganhando também o seu.
Uma vida bem vivida e a possibilidade de escolher o parlamento, o presidente e o chefe de governo. Quando a implosão da URRS se iniciou ainda em 1987, os trabalhadores criam que vislumbravam um mundo melhor aos serem libertados da tutela do Partido.
De fato, com o a dissolução do Partido o sol brilhou mesmo no céu da Rússia, da Polônia, Ucrânia, Romênia, Hungria, Albânia. Brilhou como ele sempre brilha nas segundas-feiras dos países capitalistas. Brilhou para a pequena parcela dos donos dos meios de produção: Os empresários a burguesia com novíssimo nome, mas rezando pela mesma velhíssima tábua de valores de sempre.
O filme Segunda Feira ao Sol de Fernando León de Aranoa reflete sobre isto: o desolamento do trabalhador numa sociedade que o anulou completamente como sujeito político e agente econômico. O desencanto com a sociedade materialista dos fins do século XX, que nega ser materialista e que nega aos trabalhadores o direito a produzir riquezas e a desfrutar das riquezas que eles viessem a produzir. Um dos personagens do filme transmite ao espectador por meio de uma piada pessimista o sublime desencanto do trabalhador com tudo, com a condição dele e dos seus companheiros trabalhadores com o novo tipo de mundo globalizado.
Diz o personagem que lhe contaram certa vez que tudo o que afirmaram ser o comunismo era falso ao que foi replicado que o pior não era isso, o pior é que tudo o que afirmaram sobre o capitalismo era verdadeiro.
A passagem naturalmente remete ao desencanto dos trabalhadores que apoiaram o fim dos regimes comunistas na Europa e se posicionaram a favor do triunfo capitalista no mundo. O filme questiona sobre o abandono dos trabalhadores pela sociedade em benefício único e exclusivo do lucro máximo da casta capitalista.
Demitidos do estaleiro de onde tiravam o sustento seu e de suas famílias os trabalhadores retratados no filme tentam uma reação contra o fechamento dos seus postos de trabalho e a transferência da indústria para outro país com mão-de-obra mais barata, mas nada alcançam. Para enfraquecer a classe os patrões oferecem vantagens particulares para alguns deles que ao aceitarem quebram a corrente de solidariedade de classe provocando a ruína de si mesmo, dos amigos e da própria cidade em que vivem.
A tese do filme está bem explícita nesse ponto. A velha burguesia usa as mesmas armas de antanho, desunir para enfraquecer e anular enfim os trabalhadores. Abandonados pelo estado que faz o papel de cão-de-guarda dos privilégios do empresariado capitalista os personagens caminham pela cidade, uns em busca de inserir outra vez no mercado de trabalho, outros deslocados dentro da nova realidade em que só mulheres por serrem mal remuneradas conseguem se ser ativas no novo mercado de trabalho.
Quem não consegue enfrentar sóbrio esta condição de miséria do trabalhador enverada pelo alcoolismo e por fim o suicídio. O diretor não poupa críticas a uma sociedade que se crer triunfantemente capitalista, mas condena o ser humano a degradação social e nulidade política.
Perambulando pela cidade de segunda-feira a segunda-feira sob o sol esses trabalhadores abandonados são requisitados a se adaptarem as novas condições trabalhistas e de vida social, impostas pela ideologia capitalista dominante e que estabelece como princípio ordenador da sociedade o egoísmo material e a alienação absoluta.
A cartilha dessa sociedade em que o trabalhador funciona de acordo com padrões do mercado, isto é, coisas vivas treinadas para fazer sucumbir o companheiro de trabalho, foi escrita e está sendo divulgada permanentemente pelos meios de comunicação em massa.
O código dessa nova sociedade foi redigido atrás dos montes suíços, no acalentador remanso dos picos nevados de Davos. Quem o redigiu foram os brâmanes da casta mais alta do capitalismo, os líderes das economias mais prósperas do mundo, mas devidamente inspirados na vontade divina do marcado.
Nesse modelo de sociedade pensado pelo capitalismo financeiro o trabalhador não existe, pois ele é apenas um produto. Para viver ele terá que evoluir, evoluir aqui significa adaptar-se às competências traçadas pelos sátrapas do mercado. Trabalhador que não domina a informática está perdido. Trabalhador que não tem menos de 40 anos será ultrapassado, pois desconhece a nova dinâmica do mercado.
E prosseguem os dez mandamentos do mercado: trabalhador flexibilize-se! Trabalhador esteja aberto ao novo! Trabalhador seja criativo! Desenvolva inteligência emocional! Sirva! Negocie! Tome decisões! Pense criticamente.
Se você não quiser ser substituído por uma máquina desenvolva-se como humano. Uma máquina pode até pensar, mas só você é criativo e emotivo. Seja mais esperto que todas as máquinas que podem criar para lhe substituir. Você quer um emprego? Emprego não tem, mas temos trabalho para todos. Trabalho é essa coisa em que você ganha mal, mas não pode reclamar porque não tem plano de saúde, não tem vale transporte, não tem salário fixo, não têm direitos adquiridos. Você trabalha e pronto. Ganha o que o patrão achar que você merece.
Então estamos diante do ponto chave do filme de Aranoa. Enquanto havia o comunismo e os trabalhadores podiam se congregar unidos sob a direção do Partido ou da esperança de que havia uma proposta melhor de sociedade, os capitalistas não dormiam tranquilamente, pois sempre suspeitavam que em qualquer porão ou galpão alugado, os trabalhadores unidos estavam planejando uma greve ou revolução que pelo menos ameaçaria ou desequilibraria a conta dos seus privilégios.
Agora que tudo acabou e que ninguém mais acredita em Comunismo, em Karl Marx, em Revolução, em Trabalhadores uni-vos, todos podem dormir tranquilos depois de um bom vinho e uma fodida recompensadora por que amanhã será segunda-feira e os trabalhadores estarão em seus postos de trabalho treinados para ser o lobo do homem e se bater por destaque e promoção na empresa. Nem todo mundo conseguirá, mas em Davos reina a mais perfeita paz porque o espírito Deus paira sobre as águas.
O filme? Ah é excelente. Maravilhoso trabalho de sociologia marxista. Eu gostei, Gostei de tudo. Do niilismo dos personagens. Da crítica a propriedade privada. Das constantes exposições sobre o que é ideologia e alienação. Gostei do tom nostálgico quando se fala da falida URRS. Do materialismo cru dos personagens. Da tese sobre a fragilidade da propriedade privada e gostei principalmente quando Aranoa usa as relações de trabalho para refletir sobre a subjetividade humana numa sociedade onde o humano está progressivamente sendo coisificado para alienar-se fazer-se refém do modo de produção do capitalismo financeiro gestado no Fórum Econômico Mundial de Davos.
É um delicioso filme de esquerda. O realismo do filme é brilhante na composição dos personagens masculinos, pois Segunda-feira ao sol é principalmente um filme sobre homens. As mulheres estão no filme, poucas é verdade. Quantas? Três mulheres. Uma trabalhadora explorada e assediada sexualmente, uma jovem com pouquíssimas perspectivas de vida e uma mãe solteira espanhola vestida de suíça para vender queijo num supermercado.
O mundo masculino desolado é que se sobressai, pois os principais e mais brilhantes personagens do filme são masculinos. São eles que vivem ao sol nas segundas-feiras quando deveriam estar no trabalho para sustentar suas casas e famílias. Por isso que o filme é primoroso. Discute respectivamente uma série de questões presentes na nova sociedade que emergiu com o triunfo do capitalismo e a globalização nos fins do século XX e começos deste século XX.
Reflete sobre a condição do trabalhador, a condição masculina, a subjetividade do homem e do trabalhador. Reflete sobre a alienação social, sobre o abandono da classe trabalhadora. O Filme pensa o desemprego, mas não o desemprego causado pela crise do capitalismo, mas aquele causado pelo seu triunfo. Pensa igualmente questões como propriedade privada, bens culturais, cultura de massas, niilismo, solidariedade de classe, coletivização, ideologia.
É um filme rico de interpretações. Sem dúvida um belo projeto reflexivo sobre a condição humana nesse nosso tempo.
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