Solidão, solitude
Estava tão cansada e fortalecida que dentro dela o dia ardia com sua substância luminosa e esvoaçante. Assim, mesmo que imaginasse que as coisas tinham voltado ao seu princípio não alcançaria o sentido pleno da sua imagem parada sobre a superfície lisa da água para onde se inclinara muito avara para ver-se refletida como uma pessoa. Mas como ela adivinhava pelas suas mãos imóveis, pelas crostas na sua pele e um resto de ideias que ainda guardava de si, mesmo que não se visse naquela água ela era uma pessoa, era uma enorme mulher sentada na cama e olhando vazia para o sol que avançava com a manhã que já se impusera como claridade e camada do tempo.
Logo ela havia descoberto o invólucro onde fora feliz por algum tempo, e mesmo sabendo como tecer longos bordados, era uma pessoa que se recusava aderir às coisas simples e fáceis, coisas que aconteciam perto dela e que não tinham demandado seu esforço obstinado e cruel para chegar até elas. Era uma mulher que tinha aprendido desde muito antigamente que pode-se até colher o fruto só com estender a mão para o galho de onde pende o fruto, mas haverão os espinhos sob a folhagem e os dedos voltarão escalavrados.
Esta foi uma lição que recebeu da mãe sem que a mãe jamais lhe falasse disso, sem que a mãe jamais se referisse ao trabalho do modo como agora ela pensava. Mas aprendeu tudo de forma tão clara e geral que não podia deixar de ser um exemplo que tivera bem perto de si em algum momento de sua vida.
Agora os filhos estavam aprendendo também esta dura lição com as pedras que se lhes interpusessem aos seus passos ou obstruíssem suas vidas independentes.
Que nada disso era para os filhos. O que ela sabia deveria guardar para si e crescer sozinha. Quanto tempo transcorrera depois? Olhou a posição do sol no chão do quarto. Fugiria pela janela ao meio-dia, subiria pelo batente e depois seguiria sobre o muro até se consumar lá no fim da tarde. Mas ela que não era um corpo luminoso precisava do sol irradiando-se sobre sua superfície. Com este pensamento havia logo afastado as cortinas e aberto às portas da janela de dentro, e depois voltou para a cama e se imobilizou como um réptil transparente sob o sol.
Voltava a ouvir-se com os olhos abertos e o pensamento esquivo. Nunca aprendesse uma coisa que de tão mal conhecida lhe escaparia logo da memória. Acreditava apenas nas descobertas que se petrificavam douradas diante da gente e que sempre estariam lá, quando precisassem ser lembradas para nos sustentar perfeitos e sábios.
Ria-se. Ria-se, mas era sempre de si mesmo.
Rir-se de si mesmo não era um motivo para achar-se engraçada ou capaz de divertir-se com aquilo que se era ou se havia tornado. Mas como cada coisa era um lugar real e ocupava um ponto do espaço de onde emitia brilho próprio, a ela só cabia pensar que mesmo não sendo um espelho plano e não tendo luz própria, refletia alguma imagem que visível ou invisível era importante para ocupar o mais impróprio e ínfimo ponto de um mundo que era habitado por grandes mastodontes eretos.
Olhando essa imagem que era fiel a sua no espelho da penteadeira ela se disse – Eu me reconheço – mas reconheço também o meu vestido florido estendido no espaldar da cadeira. Então era verdade que nem ela nem os objetos se distinguiam como seres de brilho próprio? E o espelho é um objeto? Se pudesse comparar os espelhos aos objetos que habitam o nosso mundo então não haveria reflexo das coisas nesses espelhos, pois o único ser que não reflete a si mesmo é o espelho. Voltou a olhar-se na superfície de cristal, há quanto tempo não fazia aquilo? Era de barro e seu barro era pardacento e escuro, assim quando voltasse ao pó sua pele seria como o limo da terra. Pensou que há muito tempo a mãe já divisara essa sua propensão para as coisas escuras e assim ela tecera sua própria crisálida de onde voltara a abrir-se como uma flor, mas não uma flor num vaso ou num canteiro do jardim, mas uma flor parda e infiel que cresce nas pontas desses galhos que sobem no muro e avançam para o outro quintal.
Era uma forma de considerar-se nascida. Mas havia nela uma intenção de considerar que seu nascimento era espúrio. Nunca revelara-se de qual costela havia sido posta no mundo. Acordara já neste mundo, pronta e disposta a vivê-lo, e se às vezes cansava-se com essa sobriedade e com tanta vida estagnada é que um dia soubera que talvez pudesse crescer na sombra e ir-se sem ouvir obstáculos, mais para o alto onde havia sol e nuvens silentes.
Mas aparentemente sentara-se em alguma margem e aguardava até que lhe viessem estender uma travessia. Quando chegara até ali? Olhou o que sem dúvida era sua imagem e era a de uma mulher que já não era jovem, mas que depois de cinquenta anos de vida ainda era digna. Só podia reconhecer-se como necessária se pudesse compreender que tinha alguma esperança prevista para ela. Os filhos já não lhe pertenciam e o marido se acabara com o coração estourado sem nenhum amparo.
Fora solidária com todos esses seres e com o marido muito mais nos últimos meses que levou para morrer. Agora estava pronta pra semear-se depois que guardara a semente por longuíssimo tempo em seu próprio.
Mas ela que era uma mulher e que estava convicta de fazer jardinagem ordinária também seria uma pessoa com algum porvir? Não tinha como concluir nada definitivo porque pensava sempre aos retalhos, com as mãos, com os dedos contraídos ferindo a própria carne. Via-se bem longe dali observando um vasto campo onde poderia haver flores, raízes, pedras aparecendo fora da terra e, sobretudo pássaros voando e uma lua nascendo branca no horizonte da tarde. E nada disto era revelação, manifestação da natureza, mas apenas coisas concebidas por ela e que ela via com muita calma expressa na substância inquieta do mundo.
Veio-lhe outra vez pensamentos de lembranças. A memória de coisas consumadas, de fatos que foram vividos num tempo antes dela. Era antes dela, sem dúvida só podia ser assim, pois de outra forma como poderia está agora voltando a pensar naquilo? Desviou-se e de repente imaginou um enorme peixe prateado pendente do anzol e se curvando no ar.
Desviou-se e havia no quarto um móvel de madeira parado com suas incômodas gavetas fechadas. Em qual daquelas gavetas havia posto o segredo da sua vida? Muitas perguntas e ela vazia para se dá uma resposta viver depois conformada com o que finalmente encontrara para si. Lá fora era dia o dia que se bastava e ela compreendia como isto acontecia, ela compreendia como o próprio dia era uma matéria volúvel e ondeante que se ia vivendo com impostura.
Havia ela dentro do quarto, sentada na cama, uma mulher nua, os cabelos crespos, uma parda, sobre lençóis de linho; um espelho que a refletia, outros objetos que ela havia disposto com sua vontade feminina em seus lugares apropriados, a janela que ela tinha aberto para sair das sombras, e também o muro caiado, em frente, um muro baixo e encimado por um gato e era um gato que não a via, mas que ela o via porque ele olhava para onde um passarinho havia pousado, reassumindo assim a posse de seus instintos de caçador.
Ouviu as vozes de quem falava do outro lado do muro e eram as vozes dos vizinhos, não reconheceu o que era que falavam, mas como eram vozes de meninos não foi difícil concluir que eram crianças felizes. Havia sempre a suspeita de que a felicidade se encontrava emparedada naquele lado do rio. Ainda havia os filhos, mas tinham crescido e apropriando-se de suas próprias vidas. Seu amor tão pródigo já não encontrava nenhum pedido ou súplica para despender-se e só restara-lhe o culto antigo do que antes fora caudaloso e fácil não guardar para si mesmo.
Com o tempo até a pedra onde sentara-se deixara de ser apoio e fizera-se abismo onde não se podia mirar com segurança. Fechou os olhos e viu bolhas luminosas passando e estourando diante dela. Sem dúvida seu ser estava preso. Não podia mais ficar recolhida como uma parasita dentro daquele fruto. Só com garras de fera romperia aquele invólucro e sem nenhum temor de sucumbir ou parar de repente e deixar-se vencer antes da volta é que devolveria a si a tranquilidade de uma vida vivida sem méritos aparentes. Fora mãe e também assumiu por largos anos os atributos de uma esposa e uma mulher que se ocupava com a casa e o que acontecia dentro da casa.
Abriu os olhos.
A realidade que construíra a sua volta era limpa e não havia mistério ou profundidade. Cada coisa tinha uma utilidade doméstica e podia ser compreendida como objetos práticos que vieram para simplificar os seus dias. Ela mesma tinha sido uma pessoa assim. Alguém que se propusera a ser simples, sem mistério e a disposição para simplificar os dias que iam acontecendo sem ocorrências graves. Mas como tudo acaba, veio um sol mais intenso e com sua brutalidade impusera limites àquela sua natureza totalitária e de serenidade concebida. Ainda ontem pensava como uma vida feliz e que se era imóvel e perene tinha acabado para propor-se outra onde não encontrava um fundo ou uma superfície aonde pudesse caminhar sem o tremor das mãos ou a vertigem da alma. O que aprendera não lhe bastava mais para viver como agora vinha experimentando, sobretudo porque ela era uma mulher que não suportava o frio com a mesma paciência da ave retida no ninho. Se tivesse meios de atravessar sem esperar mais, o faria como um animal que atravessa para a outra margem onde há mais frutos, raízes, sementes e sombras.
E como voltou a pensar que estava cansada, deslizou para fora da cama sem ficar parada dentro do quarto. Já era hora avançada e ela não tinha posse de si para continuar como uma mulher inútil que vivia uma manhã desventurada. Recolheu o vestido que havia disposto sobre a cadeira, as outras peças íntimas também e dispôs tudo sobre a cama. Vestiu-as meticulosamente pensando que como a serpente revestia-se da pele que havia deixado entre as pedras. Voltava para dentro da mesma pele num processo de nunca renovar-se para não perder que se era nem deixar rastros do que se fora.
Num minutinho breve estava vestida e perplexa, podia conduzir-se pela casa. Estava sozinha porque desde então só a visitavam quando era possível, mas mesmo assim não dispensava certa compostura necessária.
Brincava com o cordão do vestido e foi aí que ouviu a queda de uma coisa fofa e plena do lado de fora do quarto. Voltou-se para ver o que era, mas já tinha compreendido que não importava o que fosse havia acontecido lá fora. Correu à janela e esticando-se um pouco para ver o que era, viu uma insólita e incandescente manga espapaçada sobre a terra do quintal. Olhou para cima, mas não viu nenhum outro fruto existente nos galhos, o que havia era somente a intrigante continuidade verde das folhas. Desde já era incompreensível o acontecimento daquele fruto sazonado em tempo impróprio. E, no entanto a polpa ígnea e espessa sobrevivia dentro dela, a polpa que varara a casca e se resvalava na terra a horrorizava. Com muito cuidado para não dobrar-se sobre si, Rute afastou-se um pouco da bancada da janela, mas lá adiante o fruto continuava amarelo e intumescido massacrando-a com uma inesperada forma de coisa primitiva. Veio vindo à sua consciência uma sensação de totalidade invertida, uma totalidade que se conservava intacta, mas que crescia mais, crescia mais, trazendo-a de volta do seu longo naufrágio. Nunca pudera crer totalmente porque era inconcebível para ela aceitar um infinito incriado, mas não tinha dúvidas, mesmo porque aprendera o suficiente para não ser uma pessoa acomodada com as respostas completas. Tudo que a percutia, aceitava de modo conveniente ou abandonava para não ficar obsessivamente pensando no que ouvira ou aprendera antes.
Sem dúvida que agora era diferente. Alguma coisa tinha se partido ou alguma imagem nova se desprendera e se alargava diante dela. Voltou-se toda para o presente e era evidente que finalmente poderia considerar sua própria vida partindo daquele ponto. Todos os pensamentos que lhe vinham, chegavam claros e iluminados, incandesciam para iluminar sua treva. Logo não era mais treva, era um caminho que se estendia desde um novo começo, olhar para trás era impraticável, pois não havia um antes. Estava parada e era dali que tinha que voltar a andar. Havia uma consciência táctil e plena daquele princípio, o que sem dúvida era um privilégio, um prenúncio de fácil semeadura e boa colheita. Quem tivera tamanha honra de saber que principiava? A sua coragem estava explícita diante dela, mais valia saber como viveria dali em diante do que olhar pra trás e pensar como tinha vivido até chegar aquele ponto, até subir naquela rocha. O que se vive para diante é que precisa de fundamento. O salto para trás é o salto mortal e para diante é o salto da travessia.
Estava pronta e começaria o jogo, mas sem embaraços. Ergueria ela mesma uma ponte para se atravessar e poder olhar com orgulho e cansaço seu próprio trabalho. Seria agora um ser sumário, contínuo, visível, sem arestas. Então como fora que ainda perdurara tanto tempo sem se revelar constante? Vinha um dia e descobria que toda a sua natureza era incompleta e insípida, mas que felicidade a tomava ao propor-se que toda a vida só seria bem vivida se houvesse intensa voracidade, sofreguidão e impertinência em não aceitar nem um mínimo de comodismo e passividade.
A gratuidade com que se vivia não impedia a vida, antes a tornava mais etérea e substanciosa, e para gozar amplamente todo aquele favo era preciso ter apenas mãos insaciáveis. Vinha-lhe profundamente a ânsia premonitória? Não tinha importância, pois em breve estaria concentrada, olhando um novo sol aparecer num céu baixo onde era só pensar nos alimentos que eles já apareceriam maduros e servidos. O desafio agora era prevalecer, impor sua condição de seguir. Venham os anos e consumam-se os tempos, sempre estaria resguardada agora sob a esperança de que fora um dia um caniço, mas que superara tudo e se alongara para converter-se em pedra e rocha, e que se ainda continuava caminhando, procurando um encontro, uma forma de afirmar-se e não está diluindo-se nem com o vento, nem com a chuva, é porque trabalhava incansável na sua própria lavra.
Houve um instante em que vacilou, mas isto já não a completava mais, o que a perseguia era o instante fatal em que teria um novo projeto de si. Onde encontrá-lo? Não se perguntasse por isso, ela sabia que nada do que precisasse estaria já pronto e preparado para ela dentro de uma gaveta. Dentro das gavetas havia o que a gente sempre guarda dentro das gavetas – se disse. Afastou-se da janela e ao pôr-se outra vez diante do espelho, viu que se havia mudado em outra, que era outra e que tinha na boca a expressão de uma resposta e que tinha no olhar o brilho de um encontro. Passou a mão direita sobre a superfície do espelho, estava úmida e lisa. A mulher segurou a respiração e voltou a pensar – dentro das gavetas fechadas estão às coisas que a gente concebe para nosso uso, nunca vem nada dentro das gavetas e é preciso que concebamos as coisas que queremos usar e guardar nas gavetas para ficar sempre usando o que lá pomos. De tal forma era assim que como ela se propunha a conceber para si uma novíssima natureza, teria que fazer isto usando a matéria de si mesmo.
Tudo acontecia assim - primeiro decantava-se o sal e só depois esperava-se que a água evaporasse para recolher os grãos, mas o sal não estava sempre ali, ele vinha sendo conquistado através dos processos necessários, assim era com a mulher e ela era uma mulher. Se precisava de uma nova natureza, seria ela que ia se produzir a si como faziam as borboletas dentro da crisálida.
E de repente se viu como quem estende a mão para colher o fruto, e o fruto existia, e era um fruto que dava para o seu quintal. Não era um fruto da sua árvore de bem e de mal? Era uma árvore antiga, dentro de um quintal longínquo onde ela brincava e as sombras eram um reconforto e uma felicidade ingênua. E de repente ela olhou e viu-o pendente e oferecido a ela, irrestrito e estendido até o seu alcance. Por isso foi sem esforço que se levantou da terra e limpou-se da areia que tinha sujado seu vestidinho e apanhou o fruto.
Nos dias seguintes continuou guardando-o nos lugares mais misteriosos e improváveis que podia. Nem mesmo à mãe revelou aquela sua descoberta. Aprendeu na escola que havia uma separação entre o que a mãe precisava saber sobre ela e o que Rute poderia guardar somente para si. Escolheu guardar o fruto unicamente para si. E quando decidiu que o comeria o fez com grande gulodice, escondida atrás da casa onde poderiam pensar que ela continuava atormentando a fila das formigas.
Assim descobriu pela primeira vez o que fazer quando tivesse nas mãos um molho de insípidos hibiscos. Sim, pois todas as flores eram frescas e se colhidas, logo trariam a primavera, sem ruídos. Foi assim que ela sentiu-se tragada num deslumbramento cruel de quem muito surpreendentemente está caminhando descalço sobre a argila molhada. E o primeiro indício de que se descobria veio-lhe quando seus dentes tocaram a pele do fruto e a carne intumesceu-se doce e porosa na sua boca. Então ela sentiu-se espessa e prorrogada, toda a sua natureza delgada tinha se sucumbido naquele ato de criação de si, ela estava trêmula e seu coração queimava, mas sua alma fosforescia e seu corpo vertia-se para outra forma.
Quando pode retornar já era uma mulher que ardia nas chamas e suas pernas estavam frágeis, mas ela sabia que nenhuma dor teria forças para fazê-la renunciar ao tempo onde habitaria livre e disposta a construir suas pontes, seus abismos e a fazer sua própria semeadura e comer do trabalho do seu cansaço. Nunca mais seria redimida e toda a sua vida transcorreria entre a necessidade de amar e sofrer após a prodigalidade do amor.
No entanto ela era grata à serpente que lhe dera um mundo para viver, um mundo onde ela caminhava e ouvia os passos que eram seus e ofegos que eram seus, uma voz que vinha dela. Se fosse forte, viria dela a força, se fosse fraca, seria porque ela assim era fraca. O mais importante já tinha acontecido, ganhara os meios de viver querendo a vida. Nisto também era muito grata à serpente, pois dera-lhe as divisas necessárias para a vida – Posso dizer que sim, posso dizer que não, o governo é meu.
Nisto veio-lhe um fluxo de urina e sangue e ela reconheceu-se humana e indeterminada. Correu assustada para a mãe que viu o que tinha acontecido e confirmou-lhe que o que tinha acontecido era que se havia tornado humana.
A porta fora fechada sobre ela? Serafins e leões guardavam agora esta porta? Mas ela não tinha propósito de voltar-se e entrar outra vez para habitar aqueles jardins. Sua vida estaria tranquila em qualquer deserto que ela pudesse cultivar, assim reconheceu que não fora feita, mas que vinha pelo mundo fazendo-se e que a forma da sua argila nunca seria pronta nem definitiva.
Muitos anos depois já tinha esquecido aquela menina, mas gora com tranquilidade via ela outra vez expelida para fora do espelho e trazendo-lhe novamente sua iridescência e o mais primitivo de si.
A mulher caminhou pelo quarto e o sol a acompanhou, sim era a chave que tinha na mão, descerrou-a e espalmou-a de encontro à luz que vinha do dia através da janela aberta – sim, não eram asas, eram tornos de modelar de conceber sua forma, de ampará-la de acordo com o modelo que ela escolhesse para ser. E ela nunca seria acabada, construiria sempre a si mesmo impondo-se uma nova forma todos os dias, negando-se numa aceitação tácita de que se quisesse existir como uma pessoa humana e insuperável teria que fazer-se invertida e não permitir que a água da chuva ficasse parada na sua corola. A verdade dela era esta – que seria uma crisálida constante onde arderia nas trevas das metamorfoses.
Abriu a porta e saiu do quarto para percorrer a casa. Cada objeto ocupava agora novos lugares na sala. O aparador onde o pó se acumulava redivivo, o retrato do marido entre burocratas da repartição, os retratos dos filhos na pose artificial dos antigos colegiais, a feíssima aquarela de prados, moinho, casebre e rio parado, o vaso de louça branco e bordas douradas com flores tristemente artificiais, as cortinas carmins da janela da sala, o sofá vermelho, a poltrona, o duro silêncio da casa toda. Tudo isto e ela dentro de tudo isto. Viver era aprender todo dia a reconhecer em cada uma dessas coisas um propósito para tê-las posto onde elas continuariam impondo conforto e segurança.
Com a posse de si, Rute caminhou para a cozinha e pondo a água a ferver esperou-a até que pode fazer-se um café grosso e quente. Serviu-se dele e sentada na cadeira em volta da mesa bebeu-o a goles longos, mas já sem nenhum medo de acabar aquele instante tão eterno.
Nenhum comentário:
Postar um comentário