Edifício Master, a mineração do outro
A equipe de filmagem do diretor Eduardo Coutinho está na frente do edifício, a vemos pelas imagens do circuito interno de TV do condomínio, a partir daí já sabemos. O filme que vamos assistir é sobre um mundo que preexiste a si mesmo.
O
diretor principia seu trabalho organizando a cidade-estado. Houve uma
pré-história do Edifício Master. E a sua pré-história foi o tempo do caos. No
princípio era o caos: Prostituição, drogas, álcool, crimes, sexo. Houve um
tempo que isso era bom, mas depois tudo cansou e clamou-se pela ordem. Veio o Sérgio pedagogo e Pinochet.
Veio à ordem. A pedagogia na frente acompanhada de perto por sua irmã, a mão de ferro da autoridade realista. Assim se governa os homens, uma cidade, um condomínio. Democracia temperada. No passado homo homini lupus, no presente o contrato social. A vida encontrou alguma ordem na desordem de cada dia.
Habitando dentro desse mundo todos: a senhora alegre, o casal infeliz, a juventude niilista, a garota de programa, a sociofóbica, o vencido da vida, as lésbicas, os humilhados e ofendidos, Pip, Lucíola, Capitu da telenovela, aquele que venceu e perdeu, aquela que achou e esqueceu, pulsão de morte, vontade de vida.
O que o filme de Eduardo Coutinho nos revela além do que já sabíamos sobre o inferno da vida cotidiana dentro de um condomínio de classe média de uma grande metrópole brasileira?
Poderia revelar que dentro do labirinto de corredores, escadas, portas que se abrem e portas que se fecham e de janelas para a paisagem que dentro de cada cubículo daquele habita uma vida infeliz quase sempre, mas que suporta com paciência a própria condição de existir.
Poderia revelar tudo isso e revela mais que isto. Temos a velhinha que sofre o peso da velhice pobre, o velhinho solitário que se abandonou no Brasil tão longe dos próprios filhos, da donzela que goza uma vida artificial sob as veleidades de um grande amor. Temos a vida julgada pelos outros. A difícil convivência com os outros. Os barulhos dos vizinhos, o fato de estar sozinho no meio da multidão.
Não que isto empobreça o filme, absolutamente não é isso que acontece. Mas esses elementos de superfície não são o todo do filme Edifício Master. O que eles fazem é apenas abrir fendas para que possamos penetrar em cada uma das mônadas que habitam dentro dessas outras mônadas mobiliadas que têm janelas fechadas e portas cerradas.
Cada mônada tocada pelo diretor põe-se em movimento e o que era imóvel e maciço se ilumina. O movimento revela o ser. Que ser é esse? O ser que procura. Está nesse ser não pergunta – O que procuro? O que ele quer saber é precisamente isto:
__Quem eu procuro?
Eis o fundamento de cada existência que habita os conjugados do Edifício Master. O outro absolutamente outro, este que eu não sou. Onde achá-lo? Está ao meu lado, do outro lado da parede, ouço sua voz, seu silêncio, seu sono, sua respiração. Sei que ele cozinha, portanto ele se nutre. Escuto-o, está em silêncio agora. Ver televisão. Discute com o marido. Insulta o filho, chama pela filha. Vai ao supermercado. Tem dívidas, está com a casa em obras. Me incomoda. Me dar raiva dele. Posso ser seu amigo? Ouve música agora. Tem visita em casa.
Esse outro que sou eu será tão infeliz quanto eu sou? Saberá ele algo de mim tanto quanto eu nada sei sobre ele? Estar vivo? Estar morto? Se abro a janela há outros lá fora E-X-I-S-T-I-N-D-O. Caminho na rua e o que vejo? Gente, gente, gente. Que existe. Que caminha comigo e eu caminho com ela. Mas estar no meio de toda a gente e não sentir que há toda a gente para viver comigo me dar raiva e quando volto para casa ainda há outros que eu nem sei quem são que vivem comigo no mesmo universo vertical e pago. Tantos habitando o mesmo tempo e se comprimindo no espaço em que habito e me comprimo e eu que estou tão sozinho.
A solidão, a solitude que sufoca os moradores do Edifício Master é a do abandono do outro. Quem é esse outro que eu quero, mas a quem, todavia eu não sucumbo? É o amor no anúncio de jornal. É o filho que abortei. Minha mãe que me trouxe até aqui. Meu pai que morreu sem me conhecer. Tainá minha vizinhazinha. O moleque que cheira cola no calçadão, o prostituto, a prostituta. O porteiro do prédio. Seres que eu não habito. Vidas que eu não sou.
E a
beleza do filme estar nisto: a mineração
do outro, proposta poética mineira. É delicioso vermos como a equipe de
filmagem vai garimpando as histórias dos moradores do edifício. Como em cada
apartamento que abre as portas revela-se a vida e o ouro da existência do outro que reluz sob
os golpes da palavra. A alteridade que me inquieta impondo-se como verdade completa de mim mesmo e do mundo.
A beleza dialética do filme de Eduardo Coutinho revela através de suas explorações dialógicas o ser humano integral: eu minto; eu sou egoísta; eu sou fraco; eu supero; eu já quis me matar; eu quero a fama; eu não acredito em nada; eu ainda quero amar; eu sou de alguma forma feliz, ao meu modo.
Expor que a vida é ruim e que a cada dia vamos superando a própria vida é sem dúvida o que cada personagem que abre suas portas nos diz. E nós que somos também mônadas leibinitzianamente sem janelas nos pomos também em movimento.
__Quem eu procuro?
A pergunta agora é nossa. Chegamos no ponto do filme em que cada morador do Edifício Master é uma parte do que nós mesmos somos. Gostamos de habitar com eles. Gostamos de ouvi-los. Queremos mais deles. São os outros que nós suportamos. Estão do outro lado. Perto de mim há o outro que eu recuso, que não olho, a quem eu não sorrio, em quem não penso. De quem tenho medo.
Assim
o filme de Eduardo Coutinho cumpriu o que se propôs. Observou como o mundo se
organiza e expôs a nu sua pré-história. Quando observou cada presente
viu lá dentro funcionando também o passado. Somos nós a girar dentro da roda da vida.
Como cada morador do Edifício Master nós temos nossas próprias histórias
presentes atreladas ao passado. Somos como aquelas vidas, presas nas teias do cotidiano, clamando pelo outro, garimpando esse ouro que mana nos veios da alteridade. Ele está lá, mas me recusa e dele eu tenho medo, então também eu o recuso.
O
filme? É excelente! para ser excelente precisou fazer sentido como uma
interpretação da vida pela vida, o que inventou é real e o que mostrou como
real pareceu arte inventada para dourar a vida.
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