Valente é o galo
Ele pensou que tinha amanhecido com a luz entrando pelas frestas da janela, mas como permaneceu de olhos fechados não podia compreender logo toda a claridade silenciosa que reverberava pelo cômodo. Como se tivesse chovido. E se tivesse chovido ele acordaria e ficaria deitado esperando que a vigília se revelasse presente e imutável. Mas o homem sabia com uma lucidez calma que não estava mais com sono e poderia acordar. Então ele também sabia que o peso dentro do corpo não era o sono, mas as pedras que pusera no bolso na última noite. Revirou-se na cama puxando o lençol até a altura da cabeça. Cobriu-se. Os pensamentos vieram de longe, no entanto ele sabia que sempre os tivera ali ao pé muito lisos e informes esperando a sua consciência compreender que ele estava enfim acordado dentro do dia. Se tivesse começado desde o princípio teria conciliado a ausência de pensamentos com uma vontade de permanecer na cama sem ideias e sem pensamentos que o pusesse claro e abstrato dentro do dia. Apertou os olhos numa ânsia de esquecer. Não que pudesse mais. Porque é muito improvável que uma pessoa se determine a esquecer para não pensar o que finalmente esqueceu, consiga realmente esquecer aquilo que não deseja nem saber que existe ou existirá. Daí resulta sempre qualquer impossibilidade de que se possa voltar atrás quando não se quer mais continuar porque nunca se quis realmente fazer aquilo que se fez, mas que se pudéssemos nunca não teríamos feito. É isto que ele chamava de arrependimento. Mas o arrependimento era naturalmente desses sentimentos inúteis que não mudam nada quando acontece. Por isso Lisandro era um homem. Por isso era forte e respirava todo o ar que cabiam nos seus pulmões. Pensou em desistir, mas não quis impedir-se de resistir o quanto pudesse. Virou-se na cama. Em verdade estava tranquilo e dócil. A noite não fora tão longa e em cada mesa havia alguém que ganhava alguma coisa, os que perdiam eram muitos, mas tudo ganhando o valor da contemplação e do riso seria muito impróprio. No Silveira quem não ganhava era porque perdia. O bar. Lisandro descobriu os pés puxando o lençol para cima e ficou pensando na felicidade de ter um leito vazio quando se queria dormir. Lembrou-se então de que se se levantasse agora ainda encontraria Isabel na casa. Enfim, para que continuar ajuntando tantas pedras? Se continuasse deitado viriam os pensamentos mais de longe e o acometeriam com seus muitos tentáculos de aranha.
Afastou os lençóis e abriu os olhos dentro da claridade. Então adivinhou que se havia enganado. Não era uma manhã clara de depois da chuva. O sol arrastava o silêncio dentro do cômodo e ele podia ver que o que estava acontecendo dentro do quarto era a saturação da tarde avançando. Sentou-se na cama. Coçou a perna direita. Ali tinha visto pousar uma grande mosca de asas verdes na última tarde quando ele sentara-se para olhar o que acontecia na mesa do bacará. Se pudesse compreender a mecânica do voo teria momentos mais impávidos como aquele. A última carta quando o selo é aberto e a revelação. Ele agora estava acordado. Pôs-se de pé, era um homem no meio do dia. Era um homem olhando a correnteza e esperando que passasse a água. Veio para a sala onde chocou-se com toda a infinita luminosidade do dia. Se tivesse menos dedos poderia romper com aquela má distribuição de luz.
E era muito de tarde. Olhou na sombra e viu Isabel sentada no canto. Era ela. Como não reconhecê-la simples e parada como uma árvore que foi agitada pelo vento durante toda a noite? Pensou em sorrir-lhe reconhecendo sua segurança e força fêmea.
Pensou logo que precisava urinar e voltaria depois da ablução.
Viu-o
sair para o sol. Mas ele pensava que tinha chovido e a terra estava molhada e
cheirosa. Foi com decepcionante surpresa que não ouviu nenhum odor de terra
fria avolumar-se no terreiro e atingir seus sentidos despertos. Isabel o viu de
pé no meio do terreiro. O que ela queria saber? Recordou Lisandro voltara para
a casa e ela o vira entrar pela porta e deitar-se na cama. Que ele não fizera
barulho para não acordá-la, mas ela que nunca dormira. Viu-o desaparecer, mas
não perturbou-se com isto, pois estava certa de que era apenas um breve
encobrir-se e depois o veria aparecer dentro da luz da tarde próspero e coberto
de sol branco. Mudou as pernas de posição e descobriu-se salivando uma saliva
grossa e áspera. Quem me salva se eu? Não com ataque. Que depois de, ela nunca
mais. Agora era preciso olhar as coisas limpas e brilhantes. Olhou
instintivamente em volta de si mesmo. As coisas que ela acumulara com suas mãos
revelavam a presença diária de sua vida naquele lugar. Isso era real porque
aquele era o espaço habitado da sua casa. Olhou com mais atenção e contemplou
sem pressa a pilha de roupa lavada sobre a cadeira. Era ainda seu rochedo e sua
montanha. Ficou parada sentindo a imobilidade do próprio corpo como uma
presença morna e regozijante. Quem menor
que ela no reino de Deus? Mas ela era impura e feliz. Então deixou esse
pensamento improcedente avançar e desligar-se dela. Era assim que deveria permanecer.
Vaga e parada. O homem voltara para casa e ela estava segura e paciente.
Viu-o aparecer sob o sol e olhou-o fixa e exata. O homem permaneceu flutuando dentro da luz e ela o viu pássaro e astro brilhando dentro da claridade brutal. Dessa vez não desviou-se e sorriu aquiescente para ela. Ele parou e olhou para dentro de casa, mas como a luz da tarde era branca e profunda ele não pôde ver tudo de uma só vez e precisou chegar até a porta da cozinha e parar e ficar olhando. Isabel era real. Como estivesse tranquilo e reservado olhou-a sem superioridade até compreendê-la nítida e exangue.
__Então não choveu?
A mulher envolveu-se de uma aquiescência viva e natural, ele estava sobre a margem olhando o rio e sua água. Ela não se desviou e ele caminhou até lá onde a encontrou aberta e disposta. Enlaçou-a e eriçou-lhe os cabelos com os dedos. Era sua mulher. E havia o amor entre eles. Se ele fosse o vento a faria livre e alada como uma ave no céu. Criou dedos sobre a pele dela arrepiando-a e Isabel pensou que era como a água fluindo entre as mãos.
Quando ele saiu para vestir-se ela respirou pela primeira vez e sentiu o ar frio entrar no seu corpo. Como contar-lhe? Passou a mão sobre o ventre onde ela sabia já crescia o fruto daquela árvore e o resultado da grande flor. Lisandro ainda não conhecia aquela florescência que começara de noite e continuara mesmo quando o sol cobria toda a terra. E havia então uma fertilidade táctil e bruta dentro do seu corpo. Sim ela a sentia inquieta e pronta, ainda simples, mas logo semente e depois broto e grandes asas. Cruzou as mãos protegendo-a e amparando-a como mãe. Depois é que Lisandro compreenderá esta realidade.
Quando o homem voltou ela já tinha mudado de lugar e tomava grossos volumes de roupa nas mãos para passar. Eram as roupas que lavara e precisava entregar. Mas Lisandro não tinha ainda comido o almoço. O homem sentou perto do rádio. Ligou-o e ouviu os números. Era a loteria. A sorte cobrira de graças um homem. A graça vinha como uma folhagem verde exposta, como um fruto amarelo sob o sol e dava-se aos dedos mais ágeis que a pudesse colher. Lisandro ouviu os números. Olhou para esses números e pensou que a ideia de apostar em cada um deles era um privilégio de pensamento e saber. Concentrou-se para almoçar o parto que Isabel lhe oferecia. Era o começo do meio da tarde. Agora era que as coisas ficariam visíveis e reais. A música começava no rádio e avançava dentro da casa. Reverberava nas coisas e espalhava mais a luz que entrava pela porta desde o chão até o teto. Lisandro comia o que ela lhe servira e preparara com sua habilidade feminina. Isabel sentou para esperá-lo, nunca se habilitara a caminhar adiante dele. E assim os dois se cruzaram calados e postados, mas era tão tarde.
Era tão tarde e Isabel poderia dar-se algum privilégio nisto. Ela que era fria e constante olharia com avidez o dia para enfim quebrar a casca e ouvir as sementes brilhando na terra. Era importante que pudesse parar e pensar – estou tão crescida e burra. Mas ela se impunha todo trabalho viável, sobretudo era impossível que não fosse assim. Se pudesse ser diferente, era se pudesse. Avançar entre os arbustos apanhando grãos, colhendo bulbos, guiando os animais no campo. Isso ela não faria, não tinha esses braços, não tinha essas mãos, e depois o que faria com o produto do seu trabalho? Não que se recusasse, mas não tinha mesmo como acreditar que pudesse ser diferente. Crescera e acreditara como vespa que fabrica o próprio ninho. Depois ela tinha o homem com quem não precisava se preocupar, mas a quem ela se jungira como uma árvore se enlaça noutra árvore desde tenro broto.
Olhou-o sem rancor, finita e pura. Mas ele sentiu que poderia compreendê-la e sem olhá-la soube de sua presença perene e clara ao seu lado. A mulher era visível e esperava. Lisandro pensou que poderia ouvir sua voz, mas não moveu a orelha para experimentar essa ideia. Acabou de comer o virado e pôs-se em silêncio com os punhos sobre a mesa. Se ele era um homem que tinha o seu contrário, poderia tomar uma porção de terra e modelar uma figura que o imitasse e o fizesse longínquo e fácil. Não que se recusasse à Isabel, nunca que isso. Ele seria ainda melhor do que quando a trouxe para casa. O que ele acreditava é que Isabel calava-se agradecendo o que ele fizera-lhe sem perguntar se precisava agir.
Olhou-a, mas ela não viu que o homem a olhava, ela estirava-se com o pensamento na mornidão da tarde querendo distender-se ao sol como uma folha que não resiste mais. O homem olhava-a sem exigi-la e ela não podia adivinhar o que era que ele buscava naquele campo. Lisandro pensou que poderia vislumbrar alguma mudança táctil no corpo da mulher. Pensou que eram os seios crescidos, pensou que era o ventre crescido. Mas distraiu-se logo e não voltou a pensar e assim não concluiu nada. A mulher olhou o prato vazio e soube que o homem tinha acabado de comer, tomou-o e levou à pia, voltou com uma xícara de café que Lisandro bebeu tranquilo e pacificado com o sol.
Depois que tudo isto aconteceu a mulher pensou que a roupa tinha de estar pronta antes de acabar o dia e o homem abriu as mãos com as palmas para cima olhando o cruzamento das linhas. Curvou-se sobre a mesa e sentiu o cheiro longínquo de uma fruta que amadurecia presa num canto da casa. Mas a mulher empilhara grossos volumes de roupas e começava o trabalho. Lisandro ouviu a música no rádio e ouviu uma mosca que voava, ergueu-se e pôs-se na porta olhando o quintal. O sol não havia sido vencido e a luz era de um demente ardor branco. Ouviu mais uma vez e sentiu que não tinha paciência para tudo aquilo. Ouviu sem outros sons em volta e era a mulher quem trabalhava. Voltou-se para ela, ela o tinha visto e como os dois se viram no mesmo instante da visada única, ela não se conteve:
__Você tem cigarros?
Ele tinha, mas estava feliz com a pergunta. Foi até o meio da cozinha e interpôs-se entre ela e mesa. Ela pensou em dizer que ele não tivesse nenhuma dúvida e que se pusesse tranquilo porque ela afinal era todo um campo e uma messe madura. Lisandro sucumbiu diante de sua lavradora. Olhou-a com mais força e tomando-a não pôde conter-se que não a estreitasse que não a amasse. A mulher sabia disto, mas estava ainda mais agradecida dele ocupar-se dela e confirmar tudo.
O homem deixou-a e foi à rua. Postou-se de pé na porta da rua. Olhava para fora sem nenhuma vasta curiosidade. Havia em tudo um ardor impregnado. Mesmo as pedras da rua se calcinavam silentes e imobilizadas ao sol. Havia em tudo um tremor de quietude e vaga lembrança de calor arrefecido. O homem teve raiva. O povoado todo dormia e era como um réptil espapaçado e mole ao sol. O homem teve raiva. Compreendeu que só os cães e os meninos eram livres. Observou-os, efetivamente eram os cães e os meninos sob o castanheiro. Quem inventara aquelas tardes tinha que ser morto com até doze tiros. O homem teve raiva. Afastou com os dedos esses estratos de tensão que se enovelavam diante dele e saiu para a rua.
Ainda que a tranquilidade fosse residual, Lisandro compreendia que estivera sempre pronto para voltar. Caminhava com vagar e seus passos eram firmes nas pedras, mas ele sabia que se olhasse para trás poderia voltar pelo mesmo caminho trilhado. Estava convencido disto. Não havia mesmo nenhum meio de que ele pudesse esquecer como pisara sempre a mesma terra e calcara sempre as mesmas pedras. Sem dúvida seus rastros estavam lavrados no granito da rua. Ele se lembraria disto quando precisasse voltar.
Aproximou-se dos meninos e parou iluminado por um grande raio de sol que penetrava nas folhagens da amendoeira. Eram meninos e cães. Os cães dormiam resfolgantes soprando pó com as narinas, mas os meninos apostavam a birosca. Lisandro pensou que isto não era tão vasto e tranquilizador como ele supunha e logo se dispôs a voltar pra casa. Como viera até ali? Estivera até aquele instante vário e comum, mas agora tinha coisas que ele sabia dentro do dia e sua memória eriçou-se toda lembrando.
Deu a volta ao tronco do castanheiro para poder esquecer. Mas não havia como esquecer porque ele fizera uma escolha imprópria. Encostou-se ao tronco e vieram as sensações de miséria e impotência. Estava amparado pelo grosso tronco. Não, não era ele, o homem, que amparava a amendoeira e suas amêndoas verdes e em cachos, eram as raízes fundas e abandonadas no chão que amparavam o homem. Se pudesse não mentir poderia afirmar que ele era um homem cansado. Mas ainda não chegara o momento de encontrar esse amparo. Assim, sem poder conter-se abandonou-se ao amparo do tronco e espalmou a mão direita sobre as asperezas das escamas e nódulos da casca porosa.
Um cão o viu e voltou a dormir. Um menino o viu, mas ele não era um ser útil naquele recorte do tempo. Ele tinha sido imprudente e seco caminhando para aquele ilimitado. Como sairia de dentro daqueles muros? Só gritando. Só estendendo as mãos para tocar com os dedos a limpidez daquele evento. Os meninos tinham constituído suas apostas e havia um vencedor unânime. Lisandro o viu ufano e coberto de glórias. Era até possível tê-lo a vista e cumprimentá-lo com uma palavra. Quantos no mundo tinham a prática e o saber de dizer – lanço-me para a sorte, venço sempre. Mas Lisandro não queria ocupar-se com isto, pois se continuasse veria toda a sua memória revoltada em pensamentos que ardilosamente poderia criar em ondas que avançariam constantes depois que a outra havia lavado a argila da lembrança. Voltou a si descobrindo que a amendoeira impunha-se como uma força superior feita de raízes, folhas, galhos e frutos verdes. E era uma ampla sombra imóvel e sem vento. Desinteressou-se afinal, e concluiu pela vacuidade de todas as buscas. Ele era um galho secando esperando a primeiro raio para tombar na terra. Não quis mesmo continuar compreendendo isto, então se pôs de volta para casa. Quando chegou a casa nem precisou olhar para trás porque o homem estava ao abrigo do se lar onde os pensamentos ficam resguardados e o coração cresce tranquilo como uma planta na sombra.
Ergueu-se acima do rés do chão, pois caminhava calcando o tijolo nu do assoalho da casa. Por ali tinha caminhado outras vezes cruzando os próprios rastros em muitas direções. Impossível ocultar-se lá dentro. Ele seria então um homem revelado e descontínuo. Mas pensou melhor e como não tinha o esteio da memória para continuar parado ou caminhando para trás, Lisandro chegou à porta da cozinha onde a mulher arrematava o serviço e se abandonou inutilizado como um homem. Agora era que as sombras poderiam se recolher e ele teria que pensar com cuidado em como se amparara no tronco da amendoeira. Mas ainda agora recusou-se a aceitar que a impavidez daquele instante fosse o único momento verdadeiro daquela tarde que se secara num tempo que se chamava duas horas da tarde.
Para não ter que deter-se mais aceitou uma primeira raiz e desistiu de lutar. Aceitou fixar-se no chão e impacientou-se com sua presença ali. Como poderia superar aquela natureza quase desfolhada? Mas então ele ainda era um galho seco? Não, ele era raiz. Mas então ele ainda era um galho seco? Não, ele era um homem, e era uma raiz começada. Mas então ele ainda... era um galho seco. Era um galho seco, mas havia um passarinho pousado nele. Inventou isso. Nunca que compreendia quando inventava esses estados de pensamento. Não tinha força necessária para tudo isto e achava melhor abdicar e retroceder para a superfície do que acontecia sob seus olhos e tinha efervescência fria e firme, estática e num molde fácil de pensar e compreender. Sobretudo ele não gostava de se demorar quebrando o tempo ou as coisas que tinha nas mãos para ver a semente lá dentro. Era uma forma de viver sem esforço.
E ele era um homem que sentia prazer em viver. E ele era um homem que sentia necessidade de impor a si a improdutividade do tédio. A vida inteira vivida sob os grandes auspícios de olhar a seiva do fruto e cheirá-la e senti-la espumante e loura, mas não tomar o fruto nas mãos, esperar. Sim, sim, sim. Esperar que o fruto viesse a sua boca e se oferecesse sem tréguas.
Mas se isto era evidente por que se intranquilizava? Nem todo tempo era assim, por isso o homem soube que era efeito do dia e que ele precisava apenas de um instante parcimonioso de tranquilidade reverberante. Separou-se do silêncio da casa e recolheu-se ao quarto onde encontrou a cama pacientemente refeita depois que ele acordara ao meio dia.
Deitou-se e gozou o prazer dos lençóis frios e estirados e lavados que a mulher pusera no leito. Se as flores de pano cheirassem ele estaria deitado sobre um jardim coberto de retalhos de flores e folhas. Fechou os olhos para interromper a claridade que o obrigava ao esforço da ideia e começou a esquecer. E o esquecimento vinha coagulado em manchas que emergiam de dentro do seu desejo de estar ausente. O esforço da não-ideia não o aprazia tanto porque via-se constrangido a produzir novos pensamentos que sucumbissem aos que viessem vindo um após o outro. Quando pensou em desistir, não desistiu e foi com alívio e emoção que ouviu que uma mosca tinha se perdido dentro do quarto e voava nas camadas de treva baça que iluminava o aposento.
Isso foi uma felicidade tão constante porque enquanto ele fixava sua atenção e seus sentidos no voo do inseto, pôde erguer-se límpido e tatear o cansaço de um sono sem mácula chegando para fazê-lo inerte e cansado. Era o seu limite. Era um homem desproporcional caminhando e sem sustos no meio das raízes que avançavam sob a terra dedilhando a seiva da vida. Lisandro estava ausente, era um corpo pousado sobre as águas paradas. Vieram outras moscas e também pousaram sobre suas pálpebras, sua boca, suas mãos. Mas ele era um animal vivo e elas não tiveram nenhum interesse nesse réptil brunido.
O trabalho de Isabel havia crescido e ela estava feliz como quem borda lírios. Ela era aquela que sentia as sementes crescendo nas mãos. Como lançá-las à terra se eu posso alimentá-las com minha seiva, com meus peitos? Esse era um pensamento, mas não era a verdade. Agora que ela era uma mãe e verteria sua seiva como um fruto rubro, ela poderia parar e encarar o sol para esperar sempre a luz algente da chuva. Água, terra e ar, eram o que ela precisaria para reproduzir o fogo. Mas ela já sabia que uma semente queimava dentro dela e arrastava sua terra para os lados querendo encontrar a luz que fosse mais brilhante e protetora. Como pensar que uma planta abandonada pudesse crescer na sombra de uma grota ou na alegria de uma planície semeada? A mulher pensara então que era uma pedra onde as sementes morrem ou uma sarça onde as sementes secam. Mas o que viera a ser? Uma mulher. E agora ela se anunciava feminina e absoluta.
Mas essa terra nubente tinha o ardor hábil de quem sustinha um campo inteiro com ervas e heras que se alimentavam de sua força e mutabilidade. Não teria nenhum medo disto. Ela mesma não poderia acreditar que pudesse temer o que crescia dentro dela como uma vida e se desenvolvia como um ser que aparece reunido às coisas e ao próprio dia. O homem também estava dentro dela e ela acostumara-se a tê-lo crivado na sua carne. Lisandro habitava às suas entranhas e agora ela poderia tranquilizar-se, pois quando olhasse no espelho entenderia a extensão do mistério de sua lavra.
Acabou o serviço e arrumou os grossos volumes de roupa lavada e passada num fólio contínuo e pesado. Amarrou-o e sentou-se na cadeira que estava à disposição. Era a sua pedra de descanso. Distendeu-se toda agradecendo o serviço completo e abriu-se como uma flor que espera o sol tocar suas pétalas. Estava de olhos abertos porque ainda queria contemplar com alguma convicção a sua messe e sorrir compreendendo a inútil felicidade que se transfundia das coisas completas.
Descansou os olhos no chão. Precisava lavar o chão. Descansou os olhos nos pés da mesa. Descansou os olhos nos próprios pés. Membros de operária. A abelha que produz o mel. Como viera até ali? Pensou que poderia explicar-se esse fato. Então pensou em Lisandro subtraindo-a ao padrasto. Onde a mãe? A mãe refém do padrasto. Ela seria a próxima. Um dia ele pediu. Ele o bode que escravizava. Mas ela correu para fora. Ele pediu assim: “Deixa ver a rachinha?” Quanto tempo isso? Era da idade que ela se lembrava. Oito anos. Era uma menina que pensava sempre em colher os botões das buganvílias que sempre tinham flores. Então ela corria sempre e colhia essas flores. Quando aconteceu ela começou as preferir as flores vermelhas. Ele não teve medo. Ela que fora obrigada a tomar as partes do bruto na mão. Calada para a mãe não chorar. Mas foi ela quem chorou e teve muito medo depois. Nunca que tivera tanto medo enquanto isso se reproduzia intacto e ela tremia querendo morrer. Suportava toda imóvel os percevejos sob seu colchão para que o padrasto não a visse acordada. Tinha tanto medo. Medo constante. Só pudera nunca mais ter medo quando Lisandro a viu espalhando pedaços de buganvílias no lodo do rio. Quando isso? Quando não era mais menina. Mas como seu coração saltava não quis continuar indo por ali e sem transição decidiu seguir pelo desvio mais próximo.
O que era? Era uma lagartixa que descia da parede e corria pela terra quente do quintal. Supôs que aquela flor era inútil e parada para ser suficiente pra explicar o dia. Estava convicta que poderia esperar mais um pouco. Lisandro se imobilizara na cama e tinha um sono feliz. Olhou para o quarto onde ele recolhera-se. O vento passava dentro de casa, então lá fora o vento era mais forte. Olhou o quintal e o vento soprava com uma exatidão indelével e morna. Mas mesmo o vento passa e fica somente o silêncio amparando tudo. Foi assim. Ela permaneceu onde estava. Os olhos vendo o que acontecia perto e longe. Longe não dava para compreender muito. Longe o céu era azul e grossos rolos de nuvens avançavam, também havia os pássaros pretos iluminando tudo. Perto era a cerca do quintal. A cerca do quintal arruinada por quantas intempéries e avanços do tempo. O ar era longo e ela poderia respirar com a calma de uma ductilidade perfeita.
Quando o homem acordou compreendeu que tinha dormido, mas não tinha sonhado. Pensou então na última coisa transparente que ouvira e veio-lhe a treva fina do quarto. Mas quando sua atenção voltou-se para si mesmo ele ouviu outro ruído aquecendo-se na sombra. Era a mosca presa na teia de aranha. O homem recordou-se do que o afastara da memória e concluiu que a vida era isso mesmo.
Sentou-se na cama e antes de acostumar a visão à nova claridade viu a mulher parada na porta do quarto. Ela o olhava. Então ele a viu também porque ela estava contra a luz da tarde que acabava lá fora. – Que foi? Quis saber, mas ela não se explicou e apenas ameaçou avançar para dentro do quarto. Ele a esperou, mas ela não prosseguiu e ele reclinou-se para trás cansado. A mulher tinha aumentado de volume. Essa ideia era superposta, mas ele quis repeti-la ainda uma vez para constatar se pensara isto. Se houvesse mais tempo ele a olharia e lhe perguntaria se estava doente. Não doente como quem perde a calma do sangue, mas doente de ter que explicar alguma coisa próxima. Essa era outra ideia que ele não se esforçaria para alimentar e reter em si. Por isso largou-a antes de recompor-se e voltar-se para a mulher.
__Vou entregar a roupa.
Era ela quem dizia e ele compreendeu a natureza da palavra. Como tinha compreendido não achou que fosse necessário retribuir-lhe. Olhou-a sem pressa e pavor. Ela estava satisfeita e quis saber ainda isto:
__Você tem cigarros?
Ele olhou-a confirmando porque se lembrara de que fumava e poderia ter reduzido-se a nada durante a tarde apenas fumando um úmido cigarro antes de sair à rua.
__Tenho. Era a resposta. Mas havia outra coisa. Vou ao Silveira, você volta e talvez eu não.
__Se precisar de dinheiro tenho dentro do vaso de louça.
Era ela aceitando a caça noturna. Olhava-o compreensiva e tranquilizada. Como estender-lhe os braços? Tinha fome de tocá-lo. O homem estava lânguido e coçava a perna direita. Será que fora ferido no calcanhar? Para uma luta sem sucesso qualquer ferimento estorvava. Coçava-se. Mas de onde vinha a dor que imaginava constante? Tinha a mulher e poderia chamá-la. Inclinou-se para frente justiçado.
__Não preciso ganhei no bacará.
Mentiu feio e ele sabia que tinha mentido pra ela e que ela nem se esforçaria para querer acreditar que ele mentia. Os dois se olharam felizes, compreendendo-se. Ele ouviu o último zumbido da mosca antes de perder-se para sempre nos palpos da aranha que lhe armara a rede. Ela pensou nos últimos instantes do sol que iluminara aquele dia vasto e ardente que se acabava.
O homem ergueu-se, caminhou até a mulher. Quando a claridade de fora do quarto iluminou-a ele a viu toda recomposta ao seu volume inicial. Abraçou-a e cobriu-a com sua força, com seus braços erguidos sobre o torso ereto da mulher. E ele que nunca a tivera tão rígida e forte pensou que era como o tronco da amendoeira que voltava à sua memória e o suplantava outra vez.
A mulher saiu e o homem pensou que estava sozinho. Olhou em volta e eram as paredes que o envolviam. Olhou em volta e eram nas paredes que cresciam grossas manchas de umidade e pátina evidente. Então abandonava-se ao tempo. Quem era para assim proceder? Veio-lhe uma febre que o ameaçou soçobrar, mas Lisandro não tinha dúvidas e, portanto não poderia aceitar quebrar as duas mãos. Sobretudo precisava das duas mãos para recompor-se e pôr-se em marcha quando caminhasse na rua. Não tinha dúvidas. Esqueceu então as mãos, pois só estivera oscilando naquela pedra por um instante breve e incompleto. Aceitou a necessidade de voltar atrás. Para onde mais voltaria?
Seguir é que nunca fora um projeto seu. Estendia as mãos para frente, colhia quando havia e quando não havia guardava-as no bolso das calças. Era assim que procedia e vinha aprendendo a conviver com a essa necessidade de proceder tranquilo diante das coisas que se consumavam sem ele. O homem olhou em volta e não viu a mulher que tinha saído e ele compreendeu isto. Não havia mais tempo para nada.
A casa estava parada e resguardada era imprudente esperar ali. Lisandro caminhou para fora. No quintal recebeu um golpe de ar escuro que o fez parar. Longe eram os últimos minutos da tarde. Perto era o vermelho do poente iluminado. No chão era a terra vertendo o calor sob o primeiro efeito da noite. Sentiu a terra imóvel sob seus pés. Sentiu as pedras que se resguardavam dentro da terra. Se tivesse ferramentas: pá, enxada, cavadeira, entraria naquele ventre da terra e colheria essas pedras para pô-las nos bolsos e tê-las como uma propriedade sua. Mas até isto seria coisa inútil e desagradável. Até isto seria um instrumento que não se necessita construir.
Respirou largo procurando apaziguar-se, pois ele deveria ser como o que começa e termina sempre. Passar e não se dar conta por isto. Se era assim por que ele ainda insistia? O homem pensou e escolheu que não deveria mais sucumbir a estas metamorfoses de raiz na terra. Ouviu-se em silêncio e ficou satisfeito com isto.
Foi ao banho e não tinha mais febre, o calor era da terra e o frio era da água. Foi o banho que o reconduziu ao seu estado humano. Sorriu-se para o pardo cobre escuro da sua tez. Tocou-se com os dedos. Não se recusou ao toque, assim ele ainda poderia ser feliz muito tempo depois de ter abandonado o vício. A água escorria na sua pele, a água secava na sua pele.
Abandonou-se a este estado simples e sem medo esperou que o ar evaporasse a água que se cristalizara em seu torso e nos pelos grossos. Agora estava reconstituído e não tinha pressa, por isso estava parado, mas não esperava, apenas olhava o exíguo espaço onde ele e tudo o que era ele cabia sem esforço. Quem o veria agora? Tinha muitos instantes nas mãos, mas nenhum ele usaria. Ficaria estático, apenas queria isto. A suprema virilidade ardendo no seu corpo. Mas ele não era um animal inquieto e nunca esforçara-se para distender amplas asas. Era dos que plantavam e esperavam na sombra que viesse o fruto um dia. Mas se a semente não crescesse ele não voltaria à terra para descobrir o segredo da sua morte.
Eu sei esperar. Virá um dia. Voltou-se para si. Acabou com o que vinha acontecendo e saiu do banheiro. Desta vez estava prevenido sobre o ar e não teve nenhum choque quando viu a noite começada e a tarde resistente boiando na superfície do dia. Do outro lado da cerca era a vizinha que o olhava. Mas ele nada com a vizinha e não tinha nenhum interesse em descobrir como ela viera até lá. Entrou na casa para vestir-se e vestiu-se. Depois cobriu-se com água de colônia e penteou-se sentido nos dedos os longos fios pretos e lisos curvarem-se molhados.
Ergueu-se acima do chão e pensando que ele era um homem que fumava acendeu um cigarro e pôs-se a fumar na porta da rua. Olhava para o poste que iluminava a primeira treva da noite. Não viu nenhuma estrela no céu, mas permaneceu parado, aguardando essa primeira surpresa. A noite já ardia e o vento que começara a soprar tinha se imobilizado nas folhas mais altas dos fícus e dos castanheiros e das amendoiras da rua. Passava um cão e depois passava um homem e com o homem passava um burro e com eles todos, vinha o cansaço. Mas Lisandro soprou a fumaça para cima e viu a primeira estrela luzindo fria e transparente através do véu do fumo. Quis distrair-se com isto, mas só pôde adivinhar o tempo. Terminou o cigarro e outro cão vinha pela rua. Para não dar com outro homem e outro burro e outro cansaço Lisandro retirou-se para dentro. Foi ao espelho, recompôs-se do que vira e saiu subindo a rua.
Caminhou pisando nas pedras. Ouvindo que ele era um homem que caminhava. No Silveira havia música. Ouviu através do silêncio que vinha de dentro das casas. Uma criança chorava presa fora do sono. Onde a mãe? O homem apressou o passo para chegar mais longe daquele drama. Onde a mãe? Era só uma criança e não teria como atravessá-lo. Caminhou pela calçada. A frente mais uma amendoeira. Teve medo e pesou que se voltasse poderia seguir pela outra rua. Mas se voltasse nunca seria o esforço de abrir novo caminho. Ele que sempre privilegiara o que fora mais simples. O homem caminhou ainda inseguro alguns passos, mas um gato que nasceu das sombras de um telhado pulou a sua frente e o fez assustado e destemido. Atravessou a sombra sem olhar para as escamas oblongas do tronco, mas mesmo sem pensar nisto, ainda sentiu o tremor das raízes crescendo no subsolo.
Mas a noite era sem vento e ele ouvia a tranquilidade que se crescia dentro das casas. Inventou a ideia de que poderia passar e olhar através das janelas abertas para a rua. Mas ele não tinha a calma necessária para solicitar isto a si mesmo. Baixou os olhos ao chão, fixou-se nos próprios pés e só olhou para a noite quando viu que estava sob o teto do bar.
O bar era o Bar Sorriso. O lugar do Silveira. Dentro os mesmos. Elefantes de fígado esponjoso. O homem ainda não estava dentro e pôs-se de pé no umbral da porta central. Olhava para a rua de um ponto de vista seguro. Ouvia as vozes no fundo do bar. Outros chegavam. Ele fumava. Sim tinha acendido outro cigarro. Passou os dedos no dinheiro guardado no bolso da camisa. Afinal sempre aceitara o dinheiro da mulher. Se ele ganhava aumentaria o lucro. Estava protegido dentro da noite. A música da radiola do Seu Silveira. Pediram o rádio. Os números da loteria. Onde melhor luz? O homem acabou o cigarro lançou fora a ponta. Viu-a rolar pela terra e queimar a poeira vermelha da rua. Viu-a queimar e apagar-se. Quando não havia mais nenhuma curiosidade no fato olhou por cima das casas. O Silveira estava nos fundos da cidade. Molambos presos nos espinhos, cães velhos subindo para o matadouro. Fedor de urina no ar áspero. O homem curvou-se para frente desfazendo o nó de uma centopeia parada nas gretas do assoalho.
Desceu um degrau da calçada e dispôs-se a caminhar em frente do bar. Passou a mão no maço de cigarros e pensou que outra vez poderia fumar. Esqueceu-se de acende o cigarro porque olhava um cavalo parado amarrado no poste. Como era um cavalo parado o homem não o compreendeu logo. Precisou olhá-lo sem pressa para entender que o animal ainda conservava sua precisa essência de cavalo. Era útil ao homem e caminhava num campo de erva. Mas era um cavalo parado. As mariposas perdidas na luz do poste caiam-lhe no dorso e ele estremecia. E isto era tão pesado para o homem que ele só desejou juntar-se aos outros homens e ouvir como eles caminhavam solenes e imperturbáveis entre as paredes do mundo.
Olhou para trás contendo-se. Apoiou-se na parede e sentiu a caliça estável que o sustinha. Era tudo outra vez que voltava. Mas ele não se concederia mais uma vez. Aproveitou que chegavam e o olhavam e acompanhou-os para dentro do bar. Foi como se tivesse aberto o buraco das fezes. Foi como se o cheiro imperioso de merda o tivesse brunido por dentro.
Teve um princípio de náusea e sentiu as pontas dos dedos. Olhou quem limpava o balcão e era o Silveira. Olhou quem ocupava o bilhar e era o Bento e o Rodrigo. Olhou quem bebia sentado e era o Manuel, o Coque e o Pedrinho. Olhou quem ouvia a música e era o Quim. Mas ele estava no centro da espiral e soçobraria se não encontrasse sua enorme engrenagem antes que tudo acontecesse. Viu as garrafas amparadas e empilhadas. Viu os copos sujos e reluzentes. Parou diante da luz amarela e fria do ambiente e descansou calado e trêmulo. Já agora tinha um coração argênteo. Sufocou-se e foi respirando sem relutância o ar até que seus pulmões tinham parado do susto.
Sentou num banco e apoiou-se na parede. Ouviu a própria respiração. Mas afinal estava parado. Se não possuísse a certeza de emergir visível de dentro daquela treva não imploraria sem medo. Olhou o que ouviu. Era a música que rodava vibrando. Quem se lembraria de baixar aquela música? E era uma música antiga, era mesmo uma música ingênua. Poderia quebrar-se ou romper-se num súbito silêncio. Veio-lhe um pensamento e apoiou-se nele inclinando-se para frente. Vim até aqui e estou amparado agora. Como procedera até este instante? Como cavalo parado. Como tronco imóvel. Como raiz não. Como galho seco. Tudo que ele tinha adiado voltava a ser claro e ruminante. Mas que não ficasse penando e esperando, esperando, esperando.
Mas o que ele mais queria então? Sempre fora um homem que olhava os frutos e não se impacientava. Olhava sob a folhagem e vinha o vento, e vinha sol e o fruto que já era maduro e doce caia-lhe nas mãos. Isso era bom porque o impedia de algum esforço. Já lembrara antes que o esforço tinha que ser essa coisa mínima e transversa que separa um homem do sono. Tão fino e movente que nunca se impõe como argila ou pedra. Era assim que ele era. Não o olhassem de outro modo. Tinha essa alegria de viver.
Inclinado para frente com o corpo mal voltado para as coisas que aconteciam Lisandro espalmou as mãos sobre os joelhos. Agora observava com a atenção de todos os sentidos abertos. Era uma aposta na mesa de bilhar. Ele ardia para ver isto. Dez fichas. Toda a fortuna de um homem. Vieram outros para ver e agora eram muitos expectantes. O primeiro a perder não leva nada. Como tinham chegado àquela aposta? Ninguém ouviu o que tinha sido antes. Ele estava inclinado para frente e nada mesmo não tocara com a atenção. Bento e Rodrigo essas duas sortes batendo-se. Como não havia outros instrumentos foi com gesto aquescente que todo mundo parou. O Silveira esperou a máquina rodar outra vez.
Mas o homem não continha toda a calma de que necessitava e antes de acabar tudo ergueu-se do banco e foi até a porta. O homem era Lisandro. Postou-se no umbral da mesma porta, mas ainda temendo o perigo não insistiu em olhar para fora e voltou-se para dentro pra ficar olhando de onde estava postado, do umbral da porta central. Também ninguém alcançou acompanhar tudo. Havia no ar o silêncio de outras batalhas.
Quem previu tudo foi o Braz:
__De modo que hoje vamos à rinha.
Eram os galos do Braz e eram os galos do Quim. Houve então o silêncio arrastado da espera quieta. Os rostos sorriam e agradeciam. Seu Silveira não se animava logo.
__Abra as apostas patrão.
Lisandro viu o Silveira ardendo na luz amarela do salão e acomodou-o no seu campo de visão. Mas o homem não se moveu e da porta onde se postara rígido também não adivinhava o queria acontecer. A fala do Braz pedindo apostas não repercutiu e este instigado pôs o seu combatente sobre a mesa.
__Se ele perde sirvo-o guisado.
Foi a chave que abriu o que ia acontecer. Houve apostas e quem não quis ficar no salão do bar pôs-se para o quintal da casa onde o Silveira armara o tambor. Mas era noite e Lisandro abrigou-se na sombra. Do outro lado havia o morro onde crescia a mata e a devastação. Sentou-se no banco, mas dessa vez não apoiou-se em nada e cuidou de não se inclinar mais, poderia oscilar e assim cair. Se ficasse ereto estaria seguro. Veria uma luta e o sangue que brilharia rubro e claro. Não viera mesmo por isso? O gozo do sangue visível. Eles eram todos homens e eram todos humanos. A morte voraz indefinitiva, mas constante. Se viesse os encontraria suspensos e expectantes. Se acontecesse os permitiria pensar que era apenas uma perda substituível.
E
eram duas aves iguais, mas inimigas. Tinham a mesma natureza de galo. Duas
asas, dois pés, um bico, uma cabeça que se projetava para frente como acontece
em todas as galinhas, eram galos que serviriam às galinhas num terreiro onde
dominassem, mas que se combatiam em fúria.
Exigiam o sangue e a dor prostrada do outro. Mas disso não gozavam. Eram galos e conheciam outros galos iguais como eram todos os galos que existiam, mas na refrega imposta não tinham memória de que habitavam um galinheiro comum onde nasciam de ovos oblongos e brancos e cresciam sob o mesmo calor de tantas outras galinhas iguais.
Porque eram galos não sabiam da dor e da morte. Não sabiam da luta e não previam o fim da luta. Nenhum sabia como cessar um dia de lutar. Nenhum lembrava-se de parar e respirar descansando para reunir novas forças. Mas a luz que vinha de cima era branca e eles tinham que lutar. E quando um galo ofegava o outro galo não usava o tempo para vencê-lo, atacava-o, perseguia-o, trazia-o para novo combate, sem vencê-lo nunca, mas o outro que se imobilizava não estava vencido nunca e voltava para novo assalto. Assaltava e não tinha forças e ofegava, mas perder era morrer, porque não havia um ovo nem um galinheiro em disputa naquele combate. O que se combatia era a morte, e o que se impunha como forma final da luta era a morte do outro galo. Com isto o galo que ainda estivesse de pé descansaria e voltaria para o galinheiro onde teria ração e água.
Quando terminou e o Quim pagou ao Braz o homem olhou a terra e pensou nas grossas manchas do assoalho. Sangue e fezes de quem perdeu. Que ele estivesse sempre resguardado daquela fúria. Não acompanhou logo os outros de volta ao salão do bar. Estava sentado e tinha dentro de si uma penumbrosa sensação de tranquilidade fria e simples que o totalizava. Lisandro era um olho que olhava. O vento soprou nas folhas da mangueira trazendo-o para a superfície onde ele contemplou o farfalhar da árvore. E era uma árvore com um tronco velho e grosso. Mas era um tronco liso que não oferecia nenhum perigo. Ouviu ainda mais o vento, as vozes e a música que voltaram vivam dentro do bar.
O homem abaixou-se para colher um pouco da calma que ficara imóvel ali onde ele se quedara. Também apanhou uma pena e era um despojo do perdedor. Agora que todos tinham se retirado ele voltara ao campo para recolher os despojos do perdedor. E isto era uma honra. Mas descobriu que poderia cansar-se disto e quem o visse lá de dentro pensaria que ele. Levantou-se e olhou o céu. Fumaria e seria então uma estrela na terra. Acendeu um cigarro e voltou ao salão.
Quando tantos já se haviam retirado e a alegria do recinto se resumira ao langoroso bacará inaudível o homem pensou que podia voltar para casa e dormir. Estava sentado numa cadeira e já tinha fumado e já sabia quem ganhava e quem perdia. Estirou-se e observou-se ao longo das pernas até o limite dos pés. A cadeira o apoiava e ele não tinha medo de estar naquela margem. Mas desistiu mesmo porque tinha sono e não queria mais. Acendeu um cigarro e saiu fumando para rua.
Recebeu todo o ar que previra no rosto e olhando em volta viu a noite quieta e completa, mas não viu mais o cavalo parado. Respirou todo o ar fertilizado que vinha nascendo com o minguante e pôs-se no caminho de casa.
Seguiu pelas vielas iluminadas, mas quando parou pra urinar compreendeu que necessitava para isto da tranquilidade na treva. Seguiu para uma sombra espessa e pôs-se a mijar com a calma de um boi no campo. Era o gozo do líquido quente e untuoso que ele solicitava para si. Agora compreendia como eram felizes as crianças que punham a pombinha pra fora e faziam onde queriam fazer.
Avançou pelo arruado e a lua era um minguante no céu pleno. Respirou largo como um cego querendo ver o acontecia próximo e o que ele viu foi um cão saindo da sombra. No princípio teve medo, mas depois o medo era apenas um cão visível parado mais a frente. Caminhou pensando em desviar-se do animal ou parar sob um poste aceso. Não desviou-se nem parou e o cão o seguiu.
Pronto, agora ele era uma pessoa seguida por um cão. Pensou abaixar-se e apanhar umas pedras para lançar ao cão. Também recusou-se isto e desceu pela rua, estaria logo a porta da casa. A rua era de pedras e amendoeiras, castanheiros e fícus nas calçadas. Cada sombra daquelas guardava um cão vigilante e se todos o seguissem ele não teria como atender a todos eles. Tranquilizou-se retendo-se no vento que subia a rua. E era um vento areento que ele o obrigava a fechar os olhos. A noite era infinita. Avançou mais. Caminhava de modo constate e total.
Quando terminou de descer a rua olhou para trás e viu ainda o cão seguindo-o. Estava em frente da casa e não tinha mais medo. Parou antes de abrir a porta. Voltou-se completo para o cão e este parou e olhou-o calado. Eram dois animais, eles presos na mesma noite escarlate. Abaixou-se e apanhou uma pedra ao meio fio. Quando ergueu-se o cão já fugia assustado, ainda atirou-lhe a pedra, mas sem esperar o efeito disso empurrou a porta entrou na casa.
Dormiu grosso e compassado. Sentiu calor no sono e não sonhou. Sentiu mesmo que suava muito e não sonhou. E entre o sono e algum sinal de consciência afastou de si os lençóis para dormir mais. Dormiu outra vez. E o sono veio em camadas que eram suaves e álgidas. Só voltou a acordar quando o dia era alto e irrestrito.
Uma vespa entrara no quarto e o trouxera de volta de dentro do reverbero de suas asas zumbindo. Pensou que alguma coisa tinha se quebrado, mas verificou-se e compreendeu que todo ele estava intacto por dentro. Abriu os olhos acostumando-o a nova claridade. Já era tão tarde e ele tinha dormido tão consolodamente. Descobriu então que tinha fome e pôs-se de pé adivinhando com o pensamento que precisava comer para recompor-se primeiro pelo estômago. A vespa voltou a voar dentro do quarto e o homem que tinha se esquecido dela não chegou a compreender o que era aquela surpresa. Mas sem nenhuma voracidade aparente precisou esquecer aquilo que acontecia sem anunciação e saiu do quarto decido para aceitar o seu destino fatal.
Encontrou a mulher sentada na cozinha quebrando pedras. Estava parada e olhava o ar sem entender logo. Parou sem efetivamente contemplá-la. Seria ela uma estátua de sal. Mas a mulher moveu-se e ele aceitou-a assim macerada e longínqua. Para não ter que compreendê-la dentro daquela fatalidade que ele trazia, saiu para o quintal, o ar quente da tarde iluminou-o parado, mas ele foi ao banheiro para as sujas necessidades humanas.
Quando voltou a mulher o recebeu solícita e extática. Serviu-o como uma mulher e ele sentou-se para gozar o que acontecia agora. Comia com a voracidade da fome que guardara. Isabel o olhava e quando sentiu-se tão segura que não tinha mais medo de recuar chamou-o e disse:
__Então agora eu terei um filho teu.
Sem parar de comer o homem olhou-a e acreditou no seu rosto. Ela era lívida e anunciativa. Chegou a compreender o que ela dizia-lhe e pensou que poderia afirmar que era verdade e que ele já sabia. Mas ele não sabia e teve a surpresa de ter ouvido o que a mulher confirmava quando ele é quem deveria ter previsto os sinais.
Terminou de comer sem nenhuma impressão correta sobre como afastar a tensão das assas da vespa. Pensou que havia esquecido o que lhe acontecera no quarto, mas logo veio à sensação de que ainda guardava a mesma brutalidade. A mulher veio com o café e ele fez-se superior e tácito. Finalmente olhou-se e viu-se parado com a xícara nas mãos. A asa da xícara quebrada. Então a mulher lhe falara? Sorriu-lhe quieto e agradecido. Ela cruzara as mãos sobre a mesa e ele estendeu-se para frente pra ver se ela trazia alguma pedra fechada nas mãos. Não viu nada, voltou-lhe a sorrir e a mulher tremulou por um reduzido instante.
Mas ele já tinha posse de tudo. Acabou o último gole de café que era mais doce que os outros e estirou-se na cadeira. Suas pernas tocando a perna dela por baixo da mesa. Todo ele estava terminado agora. Nada havia se quebrado, tudo estava iluminado por uma luz ampla e crescente que se impunha em muitas camadas planas. Agora era só pegar com as mãos e não se ferir nas arestas. Mas o que é que ele estava pensando agora? Viu-se tão difícil e abstrato que não era ele naquele espelho.
Veio-lhe que a mulher já tinha suas raízes afundadas na terra e que era ele quem amparava-se no tronco. Mas então se assim é, como aconteceu de vir novos frutos depois das flores? O que ele tinha visto não era um ovo, não era a revelação que aparecia com a casca do avo rompida. O que ele tinha visto era o anúncio e a confirmação total. Mas era o que precisava repousar nos seus pensamentos. Se pensasse em número e dissesse que tinha pensado no número 5, suposto, então acreditaria que o que tinha se fixado na sua memória era esse número e logo ele apareceria visível na sua imaginação.
Foi assim que imaginou as palavras de Isabel e sem nenhuma imposição real chegou a acreditar nelas e compreendê-las nítidas e prateadas. A mulher que tinha ouvido o seu silêncio reduziu-se siderada e agradecida. Assim quando ele largou a xícara e estendeu-lhe a mão sobre a mesa ela se deixou tomar e impor-se a ele. Os dois eram a mesma corrente válida.
Depois que tudo isto tinha se dado veio a noite e o homem a deixou e foi cuidar dos seus negócios. Ouviu as sombras do bar, olhou as marcas no assoalho do salão de onde as raízes que percorriam a terra o olhavam todas aquecidas no silêncio do solo. Mas ele não estava ali para ajuntar sombras nem velar o chão. Agora que entrara e trazia um mistério no peito podia aderir ao tempo com um propósito iluminado. Pensou que era a mulher que estava com ele porque tinha pensado com alguma solidez táctil. E era verdade. Agora o tempo não avançava mais como um galho que oscilasse esperando o raio. O tempo que ele observava agora deslizava para uma fonte e nessa fonte ele tinha um púcaro. Se não fosse tão humano ele se imporia a natureza de quatro patas e uma crina preta de cavalo no campo. Mas ele que tinha se tornado humano queria agora comunicar-se com o próprio tempo humano.
E o tempo humano que dele se apropriara eram as palavras da mulher e o que ele pensou depois das palavras da mulher. Também havia o que ele viu depois que entrou no quarto quando já tinha se esquecido da vespa que voara dentro do seu sono. Era que a vespa com seu hábito muito humano e solícito havia erguido uma casa na parede do quarto. Era uma casa ampla onde caberia toda a sua desova e as aranhas para as vespas que eclodissem famintas. Isto ele observou e o tempo voltou outra vez como tinha começado a voltar quando ele ouvira e compreendera o rosto de Isabel.
Então mesmo que a tarde fosse sucedendo-se com muitas horas no invólucro ele quisera saber como rodavam as engrenagens dentro daquele fuso. Foi com surpresa que Lisandro caiu pela primeira vez na roldana do tempo.
A mulher voltara ao serviço e o vento parara no meio da tarde. A roupa molhada imobilizara-se sem o vento e secava tesa ao sol. E isso era como um rio esperando que viesse a água escorrer no seu leito pedregoso. Ele viera com as águas que passaram, mas se entrelaçara nas muitíssimas pontas de raízes que apareciam fora da terra e não rolara mais. Agora precisava de uma voragem. A mulher tratou-o de afastar da loucura expectante. Mas nessa mesma tarde o homem recusou-se a tudo. Havia uma calidez no tempo táctil que ele não queria renunciar, pois quando pensava via sua própria vida visível e próxima.
Sentou numa cadeira e estava ereto e atento. Era o bacará, mas ele queria apenas ouvir os números. Nem o Rodrigo, nem o Pedrinho. Primeiro foi vinte e um. Depois foi nove. Quem ganha? Era um saber que ele guardava. Hoje não se animaria a isto. Viera pelo Quim. Precisava contar com o Quim. Viera porque teve uma ideia que só repetiria com o Quim. Mas o Quim? Outro vinte e um.
Deixou a cadeira e caminhou pelo salão. Na mesa de bilhar duas pessoas. No banco em frente três pessoas. No bacará só quem aceita saber quanto é exato. Mas pode-se adivinhar com o pensamento? Nenhuma tentação o afetava. Acendeu um cigarro e foi postar-se na rua. Dessa vez não queria o umbral da porta. Tinha o pensamento decidido e não queria duvidar de que tinha acertado pensando aquilo.
Foi assim que propôs ao Quim. Era um negócio que ele queria. E era o galo do Quim. Que o Quim cedeu e ele pagou. Mas o galo do Quim tinha perdido e não tinha morrido nunca. Foi então que Lisandro supôs que o galo que não fugira e que se tinha proposto morrer combatendo poderia ser seu.
Poderia e foi porque o Quim se convenceu muito disso. Lisandro tinha a posse do valente e o arrastaria à outra glória. Assim era com essa felicidade de ter em suas mãos um pouco desse tempo humano e táctil que ele voltou para casa naquela noite. A lua estava coberta pelo vento e ele não tinha medo. O que o tornava sumarento e exato, era a posse do herói. E o herói tinha um coração quente que pulsava nos seus braços.
No outro dia acordou cedo e seus pensamentos na cama eram uma visão do galo vivo. Não acompanhou nenhum dos processos que se desenrolavam sempre no quarto. Ergueu-se estremunhado da cama e procurou o valente na cozinha. Estava. Também estava a mulher que não observava o galo, mas olhava para fora onde o dia era branco e amanhecido.
O homem parou porque o galo estava de pé sobre uma perna só olhando a porta aberta. O galo e a mulher contemplavam o dia sufocado pela claridade. Dois seres completos, o galo e a mulher e eram seres que estavam cobertos por ele. Apanhou o animal que estremeceu dócil em suas mãos, mas a mulher ainda não os olhava. Que via a mulher lá fora?
Dois pássaros pousados na cerca. Um pássaro era vazio e verde e outro era oco e cinza. Era onde a mulher se retinha. Mas ele precisava falar-lhe do seu próprio tempo. Ela já lhe propusera o dela, mas ele ainda devia-lhe suas próprias palavras. Cruzou o campo de visão da mulher se interpondo, autoritário.
Isabel aceitou-o. Cedeu. O homem sentou para decidir falar. O herói era a sua posse. Mas não era o herói que tinha vencido, era o herói que tinha lutado e que tinha perdido, mas o que ele vira é que se dispusera a morrer no tambor. Ele o alimentaria, ele o curaria, ele o treinaria. Instruir o galo com as asas e com saltos. Principalmente com as asas onde mais ele vira força. Não para voar, mas para encontrar mais ar, para expandir os pulmões sem ofegar. Ele vira onde o campeão falhara.
__Este meu campeão. Veio-me com uma ideia.
A mulher procurou a ideia visível e não a achou logo. O homem eriçava as penas do galo. O cheiro de galinha viva se evolava no ar. Ela teve náuseas.
__Foi quando vi que ele perdia, mas não morria, mas queria morrer.
A mulher ouviu o sonho do homem dentro da sua compreensão. Então era isto? Olhou o galo que tinha um olho ferido.
__É um cego? É um cego?
__Não um cego ainda. Vai voltar a ver com um pouco de trato.
A mulher respirou tranquila e descasada. Não era um cego? Os cegos olham de dentro da própria treva iluminando os objetos perto com sua compreensão. Mas o galo não era um cego?
__Quando vier o filho vai estar tudo bem então.
Ele disse e ela pensou – era isto ainda. Ele tinha feito tudo àquilo com um galo. Era o que acontecia com ele e ela estava convicta que aconteceria sempre. Então o homem tinha um galo nas mãos e o galo era seu e o galo era um campeão. Mas este era um instante tão completo e pequeno que Isabel aceitou-o sem comedimento e foi impávida conivente com ele. Posicionou-se na cadeira e observou o homem prático que Lisandro se tornara.
E foi com os dias que o galo aceitara os milagres da cura divina e completou sua cura. E era um galo forte, mas como era um galo não tinha nenhum uso real para sua força. Via as galinhas no quintal, mas as galinhas que ele via eram desconfiadas e fugidias. E ele era um galo-de-briga e estava sempre preso num viveiro. Mas era um galo alimentado e feliz.
O homem compreendia que o galo ganhava força e heroicidade enquanto crescia o ventre da mulher. Ela agora era outro volume. Oblíqua e pesadona. Sentava-se curvada e suarenta. As tardes eram piores. Era quando a mulher olhava o galo dentro de casa e as galinhas no quintal. Mas não tinha nenhum susto com o galo, só com as galinhas distraídas que passavam pela porta da cozinha e viam o galo preso lá dentro. Nenhuma obrigação com o galo, o homem a salvara desta névoa.
Então quando o dia era duas horas da tarde ela tinha sono, mas o serviço ainda não estava todo acabado e ela se recusava a ceder. As tardes se fizeram cruas e sujas e pela primeira vez ela pensou que realmente poderia se cansar. Mas como viver cansada neste mundo? Apoiou-se sobre o espaldar da cadeira procurando a melhor posição para descansar os braços. Então eram os braços que a estavam deixando cansada.
Não que ela não estava toda cansada. Foi assim que sentiu uma ponta de estremecimento no ventre. Era ele. O filho tinha o coração preso no seu e ela o sentia movente e seguro na sua alma. Como fora que uma coisa tão dócil coubera dentro dela? Apenas alargara os seus limites para acomodar-se mais e agora crescia ausente do mundo.
O galo também estremeceu na sua gaiola. Ela pensou que a gaiola era um dentro para o galo e ela era um dentro para o filho. Mas o galo e o filho cresciam ambos dentro de alguma coisa que um dia se abriria para fora do mundo. O galo estava com uma perna suspensa e olhava através das gretas da gaiola. Isabel ouviu-o olhando para fora pelas gretas. Ela olhava para o galo não compreendendo logo, mas na sua ânsia de entender tudo aquilo olhou com o galo e viu o que acontecia.
Uma galinha ousara transpor a porta e avançava com a calma tranquila das galinhas. A mulher reteve-se. Não tinha susto, mas sabia que àquela hora, com o serviço todo incompleto ainda não tinha tempo para impor uma ordem nas galinhas e impedi-las de invadir a casa.
Decidida, a mulher resolveu fazer silêncio e ficar invisível para a galinha pra experimentar o que aconteceria. Mas quando aconteceu ela não teve nenhuma surpresa. É que a galinha muito gulosa aventurara-se por alguns grãos de milho que vira fora da gaiola. E como isto era natural e belo, a mulher entregou-se a tudo passiva e faminta.
Voltou o estremecimento no ventre, mas dessa vez ela teve tanto prazer que não se restringiu somente a isto. Passou as mãos na sua barriga abaulada e crescida pedindo mais, mais, mais movimentos.
Foi tudo tão feliz que quando o homem veio lá de dentro e a galinha assustada correu para fora ela a compreendeu primeiro no seu susto para só depois ver e compreender o homem que tinha acordado e que ela precisava sorrir-lhe acolhendo-o.
Tudo foi acontecendo com a longuíssima sucessividade dos dias. Quando ela compreendia o que acontecia o galo cantava e batia as asas negando-a três vezes três. Mas ela conformava-se a tudo e não tinha perigo de surpreender-se acordada pensando que dormia e sonhava. O filho era agora uma realidade próxima e eficaz. Tudo se efetivara com a voracidade brutal das coisas que vão acontecendo sem ruído e se impõem fortes e sem nenhum vazio aparente. Veio a ela, cresceu, alargou-a e por fim vai restringir-se a uma insistência de abrir o mundo lançando-se no vácuo como uma fruta que de repente solta-se do halo.
Foi então que o dia reverberou e ela achou que era tão tarde que logo seria noite. Afastou a última claridade com os dedos e olhou para fora, estava sentada na cadeira, olhando para fora. Os pássaros preparavam seu sono, as estrelas vão começar seu trabalho. Enfim ela sentia o filho pronto. Era como se ela fosse uma aranha e tivesse terminado de tecer sua casa aérea. Por isso ela sabia que também estava pronta.
Agora tudo acabará como um dia começou.
O homem veio de dentro do quarto banhado e vestido. Ah! era ele. Precisava dele. Mas não se anunciaria. Lisandro abriu à gaiola, tomou o galo. Levantou-lhe as asas, palpou-lhe o peito, torneou com as mãos as pernas do galo. Abriu o bico do galo e olhou lá dentro. Voltou a abrir as asas do galo. Verificou o papo. Levantou-o contra a luz. Soltou-o no chão, açulou-o com dedos. Abriu-lhe os olhos. Os dois estavam vendo.
__Vou com ele, o herói.
O homem falou isto para a mulher. Então o galo também? Pensou ela. Lisandro pôs o animal sob os braços e saiu para rua. Quando a porta da rua se fechou Isabel olhou a noite pela porta do quintal. Não era uma noite completa ainda. Havia nuvens no céu e nenhuma estrela. O vento que chegava era muito próximo e vivo. Sentiu as mão frias e vazias, levantou da cadeira. Apoiou-se na mesa para poder com o peso do filho. Estava toda inchada e bracejante. Mas alcançou a porta e postou-se no umbral. Lá fora era tudo noite agora.
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