O casamento
Ninguém pensou nisto no começo. Casadinhos recentes, André ficava em casa, Aninha no trabalho na casa da professora. Sempre trabalhou ela, não quer depender de homem pra viver. Deram-lhe razão nisto, marido era hoje e amanhã quem sabe.Aninha do trabalho pra casa, muito direita. Nunca se dissera coisa sobre ela no bairro, quem há de? A menina que muito sofreu quando orfãzinha. Presa no cativeiro de Dona Zezé, uma peste, só seu Quim enroscado nos anéis da jararaca. Madrasta para filha, melhor viúvo mesmo. Quando pôde, Aninha escapou.
Agora nos braços do André. Felizinho o casal. Ninguém com a vida deles. Cada um vive a sua. Quem para saber sobre a casa do vizinho? Mas ali não era assim. O que não se sabia adivinhava-se. Foi então que se adivinhou logo.
O André um boa vida. A mulher quem trabalha. E o André? Está aí o André. Nem um prego dentro de casa. E a mulher? Essa uma mártir na vida. Primeiro a Dona Zezé, madrasta cruel, agora o André, ogro voraz. Magrinha a pobre. Deus sem pena dela. Morre pelos outros. Quem a redime?
O boa vida do André quem repimpado. Nédio do viradinho com arroz. Deus dar com uma mão e tira com as duas. Quando a mártir redimida? A mártir era Aninha. Martirizada como empregadinha. Lavava, passava, cozinhava. Limpava, areava, brunia.
Quando não havia mais que adivinhar concluiu-se – esse André boa bisca mesmo, castigo pra má filha. Exemplo para outras. Veja a Aninha, se tivesse ouvido a Dona Zezé, não neste casamento. Filha, primeiro escuta os pais, depois é que escolhe marido.
André ouviu o galo e pôs-se sentado na beirada da cama. Quantas horas? Pela altura do sol pensou que podiam ser oito horas ou perto. Primeiro pensamento foi para saber se a mulher já tinha saído. Ouviu, mas ele sabia que sim, que isso era evidente, Aninha saía antes de sete. A professora a instruía no serviço do dia. Voltou a deitar-se de costas na cama com os pés no chão. Olhava o teto onde as aranhas tinham realizado um excelente trabalho de labirinto.
Ouviu o galo cantar outra vez e pensou que tinha fome. Levantou-se da cama, mas não saiu logo do quarto. Assim esperava mais. Mas esperava o quê? Disso ele era o único que não podia saber. Deixou o quarto porque como sentir-se perturbado só pelo fato de viver? Disso ele não entendia mesmo.
Na casa vazia o sol entrava pela porta aberta da cozinha. Olhou para o quintal, lá adiante a cerca estourada e uma galinha parada. Lembrou-se do galo amarrado no pé do fogão. Encarou-o, a ave reconhecendo-o e ele descobrindo sua fome. Tomou um punhado de milho e lançou aos pés do animal. Esperou que ele começasse a comer, só então serviu-se do café que a mulher deixara fervido.
O café revigorou-o trazendo-lhe o primeiro alimento do dia. Como ele chegara até ali? Viera com Aninha, mas ele quem conduziu-o? O que ele sabia mesmo é que de repente estava no caminho e quando pensou: – Volto desse ponto, já não havia como lembrar-se dos passos que dera. Veio e aceitou para onde viera. Agora não via nenhuma necessidade de retroceder.
Então para onde é que iria? Terminou o último gole de café, o mais doce e concentrado sempre no fim. Lançou mais um punhado de milho ao galo. Tomou nas mãos, sopesou-o, em forma sim. Largou-o e o animal voltou a comer.
Postou-se na porta da cozinha olhando o sol, o quintal, a cerca estourada, a galinha que não estava mais lá, outros quintais que começavam depois do seu. Voltou-se pra dentro. Sobre o fogão o almoço que Aninha lhe deixava pronto. Aquilo já começara e não terminaria tão logo, ele precisava apenas do seu próprio esforço. Viver para ele era precisamente isto e não acreditava que fosse possível construir torre mais alta. Chegara até o limite geral, agora somente a sombra.
Foi até a sala e pegou as gaiolas. Corrupião, golinho, coleiro. Sua fauna cultivada. Levou-as para fora. Onde o gato? Sobre o telhado na outra casa. Ele que nunca, maracajá disfarçado. Pardais de revoada no quintal e o gato molenga. Trocou a água e o alpiste das gaiolas.
Passarinho também aquenta sol. Dispôs as gaiolas nas estacas da cerca e foi trazer o galo. Soltou-o no quintal. Ave de combate. Andava lento e frio. Estimulou-o com as mãos. O bicho esticou o pescoço observando o sol. Levou-o para uma área iluminada do terreiro. A ave abriu o leque das asas acolhendo a luz nas suas penas. André sentou no umbral da porta e esperou.
Quando tempo agora? Ele sabia que não eram mais do que onze horas numa terça-feira enorme. Pôs o galo no viveiro e ainda o observou através do alambrado. Quando fosse um galo de rinha o poria no tambor. Correria dinheiro com o seu galo na roda.
Recolheu as gaiolas dentro de casa. No corredor ouviu o coleiro. Canto de penugem nova. Parou para ouvir a extensão do canto do passarinho. Isso que ele ouvia, conseguira um bom modelo. Depois poderia chamar os meninos e mostrar.
Voltou à cozinha e serviu-se da comida que mulher deixara. O torresminho, o feijão o arroz. Comia calado, mas de repente pôs-se a pensar. E pensava no galo e no galo sensacional que ele tinha. Serviu-se de mais do arroz. E pensava. Pensava no cardeal que o João lhe propusera:
__Cantador João?
__Quem me acorda de manhã André!
Negócio pendente, mas se tinha que ser pra ele viria às suas mãos.
Acabou de comer e esticou-se na cadeira. A musculatura ávida por distensão. Lasso, André contorceu-se no assento. Fechou os olhos. Lá longe no meio da névoa da sua lassidão o trilado do cardeal. Abriu os olhos, levantou-se da cadeira. Uma quebradeira na alma. Caminhou para o quarto. Deitou-se na cama. Voando na superfície da tarde uma mosca azul e perdida. Agora você estará para sempre presa no restrito espaço deste quarto. Quando começou a esquecer, o torpor era um sono pesado e completo.
Acordou com um barulho na rua. Alguma coisa tinha se partido lá fora. Só quando concentrou-se para pensar nas possibilidades é que ouviu outra vez que era o apito do trem de carga levando vagões de coque e petróleo. Voltou a fechar os olhos, mas agora não podia mais, tudo tinha se acabado.
De olhos abertos quis adivinhar a hora, mas só o que viu foi a enorme mosca presa no casulo da aranha. Isto sempre acontece. Errar na claridade do dia e não dar-se pelas inúmeras teias armadas para colher sua presa. Se tivesse testemunhado o momento exato da queda teria salvado a mosca deixando a aranha desiludida.
Coisas que não voltam atrás: o rio que corre, a chuva que cai do céu, a nuvem que passa e uma mosca que já está morta presa num saco de aranha. Bem na hora. O trem voltou a apitar alertando boi na linha. Levantou-se, caminhou pela casa, abriu a porta da rua e olhou a rua.
Na rua as mesmas coisas: moscas presas nas teias de aranha e aranhas erguendo-se para armar novas teias. Eram três horas da tarde de uma terça-feira que se tinha parado. Observou as amendoeiras e sob as amendoeiras a sombra das amendoeiras. Saiu para rua e caminhou até o grupo mais próximo.
Aproximou-se quando lhe ofereceram assento. Desculpou-se por não aceitar observaria e passaria. Não chegou a concentrar-se no grupo. Olhou-os frouxamente. Martinho levaria a mão. Não esperou por isto. Deu a volta no tronco da árvore e olhou para o outro lado da rua. Um grupo de meninos vinha subindo, pensou em chamá-los para mostrar o galo, o coleiro. Quando os viu entrar no beco desistiu e caminhou de volta para casa.
Aninha chegou e o encontrou sentado no batente da porta da cozinha. Sem voltar-se ele soube que a mulher chegara. O galo esticava o pescoço procurando alcançar os últimos momentos de sol. Foi então que André viu que a tarde terminara e a noite já crescia em alguns quintais.
Levantou-se e pôs água na lata do galo. Quando voltou-se para dentro de casa viu a mulher pronta para começar a limpeza. Sorriu-lhe compreendendo-a. Aninha estava parada no meio da cozinha, ele estacou na entrada da porta sem falar-lhe logo. A mulher recolheu o prato do almoço do marido e o pôs na pia.
__ Terça-feira bem longa eu vi – ele disse.
__ O pior de tudo foi o calor – ela informou.
__ Desde que não chove os dias têm sido enormes – ele continuou.
__ Vou fazer-lhe um refresco André – ela sorriu.
André saiu pra rua, mas antes que a primeira estrela aparecesse no céu o poste da iluminação pública iluminou a noite e ele não viu mais nada. No Bar da Nena ele ouviu a outra proposta do João:
__ Não vendo por menos André, a gaiola você leva de presente.
Terminou as fichas do bilhar e voltou para casa. Aninha tinha acabado todo o serviço. A casa limpa, a roupa no varal, a comida pronta. Serviu-o, sentaram-se para comer.
André comia calado, mas pensava – amanhã respondo ao João.
Aninha olhou-o, André adivinhou que ela o olhava, encontraram-se assim. Então ela surpreendeu-se com a lua que vinha nascendo muito branca no céu limpo e parado. Olhou para fora pela porta aberta da cozinha a respiração suspensa. André comia, ouviu-o mastigar.