quinta-feira, 25 de junho de 2020

CRÔNICA - O CASAMENTO

O casamento

     Ninguém pensou nisto no começo. Casadinhos recentes, André ficava em casa, Aninha no trabalho na casa da professora. Sempre trabalhou ela, não quer depender de homem pra viver. Deram-lhe razão nisto, marido era hoje e amanhã quem sabe.

         Aninha do trabalho pra casa, muito direita. Nunca se dissera coisa sobre ela no bairro, quem há de? A menina que muito sofreu quando orfãzinha. Presa no cativeiro de Dona Zezé, uma peste, só seu Quim enroscado nos anéis da jararaca. Madrasta para filha, melhor viúvo mesmo. Quando pôde, Aninha escapou.

         Agora nos braços do André. Felizinho o casal. Ninguém com a vida deles. Cada um vive a sua. Quem para saber sobre a casa do vizinho? Mas ali não era assim. O que não se sabia adivinhava-se. Foi então que se adivinhou logo.

         O André um boa vida. A mulher quem trabalha. E o André? Está aí o André. Nem um prego dentro de casa. E a mulher? Essa uma mártir na vida. Primeiro a Dona Zezé, madrasta cruel, agora o André, ogro voraz. Magrinha a pobre. Deus sem pena dela. Morre pelos outros. Quem a redime?

         O boa vida do André quem repimpado. Nédio do viradinho com arroz. Deus dar com uma mão e tira com as duas. Quando a mártir redimida? A mártir era Aninha. Martirizada como empregadinha. Lavava, passava, cozinhava. Limpava, areava, brunia.

         Quando não havia mais que adivinhar concluiu-se – esse André boa bisca mesmo, castigo pra má filha. Exemplo para outras. Veja a Aninha, se tivesse ouvido a Dona Zezé, não neste casamento. Filha, primeiro escuta os pais, depois é que escolhe marido.

         André ouviu o galo e pôs-se sentado na beirada da cama. Quantas horas? Pela altura do sol pensou que podiam ser oito horas ou perto. Primeiro pensamento foi para saber se a mulher já tinha saído. Ouviu, mas ele sabia que sim, que isso era evidente, Aninha saía antes de sete. A professora a instruía no serviço do dia. Voltou a deitar-se de costas na cama com os pés no chão. Olhava o teto onde as aranhas tinham realizado um excelente trabalho de labirinto.

         Ouviu o galo cantar outra vez e pensou que tinha fome. Levantou-se da cama, mas não saiu logo do quarto. Assim esperava mais. Mas esperava o quê? Disso ele era o único que não podia saber. Deixou o quarto porque como sentir-se perturbado só pelo fato de viver? Disso ele não entendia mesmo.

         Na casa vazia o sol entrava pela porta aberta da cozinha. Olhou para o quintal, lá adiante a cerca estourada e uma galinha parada. Lembrou-se do galo amarrado no pé do fogão. Encarou-o, a ave reconhecendo-o e ele descobrindo sua fome. Tomou um punhado de milho e lançou aos pés do animal. Esperou que ele começasse a comer, só então serviu-se do café que a mulher deixara fervido.

         O café revigorou-o trazendo-lhe o primeiro alimento do dia. Como ele chegara até ali? Viera com Aninha, mas ele quem conduziu-o? O que ele sabia mesmo é que de repente estava no caminho e quando pensou: – Volto desse ponto, já não havia como lembrar-se dos passos que dera. Veio e aceitou para onde viera. Agora não via nenhuma necessidade de retroceder.

         Então para onde é que iria? Terminou o último gole de café, o mais doce e concentrado sempre no fim. Lançou mais um punhado de milho ao galo. Tomou nas mãos, sopesou-o, em forma sim. Largou-o e o animal voltou a comer.

         Postou-se na porta da cozinha olhando o sol, o quintal, a cerca estourada, a galinha que não estava mais lá, outros quintais que começavam depois do seu. Voltou-se pra dentro. Sobre o fogão o almoço que Aninha lhe deixava pronto. Aquilo já começara e não terminaria tão logo, ele precisava apenas do seu próprio esforço. Viver para ele era precisamente isto e não acreditava que fosse possível construir torre mais alta. Chegara até o limite geral, agora somente a sombra.

         Foi até a sala e pegou as gaiolas. Corrupião, golinho, coleiro. Sua fauna cultivada. Levou-as para fora. Onde o gato? Sobre o telhado na outra casa. Ele que nunca, maracajá disfarçado. Pardais de revoada no quintal e o gato molenga. Trocou a água e o alpiste das gaiolas.

         Passarinho também aquenta sol. Dispôs as gaiolas nas estacas da cerca e foi trazer o galo. Soltou-o no quintal. Ave de combate. Andava lento e frio. Estimulou-o com as mãos. O bicho esticou o pescoço observando o sol. Levou-o para uma área iluminada do terreiro. A ave abriu o leque das asas acolhendo a luz nas suas penas. André sentou no umbral da porta e esperou.

         Quando tempo agora? Ele sabia que não eram mais do que onze horas numa terça-feira enorme. Pôs o galo no viveiro e ainda o observou através do alambrado. Quando fosse um galo de rinha o poria no tambor. Correria dinheiro com o seu galo na roda.

         Recolheu as gaiolas dentro de casa. No corredor ouviu o coleiro. Canto de penugem nova. Parou para ouvir a extensão do canto do passarinho. Isso que ele ouvia, conseguira um bom modelo. Depois poderia chamar os meninos e mostrar.

         Voltou à cozinha e serviu-se da comida que mulher deixara. O torresminho, o feijão o arroz. Comia calado, mas de repente pôs-se a pensar. E pensava no galo e no galo sensacional que ele tinha. Serviu-se de mais do arroz. E pensava. Pensava no cardeal que o João lhe propusera:

         __Cantador João?

         __Quem me acorda de manhã André!

Negócio pendente, mas se tinha que ser pra ele viria às suas mãos.

         Acabou de comer e esticou-se na cadeira. A musculatura ávida por distensão. Lasso, André contorceu-se no assento. Fechou os olhos. Lá longe no meio da névoa da sua lassidão o trilado do cardeal. Abriu os olhos, levantou-se da cadeira. Uma quebradeira na alma. Caminhou para o quarto. Deitou-se na cama. Voando na superfície da tarde uma mosca azul e perdida. Agora você estará para sempre presa no restrito espaço deste quarto. Quando começou a esquecer, o torpor era um sono pesado e completo.

         Acordou com um barulho na rua. Alguma coisa tinha se partido lá fora. Só quando concentrou-se para pensar nas possibilidades é que ouviu outra vez que era o apito do trem de carga levando vagões de coque e petróleo. Voltou a fechar os olhos, mas agora não podia mais, tudo tinha se acabado.

         De olhos abertos quis adivinhar a hora, mas só o que viu foi a enorme mosca presa no casulo da aranha. Isto sempre acontece. Errar na claridade do dia e não dar-se pelas inúmeras teias armadas para colher sua presa. Se tivesse testemunhado o momento exato da queda teria salvado a mosca deixando a aranha desiludida.

         Coisas que não voltam atrás: o rio que corre, a chuva que cai do céu, a nuvem que passa e uma mosca que já está morta presa num saco de aranha. Bem na hora. O trem voltou a apitar alertando boi na linha. Levantou-se, caminhou pela casa, abriu a porta da rua e olhou a rua.

         Na rua as mesmas coisas: moscas presas nas teias de aranha e aranhas erguendo-se para armar novas teias. Eram três horas da tarde de uma terça-feira que se tinha parado. Observou as amendoeiras e sob as amendoeiras a sombra das amendoeiras. Saiu para rua e caminhou até o grupo mais próximo.

         Aproximou-se quando lhe ofereceram assento. Desculpou-se por não aceitar observaria e passaria. Não chegou a concentrar-se no grupo. Olhou-os frouxamente. Martinho levaria a mão. Não esperou por isto. Deu a volta no tronco da árvore e olhou para o outro lado da rua. Um grupo de meninos vinha subindo, pensou em chamá-los para mostrar o galo, o coleiro. Quando os viu entrar no beco desistiu e caminhou de volta para casa.

         Aninha chegou e o encontrou sentado no batente da porta da cozinha. Sem voltar-se ele soube que a mulher chegara. O galo esticava o pescoço procurando alcançar os últimos momentos de sol. Foi então que André viu que a tarde terminara e a noite já crescia em alguns quintais.

         Levantou-se e pôs água na lata do galo. Quando voltou-se para dentro de casa viu a mulher pronta para começar a limpeza. Sorriu-lhe compreendendo-a. Aninha estava parada no meio da cozinha, ele estacou na entrada da porta sem falar-lhe logo. A mulher recolheu o prato do almoço do marido e o pôs na pia.

         __ Terça-feira bem longa eu vi – ele disse.

         __ O pior de tudo foi o calor – ela informou.

         __ Desde que não chove os dias têm sido enormes – ele continuou.

         __ Vou fazer-lhe um refresco André – ela sorriu.

         André saiu pra rua, mas antes que a primeira estrela aparecesse no céu o poste da iluminação pública iluminou a noite e ele não viu mais nada. No Bar da Nena ele ouviu a outra proposta do João:

         __ Não vendo por menos André, a gaiola você leva de presente.

         Terminou as fichas do bilhar e voltou para casa. Aninha tinha acabado todo o serviço. A casa limpa, a roupa no varal, a comida pronta. Serviu-o, sentaram-se para comer.

         André comia calado, mas pensava – amanhã respondo ao João.

         Aninha olhou-o, André adivinhou que ela o olhava, encontraram-se assim. Então ela surpreendeu-se com a lua que vinha nascendo muito branca no céu limpo e parado. Olhou para fora pela porta aberta da cozinha a respiração suspensa. André comia, ouviu-o mastigar.



 

segunda-feira, 22 de junho de 2020

CRÍTICA - TIROS EM COLUMBINE

Tiros em Columbine e a violência estrutural

         O filme de Michael Moore Tiros em Columbine, EUA, 2002, nos faz perguntas sobre os fundamentos da violência presente na sociedade norte-americana. O que é isto – a violência americana? Como nos tornamos um país tão violento? Como nos fizemos um povo que consome armas e munição? Por que há entre o americano branco típico de classe média uma atroz vontade de matar, de exterminar o outro, de impor-se de forma violenta? Por que o governo dos EUA leva a violência tão a sério que bombardeia outros países, declara guerra a tantos povos?

         Mas ainda que Michael Moore está consciente desse papel decepcionante de protagonista da difusão da violência que seu país tem desempenhado mundo a fora nos últimos tempos, e mostra-o explicitamente em seu filme. Mas a matéria principal de seu documentário é um voltar-se para a própria sociedade norte-americana e compreender como a violência que eles espalham pelo mundo viceja lá dentro.

         A violência cresce e avoluma-se dentro das casas, nos bairros, nas escolas, nas ruas, nas cidades, no cinema, na política interna, na política externa. A violência está nas mentes privadas, nos discursos públicos, na constituição, nas leis, na mídia e nas instituições civis do país. Do princípio ao fim do filme somos interrogados permanentemente – Por que a sociedade “americana” é violenta? A resposta não está dada no filme de Moore, o que ele concede ao expectador é a possibilidade de se colocar o problema e começar a pensar sobre ele.

         O fio condutor dessa longa reflexão de Michael Moore é o acontecimento de 20 de abril de 1999 quando dois jovens estudantes de uma escola pública do estado do Colorado dispararam armas automáticas contra jovens de sua idade e que frequentavam a mesma escola que eles, matando 11 adolescentes e 1 professor. A tragédia amplamente explorada pela imprensa americana e do mundo a fora gerou uma série de opiniões e polêmicas controversas, mas  pouquíssima ação do governo para evitar que novas tragédias como aquela ocorressem.

         Tomando esse fio condutor Michael Moore principia seu filme, problematizando o seguinte: Por que é tão fácil comprar uma arma nos EUA? Partindo desse primeiro problema apresentado a maneira de prólogo do filme, Moore vai mostrar que a compra e venda de armas de forma legal no seu país é algo banal e muito comum. Será isto que gera a violência no EUA?

         Sem responder de forma direta ao problema, Moore nos mostra os antecedentes que podem ter desencadeado a fúria de Columbine. Impressionante assistir a imagem dos dois jovens com armas automáticas nas mãos atirando contra outros jovens dentro da escola que os instruía. É neste momento que somos lançados a questão: mas e a democracia liberal? Os princípios e valores da sociedade do self made man? Como os EUA, país do triunfo dos princípios liberais mais caros: família, pátria e liberdade tornou-se um mundo onde a violência deliberada e gratuita do indivíduo contra seu semelhante?

         O filme de Moore aprofundará então nossa compreensão do mundo dos valores da democracia liberal norte-americana. Assim o diretor nos apresenta a política americana – indústria de armas patrocinando as eleições e os políticos, investindo nas escolas e universidades. Indústria de armas de destruição em massa como as maiores empregadoras e empreendedoras dos EUA. Recebendo incentivos fiscais do governo e garantindo leis e proteção especial para favorecer seus negócios.

         Somos ainda apresentados a uma historinha sobre a história americana. Violência contra os índios, extermínio dos índios, (medo dos índios). Violência contra os negros, política de extermínio dos negros (medo dos negros). Campanhas contra associação de trabalhadores, sindicatos, movimentos por direitos civis (medo do comunismo internacional). O diretor pergunta: alguém estaria lucrando com o medo das pessoas?

         Passa então a analisar a sociedade do medo. Há medo nas cidades, há medo nos subúrbios, há medo no campo. Os americanos são um povo amedrontado. São paranoicamente assustados. Eles têm medo do vizinho, do filho do vizinho, têm medo do negro que mora na sua rua, que atravessa a sua rua. Os americanos brancos têm medo dos latinos, de uma guerra biológica, de uma guerra suja, têm medo de uma invasão de abelhas assassinas africanas.

         Os americanos têm medo também de heavy metal, videogames japoneses, filmes franceses violentos. Os americanos brancos temem por suas famílias e compram armas para defender sua casa, sua propriedade, seus filhos, suas esposas.

         Quem assustou tanto os americanos brancos? A mídia conjectura o diretor. A guerra pela audiência na TV tem um papel importante na construção desta população branca amedrontada. O que a televisão mostra toda dia? Violência negra, violência latina. Perigo do terrorismo. Abelhas assassinas, assaltos à mão armada, policiais violentos glória institucional, guerras declaradas por seu presidente e seu congresso nacional. E o que o governo e as leis mandam fazer? Se armem cidadãos! Armem-se e protejam suas famílias e suas casas!


         Moore nos informa que talvez seja por isto que eles estão plantando o medo, eles poderão levar a população amedrontada a consumir mais armas, mais medicamentos, mais petróleo, mais plástico, mais carros, mais alimentos industrializados. É verdade que a sociedade americana é individualista e consumista. Mas isto não explica tudo, mas já explica alguma coisa. O individualismo, o competitivismo e o consumismo não geram os melhores frutos para todos.

         A sociedade americana prolifera os muitos excluídos e para evitar que eles se revoltem contra sua exclusão vende armas para a população branca em geral manter seu patrimônio e suas famílias protegidas quando a grande revolta começar. Ou mesmo para evitar que sua porta seja arrombada por um negro ou latino. A exclusão é disfarçada sobre o aspecto de uma falsa prosperidade para todos. Mas cresce o individualismo, cresce a competição a necessidade de consumir.

         O filme vai nos mostrar que quanto mais o capitalismo se fortalece mais a necessidade da violência estrutural aumenta na sociedade, pois para manter-se o capitalismo precisa gerar contradições externas e internas afim de convencer a população de que não existe melhor forma de sociedade e governo que não seja aquela coberta e assistida por preceitos da democracia liberal.

         Tiros em Columbine é o melhor filme de 2002 sem dúvida, um filme para assistir e depois pensar. O problema está dado, agora vamos à reflexão.



sexta-feira, 19 de junho de 2020

CRÔNICA: UM SONHO

Um sonho

        Como se de repente a noite fosse uma sombra que se elevasse em silêncio e parasse fria sobre as águas ele sentiu-lhe o peso total. Estava como um lavrador com as sementes fechadas nas mãos. Ali elas cresceriam implumes e germinariam entre os espinhos. Achou que pensara que fosse ele quem estivesse olhando aquelas águas, mas logo compreendeu que na imobilidade geral que se impunha sobre todo o mundo ele não poderia estar dentro das coisas observando-as de fora. A menos que ele estivesse não-dentro. Mas e se quisesse falar? Ah! se quisesse falar com palavras seria tanto o esforço que sua saliva secaria e não haveria húmus para que as frases crescerem. Assim não sendo nenhuma verdade sua mudez, sempre estava impedido de chamar as palavras e arquitetá-las numa fala completa e audível. Onde essa cantiguinha? Que cantiga que não se ouve? Só os cristais brutos e frios do silêncio estavam reluzentes. Então todos calados? Era ele, eram suas irmãs, era sua mãe. Mas todos esperavam. E o medo transia e era expectante. Alguém curvou-se e o dia era luminosos e claro. Alguém olhou para cima e havia um céu amplo e iluminado. Alguém pisou a terra e estava sólida e segura. Quem se aproxima? Parou e escutou. A mãe olhava dentro das cinzas apagadas e o fogo estava frio e o teto e a parede da casa estavam escuros da fuligem mais antiga. Era real isto que era? Ele compreendia que tinha medo e o medo o deixava ficar estático e finito. Voltou-se para si, mas descobriu que ele apenas parecia que pensava. Mas se ele pensava então tinha mãos e poderia estendê-las para frente numa ânsia pura de tocar, de pegar o que fosse bruto e táctil. A mãe, ele e as irmãs. Tudo olhando para frente. Tudo apanhando o que não havia pela terra. Tudo ouvindo o céu uniforme e o dia, uma paisagem branca incolor. E ar que faltava. Se eu pudesse respirar. Mas era se eu pudesse respirar aqui dentro. Com as mãos seria fácil de erguer uma camada de terra e respirar com alguma força. Assim ainda sobreviveria, mas ainda teria medo. Tudo então completava-se nisto – Ele estava ali porque ainda tinha tanto medo. E era um medo curvo que crescia para fora e o crestava como uma folha que cai dentro das chamas. Primeiro ele estalava como a folha, depois ele ardia e cheirava a clorofila queimada. Como na folha nele cresciam bolhas escuras nas pontas e na superfície queimada. Se não tivesse mais como sair dali ele não se perdoaria e nem poderia voltar. Afinal que era tudo isto? Não era um sonho? Sim que era, ah! era isto. Faltava-lhe ar? Acordasse. Ele veria como tudo aquilo se esvaneceria como nuvem depois de grossa chuva. Antes era a necessidade de pôr ordem para poder pensar com tranquilidade se lhe sobrasse algum tempo depois que houvesse uma cantiga irreal. Ouvia que havia o sol e que com o sol vinham as sombras. Que as sombras eram o fruto crescido nos pontos sem sol e que a noite era um vasto campo sem sol coberto de sementes guardadas na mão fechada. A mãe providenciara o fogo. As irmãs vinham com as frutas. Mas ele que era o inútil pensava. Onde começou isto? Como eu não sei onde começou então não existe nenhuma flor dentro dessas sementes. E o que ele tinha eram duas mãos vazias e a sensação de desconsolo e abandono. Mas se tudo de repente começa a ser real então estou perdido. Como regresso para a mesma sombra de onde vim antes? Longos são meus dedos para arrastar-me nesta terra. De onde vim não há memória e eu apenas compreendo que acho que estou pensando e que meus pensamentos são relutantes e já vêm completos até mim. Se ele vem estou perdido. Mas a casa não está vazia. Não mãe. Nem as meninas. Mas quem? Eu não posso te dizer isto. Se eu tomo essa coisa e a faço real e fácil não sei se sobrevivo. Posso passar por aqui e depois voltar? Vim por esta estrada, volto por este caminho. Eu caio, eu caio, mas é nas pedras que eu fico. É nas pedras que eu esqueço minha natureza e me sucumbo. Vim para cá, posso voltar como já pensei e a recusa de, não é o que eu quis. Vejo minhas mãos, vejo meus pés. Minha cabeça é o que está ausente. Então era isto desde o princípio. Sem minha cabeça eu não tenho orientação e voo para fora. Nesse voo eu nem mesmo abro minhas asas. Então ele veio e sentou-se. Mas onde sentara-se que eu não tinha nem mesmo visto? No ar? Sob a sombra? Que tinha uma cantiga que se cantava, ele podia dizer que sim, pois era real e escura. Só havia mesmo um lugar seguro. Dentro dele e de olhos abertos pensando claro no meio do escuro da luz apagada. Como começar a sair lá dentro sem temor das folhas que caem? Como tomar nas mãos a pedra, pô-la na boca e vir andando para fora com a naturalidade do pensamento tranquilo? E a mãe? Onde ficaria a mãe depois de tudo isto? Se acabasse com o que vinha acontecendo mesmo as irmãs se desmanchariam e o que ele teria era apenas o crivo real que o ajudava a escolher os fatos e o que ele desejava. Então precisou achar que pensava que poderia chorar. Daria a volta na casa e o veria de frente, sem previsão ou sustos. Ele era um ser e não tinha medo de outro ser. Mas por que mentia tanto a si? Tudo estava como ele tinha deixado no começo. Apenas não se via mais as sombras, a cantiga e a sensação de sementes nas mãos. (Abandono!) Queimou as pontas dos dedos, mas ele sabia que era somente uma sensação de sonho e quando acordasse não doeria tanto. A mãe que era uma mulher triste e sem expressão diante dele com a tarde sumindo. As irmãs eram coisas mudas e inerentes à irrealidade total que ele concebia dentro das sua realidade de ar. A única coisa que era viva era a que ele mais temia. Depois que tudo isto tiver terminado eu sei que não sentirei nenhuma dor, nem mesmo a dor aparente. Vou dar a volta na casa. Paredes rachadas onde se escondem cabeças de lagartixas lixosas. Dentro de cada greta enorme aranha que me olha em silêncio com seus inumeráveis olhos escuros. Galinhas no monturo. Caco de vidro na moita de erva-cidreira. Lagarto comedor de ovos. Flores de fedegoso. Vargem de fedegoso. Galho seco de árvore morta. E eu. Eu que me recuso. Era nesta casa? Quando? Agora? Nunca que eu quisesse voltar para cá. Mas nunca que eu quisesse isto mesmo. Não vim, foi que me trouxeram sem prevenir-me disto. Eu um homem e outra vez feito menino. Vou com ele que é meu pai. Então é ele. É este que está vivo e me chama incessante. Eis que não o vejo, mas sua ausência é precisa e é um fato agora. Estou confuso e a casa começa a me parecer real como era antes. Vem meu pai. Dele tenho medo. Desse touro valente. Me joga no chão. Me pisoteia. Me cobre com seu olhar tonante e força anelante. E sinto-o em mim. Está sobre mim. Oprime minha vida. Por isso mãe tão infeliz. Por isso as irmãs tão longe. Eis meu pai, a totalidade que avança, se estende completa, total e infinita sobre meu ser. A noite que é ele vinha e tomava-lhe os sonhos. Vinha com suas mãos vastas enormes. Cobria-o. Impunha-o. Mesma morte experimentada sempre, sempre. Quem era então o pai? Era o sonho que sempre vinha. Era o medo, era o medo paralisante. Mas e se ele pudesse acordar antes que fosse? Dar a volta na casa. O pai estava do outro lado. Descer para o rio. O pai estava na outra margem. O pai estava dentro do rio, tomando banho de rio e ele que o viu. Viu o pai. O corpo do pai. Era o corpo do pai. Não era como o seu. Era o corpo que crescia nele. O corpo escuro do pai. Glória da força. E ele ficou olhando o que via. Teve medo, mas sentiu que tinha que ficar olhando enquanto via. Aonde o pai tão bonito? E o pai era um ser. E o pai era todo o ser possível. Dentro do pai ele principiara. E ele via que o pai era a virilidade hostil e que ele era fraco. Um homem que era barro, que era aço, que era semente, e era terra, e era fruto, e era um campo inteiro com espigas douradas e grãos louros. Então seu coração tremeu. Suas mãos caíram. Seus olhos cegaram com a tanta luz plúmbea. Seu sexo se paralisou. A única visão não possível. Uma chama de fogo saía do meio de uma sarça que ardia sem se consumir. A única visão que ele não podia olhar. Onde espinhos que furassem seus olhos? Onde raio celeste que o fulminasse logo? Voltar? O pai era o rio. O pai era toda a pujante força que o vergava e vergava todo o mundo. Como pudera esconder-se do pai para o ver? Agora para sempre lançado nessa voragem. Se tivesse feito barulho. Se tivesse errado o pé. Se o pai o tivesse ouvido. Mas ele que fora na sombra. Ele que se escondera dentro do sol por. E ele que empedrara para sempre a cantiguinha no seu coração aos pulos. Visão última de todas as coisas. O pai nu. A contemplação da única beleza eterna. A verdade total com que surpreendera-se ao descer para aqueles lados da vida. Depois cada coisa apenas uma cópia do ser completo onde ele começara a existir. Depois apenas simulacros de onde manara o que ele era e para onde voltaria sempre, o lugar onde sua vida tinha tido sua fonte também era o lugar onde ela alimentaria a vontade de morrer. Então é tu mesmo meu pai. Todo o ser total e perene em mim. Posso tocá-lo. Mas isto é certo? Nunca meu pai. Tu és também o meu medo. Não vou a ti. Meu temor é maior. Sob tua guarda nunca fomos felizes. Deixa-me viver então. Liberta-me. Volto a ti, mas não sou forte para suportar com destemor de filho ou coragem de homem tua presença natural e física. Fala-me a mim, mas fala-me somente por meio das memórias que me ficaram. Fala-me através do ódio e do rancor que fui tecendo desde que nos tornamos dois homens dentro do nosso lar. Fala-me sem, contudo ser tua presença real perante mim. Sou fraco meu pai. Não me tornei um homem como tu. Para fazer-me um ser eu te neguei. Mas tu eras tão grande e total que me fiz pequeno e néscio. Não te peço perdão. Tu me reduziste a isto. Para ser eu, fiz-me o contrário de ti e errei tanto. Mas meu erro não me consome, porque eu quis que eu não fosse teu ser. Meu rancor é ainda meu alimento. Meu pai. Aquele dia no rio acabou, mas sua revelação continua. Vem e me cobre. Eu te nego e não te aceito. Vem e me cobre. Estou com medo. Meu coração é uma desordem e uma noite na sombra. Sentiu que rodava. Viu que caia. Viu que muitos cavalos de tropelia o levavam nas patas. Viu que caia. Caia de tão alto e não chegava nunca acabar de cair. Se acordasse terminaria tudo. Mas o sono era um tempo necessário. Acordar no meio da madrugada. E se não dormisse outra vez? Se nunca mais conciliasse o sono e a vida? Sufocava, não podia mais. A roda que o levava poderia levá-lo para sempre. Estaria de todo modo perdido. Melhor acordar, tomar um copo d’água, não pensar e com a luz acesa e voltar para cama, tranquilo e com a memória voltada para coisas próximas.

         Abriu os olhos. A treva da casa era silenciosa e dura. A mulher dormia. A filha dormia. Sentou-se na beira da cama. O coração e a cabeça opressos. Se o quarto não fosse um espaço tão exíguo nem precisaria agitar-se tanto. Mas de algum lugar daquelas sombras, atrás dos móveis as ranhas e seus mil palpos o olhavam comovidas.