domingo, 31 de maio de 2020

CRÍTICA - Minority Report: O oráculo, Tirésias e nossas famílias

Minority Report: O oráculo, Tirésias e nossas famílias


         As utopias do século XVI e XVII imaginavam uma sociedade organizada sob os princípios do bem, da justiça e equidade entre os homens, bem alicerçadas pela Filosofia e sua dileta filha, a Ciência. Utopia, Cidade do Sol, Nova Atlântida, são erigidas por filósofos que acreditam no poder das ciências e governo os homens que as habitam de acordo com os ideais do grande racionalismo clássico.

         O século XVIII elevou o sonho das utopias de Thomas Morus, Tomaso Campanella e Francis Bacon a um novo ideal. Os filósofos iluministas acreditaram mais ainda no poder da razão e propuseram que este atributo humano poderia perfeitamente se usado de forma adequada superar todas as contradições das sociedades e construir uma civilização que fosse o mais feliz e justa quanto possível.

         No século XIX a ciência abandonou o lar materno da Filosofia e foi fazer carreira própria propondo-se como reformadora da sociedade, da natureza e do próprio ser humano. O espírito positivo ensinava que nenhuma metafísica era real e que nenhuma religião poderia cumprir sua promessa de felicidade. Mas a ciência alcançaria para o homem um estado de completa bem aventurança.

         Mas aí veio o século XX. Duas guerras mundiais onde todo o aparato científico e tecnológico criado pelo gênio científico humano foi posto a serviço da morte e da auto aniquilação da própria humanidade. A razão libertadora revelou-se irracional quando produziu vinte milhões de mortos nas trincheiras da primeira guerra e cinquenta milhões de vítimas ao final da segunda guerra. A ciência que alavancara o progresso da humanidade como supusera August Comte mostrou-se eficaz ao ser aplicada no extermínio de milhões de pessoas nos campos de concentração nazistas.

         Além disse às sociedades que haviam sido erigidas sobre princípios revolucionários e prometendo justiça e igualdade entre os homens mostraram-se sistemas autoritários e opressores que não libertaram os homens, mas apenas os tornaram escravos de outros homens que por inépcia faziam uso arbitrário da violência institucionalizada para conservar seu poder e perpetuar suas autocracias.



         Assim, as utopias do século XX não eram propriamente otimistas. Quando alguém pensava e escrevia sobre o futuro ideal o que passou a ver não foi a felicidade entre os homens, mas sociedade controladas por indivíduos carismáticos, mas que faziam uso de todo tipo de subterfúgio técnico-científico para controlar as massas e conservar sua vontade de poder.

         E ainda nem comecei a falar do filme Minority Report (Relatório Divergente?). Steve Spielberg, EUA, 2002.  Farei daqui há pouco. Na segunda metade do século XX, logo após o fim da Segunda Guerra Mundial, a crença num mundo democrático e justo parecia consolidada, pelo menos na aparência. Mas a realidade não se adequava com o mundo das ideias.

         As democracias liberais mostraram-se bem menos democráticas do que nos discursos. Verdade é que o indivíduo foi sendo liberado. Liberado sexualmente. Liberado para consumir. Liberado para produzir. Liberado para ter. Mas o estado passou a exercer sobre ele um poder até então nunca visto. O poder de fazer-lhes medo e vigiá-lo porque cada um era um perigo para si para o organismo social como um todo.

         As décadas de 1980 e 1990 viram as ditaduras ocidentais se diluírem, mas não viu a liberdade humana aumentar. O estado passou a fazer uso da tecnologia para impor um controle cerrado sobre a sociedade como um todo.

         Durante o período da Guerra Fria o perigo externo ameaçava a segurança do estado e do modo de vida que o estado garantia aos indivíduos que o compunham. Mas na década de 1990 não havia necessariamente mais a ameaça externa (capitalista ou comunista) pondo em risco o modus vivendi da população em geral. Então o viu-se erigir um novo tipo de medo. O medo de se desestruturar nossas famílias. Ou ainda o medo da violência que ameaça nossas famílias.

         Os filmes catástrofes de Hollywood são a melhor ilustração desse medo. É o terremoto que separa os pais dos filhos. O asteroide do armagedon que vai reunir pais e filhos freudianamente separados, invasão alienígena que vai nos ensinar que o mais importante é nossa família e sua segurança no lar perfeito.

         Esse é de alguma forma o tema que move-se de lá para cá no filme Minority Report. O competente policial que resolve todos os crimes da cidade, protege as famílias dos outros, mas por falha do destino da qual ele se culpa, não consegue proteger a sua própria família que acaba sendo vítima da violência que ele combate.


         Esse policial utiliza então sua frustração por não ter conseguido proteger sua própria família para fazer justiça e não permitir que o que aconteceu com ele aconteça com outras. É o bom moço que vai descobrir a trama que se esconde por trás de um prolixo esquema de valores e poder que ninguém compreende como funciona, mas que o filme não se cansa de dizer, paciência, o sistema é assim mesmo, complexo, mas funciona.

         Que funciona no filme tenho minhas dúvidas. O diretor está propondo ao espectador uma reflexão de nível proto filosófica ou mesmo filosófica. Apela ainda que um tanto constrangido para conceitos filosóficos. Pergunta: Então, a religião hein? E a metafísica que é isso? E a ciência pode mesmo é? Você deixa que os caras que sabem dessas coisas de tecnologia façam isso com você?

         O Distrito de Columbia é o mundo em 2054 ou um lugar no mundo em 2054? Não importa. O que o filme quer dizer e que não chega a dizer totalmente é que nossas famílias estão em risco então podemos fazer uso do que nos tiver mais a mão para protegê-las. É claro que o filme quer dizer isto, mas quando vai dizer cria um imbróglio de ficção científica, uma parafernália de computação gráfica que estraga a mensagem do filme.

         Mas você pode assistir Minority Repor ainda. Recomendo que desconsidere a parafernália. De repente você vai ver saltar diante dos seus olhos um enredo mais ou menos completo.

         Há um oráculo preso numa caverna. Uma Pitonisa que fala com seus sacerdotes depois de uma ajudinha alucinógena. Prevendo o futuro mais imediato o oráculo advinha que um crime vai acontecer e que esse crime vai destruí uma família. Os sacerdotes interpretam a fala do oráculo e tem um tempo bem curto para impedir o crime, salvar a vítima e condenar o assassino por um crime que ele cometeria se não fosse impedido.

         É uma situação inusitada essa diz-nos o filme. Ele ainda não matou, mas vai matar. É certo que matará, não tem escolha senão consumar o ato criminoso. Essa justiça e essa polícia do Distrito de Columbia não pensam em prevenir o crime, pensa apenas em impedi-lo nos seus momentos decisivos para ter como condenar o assassino impedido, por assassinato!


         Até aí tudo bem, trata-se de um debate. A justiça pode ser feita antes de se cometer a injustiça? Se Deus conhece a mentira e o pecado humano pro que ele não os impede? Mas afinal de contas lá pelas tantas do filme, somos alertados de que o homem pode escolher. Mas ele não escolhe nada.

         Primeira citação grega do filme. Em si ela não é suficiente para lhe dar um status de filme filosófico e nem sei se era isso o que pretendia o diretor. Então aparece Tirésias. O cego Tirésias dirige-se mais uma vez a Édipo nas escadarias do palácio de Tebas e alerta-o da inconveniência da sua presença na cidade.

         O ver, o ato de ver. A visão. Os olhos parecem poder funcionar como um bom símbolo para as ideias que circulam no filme. Visão sobre o futuro. Abrir os olhos para ver Deus. Ficar de olhos abertos para ver a verdade. Contemplar a justiça justa. 2054 é um tempo onde o olho é largamente utilizado. Você é reconhecido pelos olhos. Sua identidade está nos olhos. Examinando sua retina você é classificado como consumidor, trabalhador, culpado ou inocente. Inventaram até uma forma de fazer um transplante completo de olho.

         De certa forma é a ideia mais interessante e bem investida do filme. Se o debate sobre a justiça justa e o perigo constante das nossas famílias não engrena de todo, pelo menos a ideia do ver, dos olhos, do visível, parece avançar bem. Posto que não seja resolvido completamente.

         Os problemas propostos no filme são esses. O espectador vai deparar-se com eles e até se perguntar se nosso mundo já é assim. A resposta é que ele já é assim. Temos medo. Muito medo mesmo. Nossas casas têm cacos de vidro no muro, cerca elétrica sobre os cacos de vidro, câmeras na cumeeira, sistema de alarme integrado. Não acreditamos na justiça, mas acreditamos muito na polícia.

         Tudo pelas nossas famílias. Sem Deus, mas sob a guarda do Supremo Panópticon.

         Ah! O filme é bom. Não tive como dizer antes. mas veja bem, ele é apenas bom.



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