domingo, 24 de maio de 2020

CRÍTICA- FILME CIDADE DE DEUS


Cidade de Deus e a espiral

         Voltei ao filme Cidade de Deus sem a emoção da expectativa do filme que retratava o Brasil ou realizava a acomodação do pensamento com a coisa. Compreendi então que há um filme por dentro do massacre dos atores.

         A vida no Cidade de Deus, (digo no filme), ora passa em câmera lenta, ora em câmera acelerada, muitas vezes em frame rate e ainda inquietantemente em 180º. A fotografia é real, mas montada para parecer fictícia.

         O diretor começa o seu filme. Concentro-me nele, em Aristóteles, (não no personagem) no filósofo.

         O Motor Imóvel começa a rodar as coisas. Roda a vida dos homens, roda a coisa movente. Ele tudo move, mas não pode move-se a si mesmo. Com efeito, o Primeiro Motor que é eterno, move sem ser movido, é uno e indivisível, não é movido, mas é movente. Penso nisto e assisto ao filme.

         A totalidade é já o primeiro impulso e eu sou o espectador que não sabe o que a pôs a girar. Havia um ponto, uma circunferência, muitos ângulos, ninguém notou, ninguém pensou nisso, mas agora que é uma sequência dar para racionalizar. Tenho outra ideia, sobre espirais.

         Primeiro vem à expectativa de um filme sobre o Brasil – Foi assim mesmo que começou. É o trabalho do Primeiro Motor e ouve-se falar dele, mas o pensamento não cresce aí. É a Coisa-em-si do filme, há alguma referência a sua potência, ao seu aparecimento como o fulgor de um raio extremo – “a rapaziada do governo não brincava”. É um efeito conhecido, o que se pensa quando se pergunta – de quem é a culpa?


         Mas temos já o entendimento do filme? Não supúnhamos que seria tão fácil. Mas como foi fácil, nos recolhemos a bondosa visão do espectador que vai a um filme político. Mas este é filme político? Pode ser um filme político, na medida em que se inclina para justificar como esses negros pobres, sobrevivem na sua miséria e brincam de faroeste e guerra civil.

         Não que este seja o lado superficial do filme. Há um faroeste nas favelas do Rio de Janeiro, (pelo menos no cinema televisionado), e há também uma guerra civil nos bairros pobres do Rio de Janeiro, de São Paulo, de Salvador, do Recife, Brasília. Mas a guerra civil aparece principalmente nas estatísticas e no jornal. Algumas mortes, muitas mortes. No filme vemos isto: Revólveres, balas, balas, balas, balas, balas, balas, balas, balas; não acabar de balas numa só arma. E os massacres então?

         O espectador diz: O filme é sobre a violência congênita nas nossas cidades.

         É. O filme é sobre a violência. É? Não creio que todo ele. Se fosse sobre a violência então teríamos personagens mais humanos que compreenderiam a gratuidade inútil de toda violência injustificada. Mas os personagens nem sabem que são violentos. Os personagens não sabem que são bons nem maus. Eles estão ali. Como chegaram a estar ali?



         Seria um filme sobre isto? Como chegaram os personagens que um dia foram reais a serem o que foram? O filme explica tudo. Sabemos como Zé Pequeno veio a Zé Pequeno, o Sandro a Sandro Cenoura, o Mané Galinha também é explicado, o Cabeleira, o Marreco, o Dadinho.

         Logo é um filme sobre como a pobreza, a miséria, o descaso levam os pobres ao abandono da violência e à criminalidade. As drogas estão no filme, os furtos, os assaltos, a promiscuidade, o esforço de quem quer viver uma vida tranquila pelo trabalho honesto também. Mas tudo isto são elementos de sociologia acadêmica que já vem passando nas telenovelas e telejornais.



         Então o filme é sobre nada? É uma reprodução de velhíssimos clichês que foram amadurecendo na década de 1970 e 1980? Não e sim. Sim, porque esse é realmente o lado superficial do filme. É Cidade de Deus, também é um filme superficial, calma, Cidadão Kane, também é. Há sempre algum clichê num filme. Lembro que ao assistir Viagem à lua de George Méliès fiquei aborrecido com o clichê da lua de queijo suíço. Mas gostei do filme por isso mesmo. Ficção de ficção. Cidade de Deus, não foge a regra, diz: olha, o governo não faz nada, a sociedade não faz nada, os pobres são empurrados para a miséria e a indigência então este barril vai explodir e as faíscas vão chegar até nós. É uma sociologia de revista semanal também. Mas gosto do filme por ter tocado nesse assunto.

         Mas não era isto o que o diretor pensava quando fez isto no filme. Sei lá se não era. O que eu vi foi isto e gostei. O que gostei também foi do lado metafísico do filme. Foi por causa dele que quis escrever esta crítica. Como ver quem me lê desde o começo, falei sempre de um ponto de vista metafísico mesmo deste trabalho de Fernando Meirelles.


          E aí toco no ponto que desfez em mim toda a primeira impressão sobre Cidade de Deus. Eu gostei. Não refleti sobre o Brasil quando o assisti segunda vez. O que refleti foi sobre a espiral. Sim, veio-me a espiral. Fui pensando nisto e entendendo que o filme era sobre a espiral.

         Não era sobre Aristóteles e o Primeiro Motor Imóvel? Sim, eu pensei nisto também, mas tive tantas boas ideias enquanto via ao filme que me veio filosofia e matemática.

         Então só pode ser isto mesmo. É um filme sobre a espiral de violência em que se transformou o Brasil. Diz meu amigo que ler o que escrevo concordando comigo.

         Não é nada disto. É um filme sobre a espiral mesmo. Peroro misterioso e amargo. Vejamos como me explico.

         Uma circunferência, dividida em ( n ) partes iguais ( o Cidade de Deus, o bairro), com o raio dividido no mesmo número de partes iguais  ( n ) (Cabeleira, Alicate, Marreco, Dadinho, Bené, Paraíba, Big Boy, Sandro Cenoura, Aristóteles, Zé Pequeno, Neguinho, Cabeção, Tio Sam, Tiago, Jacaré, Rafael, Lampião, Filé-com-Fritas, Caixa-baixa, Manuel Machado, Jovem Trabalhador); muitos círculos concêntricos que passam por estes raios, (o bairro, a cidade, o país, a polícia, os jornalistas, o governo, a miséria, o abandono, o tráfico, a morte, a corrupção, o crime, a conivência, a classe média,) os pontos de intersecção entre as circunferências e os raios (violência estrutural, violência superestrutural)  e a curva que passa por estes pontos (o filme), digo a espiral.

         A realidade representada no filme é um scroll comprimindo-se imóvel. Isto é, há todo um movimento embutido nela, mas o Motor Imóvel que movimenta a superfície deixa intacta a espiral em baixo e outros descerão até lá para emergir e voltar a descer, mas há um consumo, e alguma vez alguém desce e não volta. Outros voltarão, mas o movimento que é eterno ainda os comprime mais. Vão ceder.

         Ceder não é sinônimo de sobrevivência é uma forma de ir escapando. Mas o Primeiro Motor Imóvel continua seu trabalho, como ele é a totalidade não o temos visível no filme, sua onipresença é, no entanto completa.

         Assim combino uma tese metafísica com uma geométrica e salvo a minha crítica. Mas você que me ler não ver nada disto no filme e é pena.

         Quem assiste ao filme pela primeira vez o ver o que é visível e dominante, mas da segunda vez, compreende tudo, e conclui com pesar metafísico: então essa violência que não é real, mas que o filme expõe onírica e luminosa move a película e move-me sem no entanto ser movida?

         Não é culpa do diretor e não é culpa do roteiro se nós não gostamos do filme, ele não avança para o fim quando acaba. Ele avança para o começo do movimento. É tudo um reaproveitamento de potência que faz o Moto Imóvel funcionar as suas engrenagens e êmbolos, a corda do motor é a espiral. Olhe pra dentro do filme, você vai ver como o coração funciona.

         O que eu digo e que Cidade de Deus não se recusa uma interpretação do Brasil, uma tentação, mas não é só isso, e não é isto que ele é. Fernando Meirelles acertou quando foi superficial e eu gostei muito, como gostei quando ele quis ser profundo.



 

 

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