domingo, 17 de maio de 2020

CRÍTICA - O PIANISTA OU ORFEU NO INFERNO

O pianista ou Orfeu no inferno

         O pianista de Roman Polanski é um ótimo filme. Você assiste e gosta dele. Gosta dos atores. Gosta da fotografia. Compreende o que o diretor quer dizer. É um filme realista e não mente aos seus propósitos. Então por que eu esperava ainda mais do filme?

         Antes de responder vamos ao filme propriamente dito. É um filme de guerra? Sim, é um filme de guerra, mais especificamente sobre a Segunda Guerra Mundial com todos os seus elementos e implicações históricas. Temos os nazistas truculentos e sádicos. Temos morte, muita morte. Humilhação e desumanização. E a vida querendo viver ainda mais no caos. Talvez seja esse mesmo o grande ponto de sustentação do filme de Polanski – a vontade de vida do personagem Władysław Szpilman.

         Mas eu quero ir mais fundo. Quando a guerra começa a tranquila vida da burguesia judaica da Europa oriental vai ruir subitamente. Então ninguém percebeu nada até que realmente aconteceu? Em O pianista vamos compreender que havia muitos quem nem mesmo pareciam imaginar o que viria a acontecer quando a guerra começasse e os nazistas ocupassem as cidades e países onde havia população judia.

         A família Szpilman vivia confortavelmente uma existência de classe média de Varsóvia, mas praticamente ignorava o que lhe aconteceria e aos outros judeus poloneses. Absolutamente não acreditam que os alemães vençam a guerra e depõem sua esperança numa reação rápida do governo e dos seus aliados. Mesmo quando as tropas do Reich de Hitler marcham nas ruas da cidade e aos poucos as restrições do governo de ocupação vão se fazendo concretas eles ainda não podem acreditar que possa acontecer algo tão terrível entre os homens.

         Brilhante perspectiva esta. Afinal impossível acreditar que a racionalidade sucumba diante da voragem irracional. É então que assistimos como não havia nada de irracional nos nazistas. Eles tinham sido treinados pelos melhores métodos. Haviam estudado nas melhores universidades com os melhores professores. O que faziam, faziam com método, disciplina e organização. A violência é racional. Então o diretor não nos deixa nunca falar na loucura nazista.

         Então por que a família Szpilman não compreendeu o que se passava com eles nem com o seu país? Talvez porque eles mesmos não esperassem o uso da razão como instrumento de extermínio deliberado do outro ou a violência racional como razão de estado. Vemos milhões de seres humanos sendo abandonados para seu completo extermínio. Abandonados por quem? Primeiro pelo governo constituído por eles para protegê-los. Onde o contrato social? Fugitivo o governo polonês não se importou com a conhecidíssima plataforma política de Hitler de extermínio total do povo polonês.


         O filme mostra esse povo abandonado em Varsóvia. Judeus e não judeus, (em geral católicos) estão sendo caçados igualmente. Aí aparecem os colaboradores com os alemães (judeus e católicos). O filme mostra que os heróis são poucos e os vilões podem ser uma multidão. Quando a vida passa a valer nada então o que se impõe é o instinto de vida. O gueto de Varsóvia antessala de Auschwitz é o portal do inferno.     Mas onde Deus? Não pensamos nele durante o filme. Deus é tão ausente quanto o governo polonês em fuga. Os homens agora só podem esperar que ainda estejam vivos no dia seguinte para tentar continuar vivos mais um dia e mais um dia, sem promessas, mas vivos.


         Władysław Szpilman é um homem que vive. Rastejará através das ruínas de Varsóvia para sobreviver. Apesar de tudo ele ainda não desistiu da vida. O filme não deixa claro, mas não deixamos de perguntar – o que o mantém vivo? O realismo da vida de um homem judeu perseguido e clandestino na Varsóvia ocupada pelos nazistas é que é impressionante. E ele vai sobrevivendo ao caos e nós vamos perguntando – Por quê? Para quê? Mas a final de contas vale mesmo apena viver?


         Essa é uma das virtudes do filme de Polanski, não é niilista. Acredita no ser humano e nem mesmo recusa-se a redimi-lo diante do bem e da superação do mal. É verdade que a arte é a mediadora desta redenção humana. Tentação romântica? A cena do piano no sótão em ruínas, uma releitura genial de Orfeu nos infernos e de Orfeu amansando as feras é brilhante.


         Então, por que eu esperava mais do filme?

         Esperava um herói ativo, mas o herói era um rato correndo para esconder-se na toca, era um rato escondido nos escombros. Esperava que Władysław Szpilman não fosse o espectador da miséria e da violência, mas que lhe resistisse potente. Fui com sede de heroísmo romântico ao filme e voltei com a triste constatação de que afinal de contas o humano que nós somos sente frio, medo, espera no vazio, tem fome, esconde-se, foge para viver e amansa as feras para conservar-se. A morte pode ser no constante agora, mas se se pode viver mais, não há lugar para o medo da vida, pois o medo da morte é sempre maior.


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