domingo, 5 de abril de 2020

CRÔNICA - A MENINA MORTA



A menina morta


         Era Amanda o seu nome, como lhe tinha chamado a mãe. Não ganhara batismo, mas tinha registro civil e tudo. Quando morreu era pagã e sem virtudes nem pecados para um sepultamento cristão. Nascera doentinha. Nascera não é bem o verbo que se use adequadamente para seu caso. Viera ao mundo e passara curto tempo. Não teve nenhuma glória enquanto pouco viveu e também não era certo que a gozasse algum dia se muito tivesse vivido.
         Sua vinda não fora concebida com a necessária expectativa de felizes esposos, noivos de fresco ou num felicíssimo matrimônio que finalmente é coroado com o fruto de um filho há muito esperado. Não era promessa de Deus à mãe estéril ou ao pai na sua velhice. Sua vinda se fizera através das chafurdações de sua mãe na podridão da carne estuante e viciada da mulher em chamas.
         O pai? O pai era João, primo de Maria, Maria aquela seria a sua mãe. E João coabitou com Maria e desse conúbio da carne impondo-se ao pecado nasceu a menina que veio a morrer logo, mal tinha entrado no mundo. Quando ela se fez vida é incerto. Um dia Maria compreendeu com uma singular clarividência que ia ser mãe. Não chegou a exprimir isto em tão alta voz que pudesse ser ouvida. Também não tinha o necessário conhecimento da maternidade inevitável. Apenas compreendeu que entre uma lua e outra lua as regras inconstantes tinham se interrompido de todo.
         E João que sempre vertia fora? E ela que vira o líquido espesso dele secando sobre as folhas no chão? Previdência desnecessária, inútil rio desviado para fora do seu curso. E ela agora conceberia e teria um filho, a quem dizer primeiro? Não ao pai, morta seria. A mãe que compreenderia antes. Depois o escândalo. Então Maria. Nunca que ninguém pensasse. Mas quando ninguém pensa é que acontece. E com João que está noivo de outra. Com Maria ele não casa. A tia sustentaria que com Maria o filho não casava.
         O pai saberia de tudo e ela morta.
         Depois que a mãe soube e compreendeu em silêncio o que tinha acontecido. Ela pensou que podia contar tudo pra João. Inútil João saber, nada acontecerá. A tia que também saberá, ela que pariu Mateus que balance. Com ela João não casava. Moça que guarde sua honra, não se bota corda num homem. Solto no mundo é bode no matagal. Desse modo impossível João responsável.
         Quem soube foi o pai. Feito louco desesperado. Então uma filha? A desgraça que entra na casa e quem é? A filha. A filha. A filha. A vergonha, um pai, quem? um pai que tem uma filha e veja o que acontece com este pai, um desgraçado, pois a filha sem honra que é? Não é mais uma filha é a vergonha que a perdida faz entrar na casa. Não vê que tem irmãs, não vê tem mãe, não vê que tem pai. Vai e dar o priquito no mato e volta com a barriga cheia pra casa!
         Com quem? Ah com quem! Veja que foi com o João, sempre aí de olho arregalado pelo terreiro da casa, as conversas de pé de ouvido, um pai não pode trabalhar com uma filha dentro de casa. Por que a mãe, esta? A mãe está com a filha. Duas. Uma que é cadela e a outra que fecha os olhos pra não ver a cadela viçar. E o pai que nunca sabe de nada só tem o gozo da vergonha. Uma filha que cospe na cara do pai que caga e mija na honra do pai. Morta! Morta! Morta! Nenhuma palavra quando acordar, nenhuma palavra quando se deitar, que a mão que pedir bênção seque e que cada dedo crie apostema.
         Por que não morre João? O pai que pode matar a filha desonrada é o pai que pode matar o cão danado que a desonra. Mas o pai bêbado. João não morrerá. Maria morta para o pai. Dentro de casa o pai não dorme. Ver a filha nunca não pode mais. Esta filha que nunca teve. As outras muito cuidado.
         Depois de tudo isto veio a menina. Maria soube que era uma menina e quis que tivesse o nome de Amanda. João soube que era Amanda e que era uma menina, mas não a conheceu nunca. O avô ouviu que diziam era uma menina e se chamará Amanda, mas não tinha aquela filha e não tinha aquela neta.
         A menina que nasceu era muito doentinha. Falou-se que não viveria tanto. Amarela, olhos fundos, rostinho chupado, perninhas finas e barriga crescida. Nada não comia. Ou não comia quase nada. Quando comia, logo prisão de ventre. Mamar era um desespero, Maria sem leite. Noites de agonia. Dormia tão pouco, a cólica devorando-a por dentro. O choro baixo cuidava para não incomodar o avô?
         Mirradinha, não prometia crescer. Se se alimentasse alguma possibilidade. Contavam-se as costelas no corpinho sumido. Como previu-se não viveu muito. Uma tarde morreu. Como não tinha sido chamada ao mundo quis logo despedir-se dele. Não foi um despedir-se longo, fechou os olhos e parou de respirar. Não deixava nada nele que a fizesse querer reter-se mais. Não conhecia amor de mãe e não chegara a ver imagem do pai. Sofrera um pouco no mundo e isto bastava-lhe da vida. Parou de respirar e estava tudo acabado. Não era mais do que tinha sido antes.

         Quando a menina morreu, primeiro a mãe foi quem soube. As mãozinhas não se mexiam e a respiração estertorosa cessara. Veio a avó que informou. A menina morreu Maria. Um anjinho que Deus chamou. A mãe compreendeu isto e não chorou nada. Era um anjo que Deus precisava lá com ele na sua glória.
         E isto tinha acontecido a-boca-da-noite. Só amanhã de manhã o enterro. Toda a noite o velório do anjinho.
         Veio então uma mulher que preparava anjos e resolveu tudo.
         Vestiu a menina morta com sua melhor roupinha, e era um vestidinho que ela nunca tinha usado na vida. Calçou-a com um sapatinho branco que ela também nunca tinha usado enquanto pouco viveu. Passou carmim na sua face descorada e realçou seus lábios com batom vermelho vivaz. Pôs o cadaverzinho sobre a mesa do santo entre flores colhidas nesta mesma tarde e um candeeiro aceso que o iluminava.
         Depois viu-se o que acontecia atrás da casa. Era o avô que trabalhava na penumbra da luz da lamparina.
         Tábuas, esquadro, plaino, pregos, serra, martelo, formão. O avô recolhe tudo. Atrás da casa ele pela primeira vez carpinteiro. Bate prego. Serra tábua. Risca. Corta. Prega. Prega. Prega. Metade da noite invariável. Até conceber de suas mãos o amplo ataudezinho onde caberá o corpinho mirrado da menina que morreu logo.
         A mãe e as outras mulheres que compareceram ao velório do anjinho cortaram seda e cobriram o caixãozinho de fitas e cores azuis. Como a menina morta parecia que dormia puseram um travesseiro sobre o qual depuseram o anjinho defunto que pela primeira vez dormia sem o incômodo da grande mosca.
         No terreiro a alegria dos meninos que tinham crescido e viveriam. Os meninos que não entendiam nada de velório de anjos acenderam uma fogueira de São João e assaram milho, batata-doce, carne de vitela. Comeram tudo e contaram-se histórias de medo e de arrepio. Para os meninos que ainda viveriam uma noite memorável aquela.
         O dia veio e achou a menina morta dormindo dentro do caixãozinho. E o sol nascendo trouxe um raio de luz clara que iluminou a frente da casa, iluminou o terreiro, as cinzas da fogueira apagada, entrou mesmo na casa e iluminou as flores que se aspergiam sobre o cadaverzinho da morta, depois insistiu e a iluminou também. Mas veio o avô, cobriu-a com um pano, fechou-lhe o ataúde, amarrou-o com fita de seda. Pôs tudo na cabeça e seguiu pela estrada a sepultá-la no cemitério pagão da margem da estrada.




        

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