Ela
que era a outra
Procurou-se
refletida no espelho da penteadeira e quem encontrou? Uma flor que se abria ao
sol e ardia na claridade do quarto. Eis como não ser sombra. Tinha os olhos
abertos e as mãos transfiguradas. Espalmou-as sobre o seio tremente e sentiu-os
arfar como se ela estivesse imóvel prendendo a respiração.
Agora
ela atravessaria o mundo mesmo que sozinha e quem a olhasse com curiosidade
saberia que ela era uma mulher que estava segura dentro do seu corpo.
Estendeu
os braços para diante, para tocar com as pontas dos dedos a corola da flor que
se abria na superfície transparente do espelho. Estava magra como uma vara. Observou-se
com acuidade vaporosa. Seus braços eram duas raízes escuras emergindo do chão.
Mas ela seria uma negra muita amada. Quem a olhasse pensaria, é uma preta, uma
escurinha feliz.
Permitiria-se
a felicidade que Deus negou à sua mãe e as outras mulheres da família. Mas isto
não era toda a verdade. Então ela se lembrou de como ela era criança e a mãe
fazia duas tranças nos seus bastos cabelos crespos. Mas olhando-se depois do
espelho não era a menina de tranças escuras que a observava.
Agora
ela poderia encerrar o minuto de contemplação, mas recusava-se a estar sozinha
sem nenhuma imposição de pensamentos que a desculpasse desses limites.
Quando
se tornara assim, uma mulher? Ah! foi no dia que ficara morna, as pernas moles,
uma lassidão penetrara-a e ela fora perfurada por mil lanças quentes em todos
os poros da sua pele. Tentara dormir para acordar tranquila e descansada, mas
não pudera nunca conciliar o sono e o desejo de arder. Quanto tempo sofrera
assim? Bebera tanta, tanta, tanta água que afinal sucumbira líquida e
irrestrita.
Depois
regulara-se e esperava sempre a lua nova com a calma natural das flores que
esperam o sol do meio da manhã para se abrir impúberes e frescas requestadas na
totalidade da luz. Olhou-se mais uma vez no espelho e viu-se, corola de lírio.
Riu-se,
mas compreendia que dentro estava fria e vaga. Em verdade cansava-se. Tinha
então dezessete anos e se impunha a necessidade de entediar-se ouvindo o
professor falar dos platelmintos e do sistema digestório dos anelídeos. Um tubo
só, desde a boca até o ânus. Os nutrientes vão ficando pelo corpo do animal.
Eram os invertebrados.
Ela
não era um invertebrado, mas também não era uma ave, nem uma lesma, nem uma
pedra, nem uma semente. Ela não era nem mesmo a água límpida escorrendo fresca
e cálida entre as gretas do chão. Tudo o que era, era artificial e sumarento.
Mas ela se entediaria na escola até que a libertassem para a rua, para a luz
amarela das lâmpadas que faziam da noite uma realidade fria e oscilante, para a
contemplação das mariposas cegas que voavam em torno das lâmpadas dos postes da
iluminação pública.
Quando
voltasse para casa dormiria ouvindo a avó vencida, habitando num rumoroso sono
na cama ao lado. Antes de dormir ela pensaria mais uma vez na mãe que
trabalhava para que ela e as irmãs comessem. Viria também a lembrança do pai,
mas ela não se demoraria muito nisto, porque o pai era uma coisa em que se não
deve pensar muito cuidadosamente.
Insensível
recuou do espelho, deu-se as costas. Vestiu-se com a blusa da escola. Antes de
pôr-se a caminho ainda quis sentar-se e desculpar-se afirmando que estava tão
cansada para sair de casa que ela recusava-se. Mas também não tinha ânimo para
ficar. Como sobreviveria se ficasse?
A
mãe cansada. Muito cansada mesmo, e de um cansaço muito atroz. E a avó que acompanharia
o capítulo da telenovela. Ouviria as conversas na casa. Ouviria as vozes na rua.
Tinha sempre os meninos que brincavam na rua também. Os vizinhos que se
informavam nas calçadas. Depois o silêncio de quem se recolhe para a intimidade
da casa. E finalmente um grande e súbito torpor se abateria sobre tudo isto que
se acomodaria na sua concha até que viesse outra manhã com outro dia preso nas
asas.
Abandonou-se
livre e resolvida a aquiescer com a sua limitada vida. Sobretudo ela
compreendia a dor que se carpia enquanto vivia como uma mulherzinha fácil e
líquida. Afirmou conscientemente que não se impediria a nada porque sempre
havia o risco de cair do alto da escada e tropeçar no vazio que estava entre os
espaços que ela percorria e os lugares onde ela ficara muitas vezes muda e
parada.
Havia
outra pessoa que a olhava atenta e a espreita de dentro de um vasto espelho
claro e liso. Mas ela tinha dúvidas, e até mesmo sobre Deus não sabia como
afirmar peremptoriamente algo. Atravessou a sala e organizou os pensamentos
antes que a avó com a sua ânsia de amar pudesse vê-la sair.
Na
rua teve o primeiro tremor da claridade, mas pôde recompor-se logo enquanto
sentia que pisava nas pedras da rua e se dispunha a caminhar sem se opor a sua
decisão irrevogável. Não olhou para trás, pois não tinha nenhuma intenção de
ver como as sombras se inclinavam para verificar seus passos.
O
sol não existia mais no céu e iluminava apenas as nuvens muito altas que se
acumulavam douradas no recanto do ocaso. Era um fim de tarde com um princípio
irresoluta de noite.
Sozinha
ela atravessaria muitas estradas, muitos caminhos, percorreria inumeráveis
países e caminharia sobre muitos mares encrespados. Mas isto era uma saída
difícil. Contentar-se-ia em abrir uma porta e sentar-se calma e resoluta sobre
uma cadeira a sua disposição.
E havia
sempre a suspeita do amor que a esperava chegar. Muitos ela poderia amar. Mas
nenhum que ela necessitasse. Um dia que lhe perguntassem – mas quem, Lídia? Ela
poderia olhar em volta e pensar antes de responder que não estava disposta a
revelar-se como uma rosa num jardim.
Era
imprescindível calar-se, porque silenciosa e breve ela estaria trabalhando para
preservar-se enquanto se elucidava por dentro. Terminou de percorrer o bairro e
estava na hora de atravessar os trilhos do trem para chegar na rua da escola.
Ouviu
o silêncio da travessia e cruzou os trilhos caminhando por eles sem ocupar-se
em pisar no cascalho. O capim nascia entre as gretas das pedras quebrando a verdade
das palavras da parábola. Verdade é que ela não sabia mais se o semeador
lançava as sementes na areia, na pedra e nos espinhos, ou na água salgada, no
fogo e no caminho. Muito tempo se tinha passado desde que ela recebera aquele
aprendizado para repeti-lo como uma fórmula. Agora o que tinha nas mãos nem
eram lírios, nem rosas, nem sementes. O que trazia nas mãos eram pedras, longas
pedras frias que ela poria na boca para pensar claro.
Viu-o
logo e ele era um menino bonito e a pretendia. Mas ela não lhe concederia nada.
Desde quando se impõe que uma flor natural não morra depois de um dia de
beleza?
Olhou-o
encostado ao muro da escola. Sim, ela teria que passar por ali até chegar ao
portão e atravessar. Ele um moreninho alongado, era um homem que começava e
tinha formas que cresciam. Ergueu os olhos para vê-la e para que ela o visse.
Mas Lídia já tinha decidido tudo. E era sábia porque não se esforçaria mais
para nenhuma escolha. Sem olhá-lo fixamente caminhou pela calçada e foi
postar-se na outra ponta.
Se afinal não viesse logo ela precisará entrar
na escola e resistir aos professores e as aulas até verter-se de raiva e
sucumbir numa letargia silente e vaga. Ouviu o sinal, convocava os alunos
noturnos para o início da aula. Ela iria? Entraria? Viu que Pedro, (ele era
Pedro) entrara com os outros meninos. Ficou assim mais tranquila e encostou-se
ao muro, resolvida mesmo a dar-lhe uma chance.
Mas
ela, Lídia, tão cheia desse táctil orgulho feminino conceder-lhe-ia o sulco da
espera? Desvencilhou-se do muro e caminhou para o portão arrastada pelo
despeito. Se visse Pedro lá dentro lhe daria algum privilégio. Antes de chegar
ao portão parou e olhou toda a extensão da rua procurando divisá-lo em alguma
esquina ou vendo se o divisava dentro de algum carro que passava. Compreendeu
que não apareceria daquela vez e um grosso sorvo de ar a sufocou. Entrou.
Teve
vontade de chorar, porque afinal nem essa desculpa para ser feliz poderia
dar-se. Entrou para ser imolada sem nenhuma possibilidade de redenção ou de mão
que a pudesse ajudar na via dolorosa.
Só quando
acabou a aula e pode vir para a rua sem ter que ficar olhando o jardim pela
seteira, viu-o em pé do outro lado da rua encostado ao carro. O coração sem freios
saltou dentro dela. Resolveu que o odiaria e procurou alguém que em quem
pudesse apoiar-se e seguir para casa sem culpa de ter fugido e não tê-lo visto.
Mas
isso era impossível. Não pensaria mais em nada e quando chegasse a casa ela
sabia que choraria louca de raiva e odiaria mais a si mesma do que a ele.
Assim
atravessou a rua para poder abordá-lo de perto:
__Não
sei por você veio.
Ele,
maduro, sorriu:
__Vim
por você.
__Acredito.
__Pois
eu afirmo que vim e até juro.
__Você
jura.
__Podemos
sair daqui?
__Você
pode, eu volto pra casa.
__Impossível
que eu deixe.
__Não
sou sua mulher nem sua filha.
__...
__Não
ficou de vir mais cedo?
__Fiquei.
__Ficou.
__Podemos
sair daqui?
Ela
o viu impacientar-se. Poderia impor-se como uma menina ou como uma mulher com
muitas arestas diante dele, mas antes de rebelar-se completamente viu-o abrir a
porta do carro e então ela entrou rápido. Arrancou com o automóvel para outra
rua onde pudessem conversar sem implicações. O carro andava e ela silenciosa remexia
no fundo da bolsa fingindo procurar algo que nunca pusera lá dentro. Precisava
disfarçar-se, ainda que parcialmente estivesse convicta de que não poderia
render-se como qualquer mulherzinha fácil. Mas como permanecer imóvel diante de
tão vasto campo?
Ele
a olhou sem virar o rosto para ela. Compreendia assim que ela não resistiria a
nada. Sucumbiria como uma flor colhida diante dele. Ungiria seus pés com
perfume e os enxugaria com seus cabelos. Submetê-la-ia quando ela parasse de
remexer na bolsa. Parou o carro propositalmente numa rua sem saída. Esperou que
ela se desesperasse de procurar na bolsa.
__Afinal
encontrou?
__O
quê? Ela parou oblíqua, com a pergunta.
__Você
me esperou muito?
__Esqueceu
que eu tinha aula?
__Ah!
você tinha aula.
__Por
que não veio mais cedo?
__Trabalho.
Mulher. Casa.
__E
filhos naturalmente.
__Que
você quer? Sou casado, trabalho, tenho filhos, uma família constituída.
__Ainda
bem que você me disse isto agora. Então eu posso te largar, por que você é um homem
casado afinal.
__Filhinha
olha, vamos por uma pedra. Deu um problemão lá em casa. Minha filha. Coisa de
Filha que um pai tem que resolver. Um pai tem que falar com autoridade para uma
filha não se perder de todo. Você sabe, nem sempre a mãe.
__...
__Agora
eu vim. Lá mais calmo. A menina aprendeu uma lição. A mãe que deixa a borboleta
solta. Depois o pai é quem. Você sabe. A menina está na fase. Você também,
quase a mesma idade vocês duas. Mas é de você que eu gosto. Vim e fico com
você. Lá em casa só tormento.
__...
__Você
é minha?
Ela
que nunca deixara de ser dele olhou-o compreendendo-o. Que poderia mais querer?
Aceitara desde o princípio sua condição de ser ela, a outra que ele amava.
Nunca se enganara com ele, porque nunca estivera ignorantona de nada do que ele
era. Casado, com mulher e filhos, e trabalhava tanto, tanto, muito,
constrangendo-se diante do chefe, obrigando-se a ganhar pouco e trabalhando até
tarde. Ela escolhera aquele amor estratificado, e com essa pedra levantaria sua
casa, o que não sabia era em que terreno do vasto campo.
Roberto
a beijou e a trouxe para si. Ela veio e ele a acolheu. Era a sua mulherzinha de
volta. Beijou-a mais. Beijou-a com todos os beijos da sua boca para tê-la
súplice e integral. Era para ela que ele convergia quando acabava o expediente.
Em casa quem era ele? O tutor da esposa e o pai dos seus filhos. Em casa, uma
noite incerta para o amor. Com ela o amor modelando-se na argila avara. E ele que
a conquistara quando estava quase convencido de que afinal precisava render-se
a casa, à mulher e aos filhos e fazer-se leão de zoológico. Afinal era ainda o
glorioso caçador de virgens. E virgem a tivera. Sim que ele segurara a
virgindade dela nos seus dedos. Com quarenta e seis anos nem se imaginara mais uma
fera pujante e viciosa. E pensava na promoção que era certa nas palavras do
chefe. Então uma casinha pra ela? Uma casinha onde ele pudesse amá-la. Quem na
oposição? Não a mãe dela, muito ocupada em por comida em casa para as outras
filhas. Não o pai, muito longe e bêbado, separado da mãe. Uma casinha onde
pudesse amá-la uma, duas vezes por semana. Quem na oposição? Não sua mulher.
Porque nenhuma intenção de largá-la, nem podia com os filhos que tem com ela.
Nenhuma possibilidade de escolher entre duas. Quem das duas sem ele? Abraçou-a
e sentindo-a disposta e entregue, pôs as mãos sobre suas coxas, ela deixou.
Ficaram calados. A respiração dela quente e úmida acordou-o e o pôs preparado
para a noite, tumulto sentidos; ofegante ele impulsionou-se para trás, bebeu um
grosso volume de ar e suspendeu-se sobre o banco do carro.
__Vamos
pra outro lugar?
Era
a fala dele e ela compreendeu sem susto a grande revelação do desejo dele preso
nesta pergunta. Calou-se consentindo-se e ele deu a partida no carro que rodou
em marcha à ré nas pedras da rua. O barulho do motor esquentou seus pensamentos.
Saíram para uma avenida larga e despovoada. As rodas do carro impondo o
movimento e ela resvalando entre as pedras do rochedo liso. Lá embaixo as águas
paradas e o silêncio enovelando-se no fundo. Havia uma torpeza íngreme e
indigesta dentro do amor. Mas ela permaneceria imperturbável mesmo diante da
clarividência desta verdade. Não se imporia o mistério de pensar sobre isto. Viveria
apenas como uma folha, na superfície dessas águas e impulsionada pelo vento. E enquanto ele guiava o carro calado
percorrendo a avenida ela olhava para fora observando os últimos cães notívagos,
os postes da iluminação pública, os muros extensos que escondiam as casas
felizes cobertos de trepadeiras. Lá no céu límpido e escuro viu uma estrela
muito fria que brilhava transparente e muda.
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