domingo, 19 de abril de 2020

CRÔNICA - ELA QUE ERA A OUTRA



Ela que era a outra


         Procurou-se refletida no espelho da penteadeira e quem encontrou? Uma flor que se abria ao sol e ardia na claridade do quarto. Eis como não ser sombra. Tinha os olhos abertos e as mãos transfiguradas. Espalmou-as sobre o seio tremente e sentiu-os arfar como se ela estivesse imóvel prendendo a respiração.
         Agora ela atravessaria o mundo mesmo que sozinha e quem a olhasse com curiosidade saberia que ela era uma mulher que estava segura dentro do seu corpo.
         Estendeu os braços para diante, para tocar com as pontas dos dedos a corola da flor que se abria na superfície transparente do espelho. Estava magra como uma vara. Observou-se com acuidade vaporosa. Seus braços eram duas raízes escuras emergindo do chão. Mas ela seria uma negra muita amada. Quem a olhasse pensaria, é uma preta, uma escurinha feliz.
         Permitiria-se a felicidade que Deus negou à sua mãe e as outras mulheres da família. Mas isto não era toda a verdade. Então ela se lembrou de como ela era criança e a mãe fazia duas tranças nos seus bastos cabelos crespos. Mas olhando-se depois do espelho não era a menina de tranças escuras que a observava.
         Agora ela poderia encerrar o minuto de contemplação, mas recusava-se a estar sozinha sem nenhuma imposição de pensamentos que a desculpasse desses limites.
         Quando se tornara assim, uma mulher? Ah! foi no dia que ficara morna, as pernas moles, uma lassidão penetrara-a e ela fora perfurada por mil lanças quentes em todos os poros da sua pele. Tentara dormir para acordar tranquila e descansada, mas não pudera nunca conciliar o sono e o desejo de arder. Quanto tempo sofrera assim? Bebera tanta, tanta, tanta água que afinal sucumbira líquida e irrestrita.
         Depois regulara-se e esperava sempre a lua nova com a calma natural das flores que esperam o sol do meio da manhã para se abrir impúberes e frescas requestadas na totalidade da luz. Olhou-se mais uma vez no espelho e viu-se, corola de lírio.
         Riu-se, mas compreendia que dentro estava fria e vaga. Em verdade cansava-se. Tinha então dezessete anos e se impunha a necessidade de entediar-se ouvindo o professor falar dos platelmintos e do sistema digestório dos anelídeos. Um tubo só, desde a boca até o ânus. Os nutrientes vão ficando pelo corpo do animal. Eram os invertebrados.
         Ela não era um invertebrado, mas também não era uma ave, nem uma lesma, nem uma pedra, nem uma semente. Ela não era nem mesmo a água límpida escorrendo fresca e cálida entre as gretas do chão. Tudo o que era, era artificial e sumarento. Mas ela se entediaria na escola até que a libertassem para a rua, para a luz amarela das lâmpadas que faziam da noite uma realidade fria e oscilante, para a contemplação das mariposas cegas que voavam em torno das lâmpadas dos postes da iluminação pública.
         Quando voltasse para casa dormiria ouvindo a avó vencida, habitando num rumoroso sono na cama ao lado. Antes de dormir ela pensaria mais uma vez na mãe que trabalhava para que ela e as irmãs comessem. Viria também a lembrança do pai, mas ela não se demoraria muito nisto, porque o pai era uma coisa em que se não deve pensar muito cuidadosamente.
         Insensível recuou do espelho, deu-se as costas. Vestiu-se com a blusa da escola. Antes de pôr-se a caminho ainda quis sentar-se e desculpar-se afirmando que estava tão cansada para sair de casa que ela recusava-se. Mas também não tinha ânimo para ficar. Como sobreviveria se ficasse?
         A mãe cansada. Muito cansada mesmo, e de um cansaço muito atroz. E a avó que acompanharia o capítulo da telenovela. Ouviria as conversas na casa. Ouviria as vozes na rua. Tinha sempre os meninos que brincavam na rua também. Os vizinhos que se informavam nas calçadas. Depois o silêncio de quem se recolhe para a intimidade da casa. E finalmente um grande e súbito torpor se abateria sobre tudo isto que se acomodaria na sua concha até que viesse outra manhã com outro dia preso nas asas.
         Abandonou-se livre e resolvida a aquiescer com a sua limitada vida. Sobretudo ela compreendia a dor que se carpia enquanto vivia como uma mulherzinha fácil e líquida. Afirmou conscientemente que não se impediria a nada porque sempre havia o risco de cair do alto da escada e tropeçar no vazio que estava entre os espaços que ela percorria e os lugares onde ela ficara muitas vezes muda e parada.
         Havia outra pessoa que a olhava atenta e a espreita de dentro de um vasto espelho claro e liso. Mas ela tinha dúvidas, e até mesmo sobre Deus não sabia como afirmar peremptoriamente algo. Atravessou a sala e organizou os pensamentos antes que a avó com a sua ânsia de amar pudesse vê-la sair.
         Na rua teve o primeiro tremor da claridade, mas pôde recompor-se logo enquanto sentia que pisava nas pedras da rua e se dispunha a caminhar sem se opor a sua decisão irrevogável. Não olhou para trás, pois não tinha nenhuma intenção de ver como as sombras se inclinavam para verificar seus passos.
         O sol não existia mais no céu e iluminava apenas as nuvens muito altas que se acumulavam douradas no recanto do ocaso. Era um fim de tarde com um princípio irresoluta de noite.
         Sozinha ela atravessaria muitas estradas, muitos caminhos, percorreria inumeráveis países e caminharia sobre muitos mares encrespados. Mas isto era uma saída difícil. Contentar-se-ia em abrir uma porta e sentar-se calma e resoluta sobre uma cadeira a sua disposição.
         E havia sempre a suspeita do amor que a esperava chegar. Muitos ela poderia amar. Mas nenhum que ela necessitasse. Um dia que lhe perguntassem – mas quem, Lídia? Ela poderia olhar em volta e pensar antes de responder que não estava disposta a revelar-se como uma rosa num jardim.


         Era imprescindível calar-se, porque silenciosa e breve ela estaria trabalhando para preservar-se enquanto se elucidava por dentro. Terminou de percorrer o bairro e estava na hora de atravessar os trilhos do trem para chegar na rua da escola.
         Ouviu o silêncio da travessia e cruzou os trilhos caminhando por eles sem ocupar-se em pisar no cascalho. O capim nascia entre as gretas das pedras quebrando a verdade das palavras da parábola. Verdade é que ela não sabia mais se o semeador lançava as sementes na areia, na pedra e nos espinhos, ou na água salgada, no fogo e no caminho. Muito tempo se tinha passado desde que ela recebera aquele aprendizado para repeti-lo como uma fórmula. Agora o que tinha nas mãos nem eram lírios, nem rosas, nem sementes. O que trazia nas mãos eram pedras, longas pedras frias que ela poria na boca para pensar claro.
         Viu-o logo e ele era um menino bonito e a pretendia. Mas ela não lhe concederia nada. Desde quando se impõe que uma flor natural não morra depois de um dia de beleza?
         Olhou-o encostado ao muro da escola. Sim, ela teria que passar por ali até chegar ao portão e atravessar. Ele um moreninho alongado, era um homem que começava e tinha formas que cresciam. Ergueu os olhos para vê-la e para que ela o visse. Mas Lídia já tinha decidido tudo. E era sábia porque não se esforçaria mais para nenhuma escolha. Sem olhá-lo fixamente caminhou pela calçada e foi postar-se na outra ponta.
          Se afinal não viesse logo ela precisará entrar na escola e resistir aos professores e as aulas até verter-se de raiva e sucumbir numa letargia silente e vaga. Ouviu o sinal, convocava os alunos noturnos para o início da aula. Ela iria? Entraria? Viu que Pedro, (ele era Pedro) entrara com os outros meninos. Ficou assim mais tranquila e encostou-se ao muro, resolvida mesmo a dar-lhe uma chance.
         Mas ela, Lídia, tão cheia desse táctil orgulho feminino conceder-lhe-ia o sulco da espera? Desvencilhou-se do muro e caminhou para o portão arrastada pelo despeito. Se visse Pedro lá dentro lhe daria algum privilégio. Antes de chegar ao portão parou e olhou toda a extensão da rua procurando divisá-lo em alguma esquina ou vendo se o divisava dentro de algum carro que passava. Compreendeu que não apareceria daquela vez e um grosso sorvo de ar a sufocou. Entrou.
         Teve vontade de chorar, porque afinal nem essa desculpa para ser feliz poderia dar-se. Entrou para ser imolada sem nenhuma possibilidade de redenção ou de mão que a pudesse ajudar na via dolorosa.
         Só quando acabou a aula e pode vir para a rua sem ter que ficar olhando o jardim pela seteira, viu-o em pé do outro lado da rua encostado ao carro. O coração sem freios saltou dentro dela. Resolveu que o odiaria e procurou alguém que em quem pudesse apoiar-se e seguir para casa sem culpa de ter fugido e não tê-lo visto.
         Mas isso era impossível. Não pensaria mais em nada e quando chegasse a casa ela sabia que choraria louca de raiva e odiaria mais a si mesma do que a ele.
         Assim atravessou a rua para poder abordá-lo de perto:
         __Não sei por você veio.
         Ele, maduro, sorriu:
         __Vim por você.
         __Acredito.
         __Pois eu afirmo que vim e até juro.
         __Você jura.
         __Podemos sair daqui?
         __Você pode, eu volto pra casa.
         __Impossível que eu deixe.
         __Não sou sua mulher nem sua filha.
         __...
         __Não ficou de vir mais cedo?
         __Fiquei.
         __Ficou.
         __Podemos sair daqui?
         Ela o viu impacientar-se. Poderia impor-se como uma menina ou como uma mulher com muitas arestas diante dele, mas antes de rebelar-se completamente viu-o abrir a porta do carro e então ela entrou rápido. Arrancou com o automóvel para outra rua onde pudessem conversar sem implicações. O carro andava e ela silenciosa remexia no fundo da bolsa fingindo procurar algo que nunca pusera lá dentro. Precisava disfarçar-se, ainda que parcialmente estivesse convicta de que não poderia render-se como qualquer mulherzinha fácil. Mas como permanecer imóvel diante de tão vasto campo?
         Ele a olhou sem virar o rosto para ela. Compreendia assim que ela não resistiria a nada. Sucumbiria como uma flor colhida diante dele. Ungiria seus pés com perfume e os enxugaria com seus cabelos. Submetê-la-ia quando ela parasse de remexer na bolsa. Parou o carro propositalmente numa rua sem saída. Esperou que ela se desesperasse de procurar na bolsa.
         __Afinal encontrou?
         __O quê? Ela parou oblíqua, com a pergunta.
         __Você me esperou muito?
         __Esqueceu que eu tinha aula?
         __Ah! você tinha aula.
         __Por que não veio mais cedo?
         __Trabalho. Mulher. Casa.
         __E filhos naturalmente.
         __Que você quer? Sou casado, trabalho, tenho filhos, uma família constituída.
         __Ainda bem que você me disse isto agora. Então eu posso te largar, por que você é um homem casado afinal.
         __Filhinha olha, vamos por uma pedra. Deu um problemão lá em casa. Minha filha. Coisa de Filha que um pai tem que resolver. Um pai tem que falar com autoridade para uma filha não se perder de todo. Você sabe, nem sempre a mãe.
         __...
         __Agora eu vim. Lá mais calmo. A menina aprendeu uma lição. A mãe que deixa a borboleta solta. Depois o pai é quem. Você sabe. A menina está na fase. Você também, quase a mesma idade vocês duas. Mas é de você que eu gosto. Vim e fico com você. Lá em casa só tormento.
         __...
         __Você é minha?
         Ela que nunca deixara de ser dele olhou-o compreendendo-o. Que poderia mais querer? Aceitara desde o princípio sua condição de ser ela, a outra que ele amava. Nunca se enganara com ele, porque nunca estivera ignorantona de nada do que ele era. Casado, com mulher e filhos, e trabalhava tanto, tanto, muito, constrangendo-se diante do chefe, obrigando-se a ganhar pouco e trabalhando até tarde. Ela escolhera aquele amor estratificado, e com essa pedra levantaria sua casa, o que não sabia era em que terreno do vasto campo.
         Roberto a beijou e a trouxe para si. Ela veio e ele a acolheu. Era a sua mulherzinha de volta. Beijou-a mais. Beijou-a com todos os beijos da sua boca para tê-la súplice e integral. Era para ela que ele convergia quando acabava o expediente. Em casa quem era ele? O tutor da esposa e o pai dos seus filhos. Em casa, uma noite incerta para o amor. Com ela o amor modelando-se na argila avara. E ele que a conquistara quando estava quase convencido de que afinal precisava render-se a casa, à mulher e aos filhos e fazer-se leão de zoológico. Afinal era ainda o glorioso caçador de virgens. E virgem a tivera. Sim que ele segurara a virgindade dela nos seus dedos. Com quarenta e seis anos nem se imaginara mais uma fera pujante e viciosa. E pensava na promoção que era certa nas palavras do chefe. Então uma casinha pra ela? Uma casinha onde ele pudesse amá-la. Quem na oposição? Não a mãe dela, muito ocupada em por comida em casa para as outras filhas. Não o pai, muito longe e bêbado, separado da mãe. Uma casinha onde pudesse amá-la uma, duas vezes por semana. Quem na oposição? Não sua mulher. Porque nenhuma intenção de largá-la, nem podia com os filhos que tem com ela. Nenhuma possibilidade de escolher entre duas. Quem das duas sem ele? Abraçou-a e sentindo-a disposta e entregue, pôs as mãos sobre suas coxas, ela deixou. Ficaram calados. A respiração dela quente e úmida acordou-o e o pôs preparado para a noite, tumulto sentidos; ofegante ele impulsionou-se para trás, bebeu um grosso volume de ar e suspendeu-se sobre o banco do carro.
         __Vamos pra outro lugar?
         Era a fala dele e ela compreendeu sem susto a grande revelação do desejo dele preso nesta pergunta. Calou-se consentindo-se e ele deu a partida no carro que rodou em marcha à ré nas pedras da rua. O barulho do motor esquentou seus pensamentos. Saíram para uma avenida larga e despovoada. As rodas do carro impondo o movimento e ela resvalando entre as pedras do rochedo liso. Lá embaixo as águas paradas e o silêncio enovelando-se no fundo. Havia uma torpeza íngreme e indigesta dentro do amor. Mas ela permaneceria imperturbável mesmo diante da clarividência desta verdade. Não se imporia o mistério de pensar sobre isto. Viveria apenas como uma folha, na superfície dessas águas e impulsionada pelo vento.  E enquanto ele guiava o carro calado percorrendo a avenida ela olhava para fora observando os últimos cães notívagos, os postes da iluminação pública, os muros extensos que escondiam as casas felizes cobertos de trepadeiras. Lá no céu límpido e escuro viu uma estrela muito fria que brilhava transparente e muda.


         

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