domingo, 29 de março de 2020

CRÔNICA: PEBA-TATU



Peba-tatu


         Não que caçasse sempre e fizesse da caça um ofício comum e indivisível da sua vida. Comeria todos os dias com a caça e também comeria se não tivesse caça. Mas ele caçava tatus. Poderia caçar macacos, mas não comeria carne de macaco e não sabia dizer se sua mulher estava preparada para cozinhar macaco. Também não podia acreditar que seu estômago se acostumasse a carne desse bicho. Caçar raposa não lhe interessava porque absolutamente não caçava por esporte e não tinha nenhum interesse em ter uma cabeça de raposa ou muitas delas pregadas na parede. Veados até caçava, mas não sistematicamente nem todo tempo, caçava-os quando apareciam comendo sua roça na boca da mata.
         Então ele era só um caçador de tatus. Caçava-os não sempre, mas quando os caçava fazia com método e rito. Que caçar tatus não dispensa método vá logo compreendendo. E o rito? Ah esse era um meio de não perder a noite de caça. Como ele entrava na mata para caçar os tatus da mata e não era possível que os tatus viessem encontrá-lo no terreiro da casa precisava certificar-se de que fazia tudo que se orientava fazer-se antes de entrar na mata para tomar um dos seus frutos.
         Mas o método vinha antes. E consistia nisto – preparar os cães. Que os cães eram os companheiros de caça. Não que caçasse sempre sozinho, embora também pudesse fazê-lo. Mas os cães, esses precisavam haver. O cão era quem dava o alarma primeiro de que havia tatu na mata. Primeiro um cão via o tatu, depois o outro via também e o outro cão que vinha atrás também via e todos os cães viam o tatu juntos e quando o tatu fugia porque ele também via os cães, agitava-se toda a mata e o caçador alcançaria seu dia.
         Isso se ele tivesse bons cães. E era o cão que vinha com ele e entrava na mata antes dele, o cão que ia adiante e não seguia o caminho sempre. Não seguia rastro de dono. Trovoada, Catita e Sendero. Êh bons! Respeito mesmo. Chamava-os e eles acudiam logo. Dava-lhe de comer. Não é com fome que o cachorro caça, porque não caça para si, caça para o homem. Comia no mesmo instante que os cães. Confiança e cumplicidade. O cão e o homem, dois, mas nenhum sem o outro. Dentro da mata qualquer pau preto vira bicho.
         __Vocês meus olhos, meus ouvidos, adiante de mim.
         Trovoada olhava e parava de comer enquanto olhava o dono. Nunca que compreendesse o que. Depois continuava comendo e ficava feliz com o alimento servido.
         __Quarto minguante, mas tem lua.
         Catita nunca que ouvisse o que eram aquelas palavras e  comia tudo, voraz.
         __Ecô!
         Sendero prestou atenção reconhecendo a voz do patrão. Tinha acabado de comer e açulado correu até a beira da cerca. Foi seguido. Era o sinal. Dentro da mata seriam juntos.
         No embornal tudo – faca de ponta, binga, tabaqueiro, canivete. Facão para a precisão, enxadeco para a necessidade. O vento que sopra e a lua que vai nascer. No chão da mata pisar com cautela. No escuro sempre uma jararaca rasteja. As folhas caídas e uma caranguejeira não se distinguem.
         Dentro da mata nada exato. Quem caça só depois descobre o engano. Viram um tronco queimado, não se mexia, era um tronco queimado, mas não sabiam o que era. Não se mexia, mas parecia que estava esperando eles passarem, não tiveram coragem e voltaram pra casa. No outro dia passaram no lugar e com surpresa viram que era um toco queimado.
         O dia da caça. Parece que não vai ser, no começo, mas logo vira a roda. Os cães se perdem no mato. Lá no grotão distante, são eles acuando. Para lá ver o que é. Tamanduá! Cada unhada fatal. Corta feito faca. Cutia! Uma preazinha, quase que nada. Uma raposa esquecida. Desceu da mata, mas volta sem galinha e ainda um-mão-pelada, e tome surra nos cachorros. Se não acode, um estrago. Pior que isso só encontro com suçuarana.
         Nunca que isso aconteça. Suçuarana não pisa nas folhas. Se pisa é macio. Ninguém nem não escuta. Ardilosa, não tem sombra e quem ver ela? De repente os cães dão alarma, vai-se até lá e reza pra voltar vivo. Quem volta é quem conta a história.
         O peba-tatu esse é a caça. Vem cheirando a terra. Cata formiga, ovo de passarinho, cururu e até rato nas folhas. Na lua nova nem aparece. Sem lua no céu nem se prepare. Na lua cheia bem provável. Hoje quarto minguante com muita sorte. O rabo-mole aparecer é certo. Noite pra ele é dia. Vem comer terra. Come também formiga. É quando a caça não se perde.


         Nunca que tivesse visto, mas muito tempo atrás tinha tatu do tamanho de um boi. Uma coisa que tinha ouvido dizer. Nunca que acreditasse de verdade, mas não queria dizer que isso não acontecesse no começo do mundo. Ele sabia que no começo do mundo as coisas não tinham sido como ele conhecia que eram hoje. A mãe que ele tinha era quem contava como havia sido as coisas no começo do mundo.
         E a mãe era uma velha muito velha e não podia ficar inventando coisas que ela não tinha visto. Mas o que a mãe contava ela também tinha ouvido que era o pai lá dela quem contava que já tinha escutado também de outra pessoa que já tinha muita idade e ninguém podia ficar sempre inventando uma coisa que não podia ser completamente verdadeira para contar.
         No começo do mundo quem não sabia que as coisas tinham sido diferentes mesmo?
         Até esse precipício de morrer não existia. A mãe quem contava também. Como ela contava também que foi um tatu desses grandes que furou um buraco no céu e as pessoas desceram por ele pra terra, ela contava que foi São Pedro quem quis que as pessoas ficassem morrendo. Era assim que a mãe queria explicar. Que Jesus caminhava com São Pedro que sempre errava o que fazia e nunca que aprendia toda a lição que Jesus lhe ensinava. Pois foi um dia que Jesus e São Pedro chegaram num açude e Jesus mostrou pra São Pedro uma pedra e uma laranja seca e pediu pra São Pedro escolher qual ele queria que Jesus jogasse na água, mas Jesus explicou pra São Pedro que ele escolhesse bem, pois se ele escolhesse a que afundasse na água as pessoas teriam que morrer e não voltar nunca e se ele escolhesse a que boiasse as pessoas até que morreriam, mas voltariam sem dúvida. E São Pedro o que ele fez? Escolheu a pedra que Jesus jogou e afundou no açude. Assim as pessoas ficaram morrendo para sempre. Quando São Pedro se arrependeu não podia mais, foi quando sua sogra morreu e não voltou.
         Era uma coisa que ela contava do começo do mundo, e nunca que ele não acreditasse nela, mãe nunca conta coisa que não seja correta porque tinha a experiência de ter andado pelo mundo aprendendo.
         Então tudo estava junto no mesmo mundo. E ele que não seria o primeiro a pensar que não fosse assim que as coisas acontecessem. Dentro da mata tudo impreciso. Vem uma nuvem e cobre a lua e aí a noite se torna só trevas muito escuras. Vem um vento que não ventava antes e apaga o facho e o fogo esfria e não acende mais. A mãe-da-lua chama e a gente não atende e vem a chuva e a lama e nunca mais chega  em casa. Se tinha o mundo ele estava dentro dele e só sabia o que tinha aprendido com quem lhe ensinara.
         Tomou então do fumo, picou-o e macerou-o na palma das mãos. Fez um cigarro para si, tomou o resto e desceu para o lado da cerca. Fez um chumaço e o dispôs na cabeça da estaca mais baixa. Voltou para o terreiro da casa, foi ai que ouviu. Estrídulo assobio percorrendo a noite estável. Compreendeu o que era. Caboclinha. Os cães também ouviram. O cheiro da mata queimando em suas narinas. Caboclinha.
         __Ela abriu o mato. Acolheu meu fumo, te obedeço.




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