quarta-feira, 8 de abril de 2020

CRÔNICA - FLORES PEDRA SOLIDÃO



Flores pedra solidão

         Sozinha em casa com o pai e a mãe. Os dois velhos. Um dia fica um entrevado e ela quem trocará fralda geriátrica. Duas irmãs casadas. Uma infeliz, o marido com muitas putas, mas enfim casada. Descansada dessa vida. O irmão com família. Mulher e dois filhos. Nem se interessará por nada. Então ela. Quem pelos pais na sua velhice? Ela. Ela. Ela. Para sempre interditada ao amor.
         A tarde depois do almoço é que sofre mais. O sol ilumina e aquece a tarde branca. Quem, ela? Nem poderia porque ainda é donzela. O calor queima nas suas coxas. Enxuga o rosto lívido de suor. E ela era de repente uma semeadora lançando sementes entre espinhos e enxugando o suor olhando o horizonte viril. Um dia não seria mais ela e se recusaria a conformar-se na exígua condição de moça de família.
         Você é que não compreende nada. A mãe tinha acordado da sesta e sentava-se na máquina de costura. Espalmou a mão direita sobre o seio por dentro do vestido. Era o seio esquerdo. Durinho e resistente. Bem se ver que nunca amara ninguém. Agora que ela era uma mulher sentada sobre uma pedra olhando o ar azul não tinha nenhum interesse na luz ardente que queimava as flores nos vasos.
         Deitou-se na cama. Olhava dentro da claridade imóvel e transparente do quarto. Ouviu a mãe rodando na máquina de costura. Mais uma obra de suas enrugadas mãos de velha. Apertou o bico do seio com as unhas do polegar e do índice. Doces lírios odoríferos esmagados entre os dedos. Ela que poderia amamentar um filho que fosse seu. Se pudesse. Ah ela era como uma raiz fora da terra. Mas tinha necessidade de seiva. Dessa nutrição sumarenta que é o amor.
         Veio um raio de luz que fugiu do sol e pousou no lençol da cama. Estendeu a mão esquerda para afagá-lo. Viu-o subir nos seus dedos, dócil passarinho caído do ninho. Lá fora a tarde ardia. A mãe cortava pano. Bric. Bric. Bric. Bric. Briiiiiiiiiiiiiiiiiiic. Quem era que falava assim? A tesoura que fora recentemente amolada. Espere por mim. O raio de luz tinha fugido outra vez para o lençol da cama. Desinteressou-se dele como desinteressava das flores colhidas no caminho. Fechou os olhos e decidiu-se morrer afogada permanecendo sem respirar o máximo que pudesse. Coágulos vermelhos emergiram do seu pensamento ou da escuridão das trevas a que ela se impôs com os olhos fechados com muita força.
         A mãe era uma velha sentada costurando numa máquina singer preta. Ela era uma louca presa no espaço mínimo de um quarto vazio e no meio de uma tarde improvável. Abriu os olhos e voltou a respirar. As paredes impropriamente nuas a encerravam nas suas arestas. Cada tijolo uma pedra da sua prisão. E as paredes eram feitas de muitos tijolos que compunham uma tessitura que se podia finalmente chamar de casa.
         Ouviu que era sua voz que emergia de dentro dela e teve medo por um instante. Pronunciou outra palavra solta, “peixe” para constatar que reconhecia sua própria voz e saber se poderia identificar igualmente seu próprio silêncio. A palavra ficou reverberando dentro do quarto, depois subiu nas paredes, caiu no chão e fugiu pela janela. Mas só então ela compreendeu que a janela do seu quarto estava aberta para fora da tarde.
         Sentou-se na cama. Desfez-se do seio e olhou pra fora erguendo um pouco a cabeça por sobre a janela aberta. Lá fora o dia voava e as galinhas ciscavam no molhado do terreiro. Também haviam suas flores imersas na claridade da luz imutável. Ela era uma mulher que plantava flores em volta da casa durante a manhã. Antes tinha sido uma menina que plantava muitas flores e finalmente quando cresceu continuou semeando-as em vasos e covas abertas na terra escura e boa do terreiro da casa.
         Quem chegasse à frente da casa e via suas flores em vasos, suas flores crescendo a partir do chão pensaria que Aninha era uma mulher que se conformara com a vida que levava ao lado dos pais esperando-os envelhecer para conservar-se para sempre como uma filha devotada e amorosa ao lado dos velhos nos seus últimos dias. Mas efetivamente isto não era toda a verdade. Quantas tinham sido como ela, meninas gostando de plantar galhos de roseira e quedar-se numa límpida expectativa de vê-lo ganhar vida e florescer como haste? E um dia cresceram e se fizeram mulheres, agora não estavam felizinhas com seus maridinhos que trabalhavam todo o dia como servos da gleba e com seus filhinhos que exigiam o amor, o alimento e algum cuidado atento?
         Não a privassem dessa felicidade táctil por que ela queria ainda que todas as flores dos vasos e do seu jardinzinho agreste morressem ao abandono. A mãe e o pai continuariam envelhecendo sem ela e sempre haveria um dia, provavelmente domingo, em que ela os visitaria e constataria neles o irremediável avanço da velhice constante.
         Despertou dessas ideias quando ouviu que a mãe fechava a máquina de costura e depois caminhava pela casa. Vai providenciar o jantar. Daqui a pouco é o papai que entrará pela porta e a mãe precisará adivinhar como servi-lo muito solícita. Pôs-se de pé no meio do quarto impondo-se a ideia de ajudar a mãe a adiantar a janta.
         Não o fez e apenas postou-se na janela olhando para fora. As galinhas voltavam de dentro do mato. Tinham acabado seu repasto de vermes. Era hora de recolher-se para as galinhas. De repente pensou que seus sentidos eram perturbados pelo cheiro transparente de uma rosa perto. Olhou em volta procurando divisar a presença daquele odor táctil e rubro.
         Foi com surpresa que o identificou pendente de um galho de sua roseira que ela soubera já vinha florescendo há alguns dias. Eram rosas cálidas e azuis. Olhou fixamente na direção das rosas e aspirou com energia os perfumes sombrios que vinham aspergidos no ar. Então teve uma sensação gozosa e quente. Deteve-se um instante segurando-se no batente da janela antes de prosseguir sorrindo-se para esse surpreendente prazer que a acometia sem insistência. Encheu os pulmões de ar até tranquilizar-se como se descansasse numa sombra úmida.
         Quando voltou a olhar para dentro do mundo viu dois grandes olhos a espreita do outro lado da cerca. Eram dois fogos que a iluminavam e a viam. Eram dois olhos imperturbáveis que a contemplavam de dentro da última claridade do dia. Pensou em olhá-los detidamente para compreendê-los, mas teve medo e retirando-se da janela, fechou-se ficando escondida dentro do quarto.
          Olhou as mãos, estavam sozinhas. Pensou que poderia abrir outra vez a janela e olhar sem medo, mas não o fez e retirou-se do quarto caminhando até a cozinha onde encontrou a mãe com a janta pronta. Sem nenhuma gravidade postou-se a porta da cozinha para olhar pra onde divisara que a olhavam antes.
         Viu o que era. O vizinho da propriedade do pai que desbastava o mato do bananal. Miguel, casado e com filhos. Isso era uma coisa invariável em volta dela. Em pouco chegou o pai e ela retirou-se pra dentro da casa. Impossível prosseguir. E o pai era um homem cansado que envelhecia depressa. Campeava e trabalhava no mato da fazenda. Era o pai, esse lugar de origem. Viu-o sentar-se e descalçar-se. Viu-o despir a blusa e descansá-la sobre o espaldar da cadeira. Grossos pelos brancos pontilhando seu torso nu. A pele enrugada do ventre do pai, sapo de papo pro ar. E isto era de alguma forma insípido. O pai resfolegava. A mãe trouxe sabonete, tolha, roupa limpa e o pai tomando tudo saiu para o banho. Mas a camisa que o pai despira, molhada e suada exalava vapores nítidos pela sala. Quis retirar-se dali, nauseada e imprópria, mas nem chegou a fazer o esforço necessário que a retirasse da sala. Fez-se quieta e aspirou com força o odor quente e transbordante do suor do pai até lhe arderem os pulmões. Um prato quebrando-se na cozinha veio acordá-la e ela teve medo de ter sido compreendida. Olhou em volta, mas estava sozinha com as sombras das trevas que saiam de dentro da noite dominando os últimos esforços do dia. Ergueu-se calma e lúcida. Foi ajudar a mãe na cozinha naquilo em que pudesse ser mais dócil e solícita.




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