quinta-feira, 30 de abril de 2020

CRÔNICA -MARIA DOS MENINOS



Maria dos meninos


         __Sou o rei da brincadeira, eu que mando, eu que decido, então vai ser assim, sim.
         Os outros o olharam com rancor e expectativa. Ninguém tinha inventado a brincadeira, de repente eles tinham começado a brincar e tinham gostado e então mesmo ninguém se lembrava de quem é que tinha apontado e dito – vamos brincar disto aqui, porque é melhor brincar assim. Mas João era quem se impunha. E era impondo-se que fazia-se o rei da brincadeira e os outros que o seguissem como súditos muito leais e reconhecidos.
         Então quando vieram os dissidentes João logo providenciou que seus cortesãos os pusesse na outra margem. Como a outra margem era o exílio e no exílio não havia a mesma diversão que crescia nos pátios e jardins do rei da brincadeira os mesmos dissidentes foram desertando e voltando a malta dos meninos que eram toda a corte de João.
         Os meninos reconheceram o direito dos desertores de voltar e submeter-se a João e houve paz sob a fronde do castanheiro onde reinava João. Era um jogo de bolinhas de gude de três buracos e perseguição ao adversário. Os contendores apostavam fubecas e cascudos. A perda das bilas era acrescida pela dor da injustiça carpida por alguns ao perceberem que os cocres que João lhes aplicava pareciam-lhes mais veementes numas cabeças do que em outras. João que se impusera respectivamente como rei e carrasco da brincadeira não acatava habeas corpus nem liminares.
         Revoltas, dissidências, exílios, deserções e reincorporações eram toda a dinâmica da política daquele reino de João. Sem ser o mais velho, João mandava. Era ladino e trazia as ideias sempre em ordem. Submetia os meninos da rua e reinava despoticamente. Preto, forte e troante. Musculoso. Comandava. Marechal. Mas João pensou que podia estar cansado de brincar e ainda não tinha mesmo o que fazer depois que se cansasse de brincar, então adiou o momento seguinte da sua decisão. Parou e ficou olhando a bilosca de André que oscilava na entrada do búrias. Pensou que ela ia cair, mas não caiu, havia dessas sortes. Pôs as mãos no bolso do calção e acariciou a bolinha mais azul que ele tinha ganhado. Pensou também que se André perdesse aquela que estava na berlinda ele lhe daria esta.
         Mas por que então André? Não que ele não soubesse, principalmente porque ele tinha uma vontade de cuidar dele. Tinha pai e tinha mãe, mas João gostava dele e quando gostava impossível. Sentou-se na pedra para esperar o que pudesse ainda acontecer. João se aborrecia e não tinha nenhuma vontade de brincar mais. Tomou um pedaço de pau nas mãos e fustigou o caminho das formigas que passavam providas e constantes.
         Viu-as atrapalharem-se e perder todo o sentido. Se não têm caminho para seguir e não carregam folhas para o formigueiro não são formigas e estão sujeitas a todo tipo de acidentes.
         Pisou muitas formigas. E elas morriam surpresas de não terem adivinhado que morreriam sob seus pés. Pisou-as mais, pisou muitas, muitas, muitas e quando se cansou de ser tão superior as formigas decidiu logo que estava cansado de brincar o propôs aos meninos que o seguissem, pois não deviam se cansar tanto obrigando-se a brincar duma só coisa.
         E como seguiram João os meninos viram ele entrar no quintal da casa. Entraram com ele e sentaram com ele em baixo da mangueira, sentido o odor doce e fresco do molhado da terra. Havia também bananeiras e entre as bananeiras, galinhas e as galinhas revolviam a terra com os pés e a terra revirada pelos pés das galinhas ficava mais cheirosa e morna. Os meninos não entendiam isto das galinhas revolverem a terra com os pés, o que havia eram aqueles que pensavam que as galinhas procuravam pedras lisinhas para comer.
         Quem não pensava em nada apenas recolhera-se sob a sombra da mangueira. E como era de tarde e ninguém se importava com meninos no fundo do quintal então eles eram livres como as galinhas. Alguém pensou que eles poderiam caçar lagartixas que a esta hora reverberavam na luz do sol pregadas as paredes das casas. Mas ninguém quis pensar que era uma boa ideia porque João estava riscando um desenho na terra. Aproximaram e viram.
         __Quem sabe o que é?
         __...
         __Tudo cabaço, nunca viram um não.
         __Parece uma aranha de patas abertas né?
         __Com um olho no meio?
         __Não é uma aranha João?
         __...
         __Não é não Carlinhos.
         __Uma galinha deitada no ninho.
         __Eu já vi em revistinha suja.
         __Tudo lorota, mostro pra vocês montes de bronha.
         __Que é João?
         __É a bucetinha de Maria Preta.


         Lá longe na parede do muro caiado passou uma lagartixa e Daniel pensou que seria uma glória de captura, mas ninguém se interessava pelas lagartixas, atentos no novo trabalho de João. O que João fazia com o canivetinho era um orifício côncavo no caule da bananeira. Trabalho meticuloso. Os outros meninos esperavam não adivinhando nada ou adivinhando alguma coisa. Alagou-o, limpou-o, verificou. Voltou a alargá-lo, limpá-lo. Aprofundou-o. Limpou-o. Imaginou então o conforto da circunferência. Soprou dentro. Era o que queria. Sua dama. Então os meninos viram que João tinha criado a mulher. E João riou e coabitou com ela. Dentro dela João sentiu o molhado da umidade viscosa e viu que isto era confortável e bom. Apoiou-se nas pernas e impôs-lhe sua força sobre-humana.
         __Vou pôr tudinho.
         Abriu as pernas e segurou-se no caule para submetê-la rendida e completa, toda a sua energia investida sobre o corpo da dama. Quem entendeu logo, tomou a sua. Outros que foram entendendo depois imitaram o rei e os outros que o seguiram. E quando todo mundo tinha compreendido as galinhas fugiram assustadas e as castíssimas bananeiras e os meninos perderam-se nas suas fornicações gozosas. Agarrados, extáticos, gemendo, os meninos se emulavam para ver quem conseguia mais vezes obter o prazer.
          E assim foi a manhã e a tarde daquele dia.
         E o vento passou e outras manhãs começaram dentro dos quintais. E as galinhas que foi quem nasceu sem memória esqueceram os meninos e suas fornicações. Mas os meninos que eram livres como o vento voltaram sempre a coabitar com as bananeiras, mas também cansaram-se desse amor. E quando João compreendeu que poderia abrir-se num outro voo, convocou-os. E ninguém se opôs porque era João quem tinha inventado a brincadeira que começava como quem escava a terra e encontra um seixo e um caco de vidro juntos e depois se põe o seixo na pele e é frio e redondo e depois se corta a pele com o caco de vidro e é doce e quente quando derrama todo o líquido.
         __Ninguém conta nada.
         __...
         __Se contar nunca mais.
         Quando chegaram do outro lado estavam no fundo do quintal de Maria Preta. João entrou antes. Os outros não entraram logo. Pedro desfez a chaminé de um formigueiro com a ponta dos pés e pensou que quando voltasse no outro dia encontraria a construção outra vez terminada. Olhou as mãos, contou que tinha cinco dedos e isto era bom porque ele precisava somente destes. Onde João? Daniel pensou que se não seguisse João ainda teria uma lagartixa capturada e a guardaria numa caixa para ver como as lagartixas brilhavam no escuro. Jonas olhou entre as varas da cerca. João lá dentro do quintal. Maria com ele. Colheu um melão-de-são-caetano e       abriu-o. Esmigalhou as sementes na palma da mão. Era viscoso e frio. João não se lembrava mais deles. Seguiram-no. Era  efetivamente o quintal de Maria.
         André não viu João. Viu que Maria era uma lavadeira e que lavava roupa numa tábua. Não viu Maria completa. Fixou-se nas coxas. Os meninos pararam e olharam. Alguém pensou que não conhecia aquela brincadeira. A roupa branca parada no sol. O vento passou, mas Carlos pensou que não era o vento, mas o voo de uma garça que ia para o lado do charco.
         __Olhem só, franguinhos. Mãezinha do céu! Maria falava nenhum menino mesmo ouvia.
         __Mundo perdido, até os anjinhos do céu no inferno. Riu-se Maria e recolheu a saia para cobrir as coxas.
         __Nunca viram Mirinha, querem ver como é.
         __E você quer que eu mostre pra eles Joãozinho?
         __Vamos pagar olha.
         Duas notas na mão. João olhou pra dentro de casa. Quem cuida da menina? Que menina? Maria com uma filhinha. Uma filhinha que ninguém tinha visto dormindo dentro da cesta. Era de Maria? Era a filhinha de Maria senão por que tinha saído da zona? Agora lavadeira de roupa. O pai nunca que assumisse, não tinha filho com puta. Casado, tinha família e tudo. Maria que fizesse o aborto. Sem aborto, Maria precisou renunciar a vida. Mais descansada? Nunca que isso fosse possível. A menina até doentinha. Mais de um ano sofrendo. Agora melhorzinha. Maria lavava roupa lá de longe. Lá longe onde ninguém sabia da sua vida. Ia sofrendo. Mas ela mesma acreditava que não tinha como pensar que um dia ela lançaria as sementes na terra e sendo a terra boa e acolhedora veria os grãos serem muitos grãos dentro de um fruto maduro que ela colheria feliz e realizada. Não havia mesmo nenhum privilégio para ela nessa messe. Nem lhe dariam ainda os últimos grãos que se misturassem com as pedras. Assim ela se acomodara a estar pousada sobre a terra sendo apenas uma mulher que olhava o dia como quem contempla o vento nas nuvens mais altas.
         __Impossível com todos Joãozinho. Vem primeiro se você quer. Depois você sai e entra outro. Não vai todo mundo não. Os anjinhos ficam aí imaginando. Com tudinho não posso. Eu mostro e eles podem ver só isso que dar.
         __Trouxe todo mundo e eles me seguiram.
         __Fico esfolada. Não é como antes. Trabalho muito agora anjos.
         __Eu vou eles ficam. Cuidando da menina.
         __Já com dois. Fiz, mais o amigo não era pra mim era pra ele. Foi antes. Não posso muito, estou velha. Olhem as varizes.
         O que os meninos viram foi o deslumbre. Flor aberta em gumes e seiva. Reconheciam o que era porque o fruto da grande árvore que cresce no meio do jardim é sempre reconhecível. Então Pedro pensou que já tinha visto um fruto igual, mas que quando tinha visto não exigia dedos para afastar a erva e tocar a cor. Daniel concluiu que era uma grande formiga exposta ao sol, mas estava parada no corpo de Maria e não teve medo. João guardou as notas no bolso. André sentiu o sol arder na sua pele escura e então compreendeu que também tinha frio. E o frio vinha de dentro e o separava dos outros meninos que olhavam a exibição da flor. João pensou que era muito tarde e que a mãe poderia chamá-lo e aí tudo estaria perdido. Carlos compreendeu que suas mãos estavam abandonadas e que tinha se esquecido de apanhar algumas pedras pelo caminho. João bateu com o pé no chão e marcou o ritmo da sua impaciência. Maria abria as coxas e os meninos viam que o fruto era bivalve e côncavo, que o fruto era de carne e o sol não dourava sua casca. João pensou que se tivesse vindo sozinho. Daniel sentiu a saliva áspera acumulando-se na boca e Jonas picou os olhos, a luz ácida do sol perfurando sua retina. Maria baixou a saia e a claridade velou a flor. Quando os meninos voltaram, viram foi João entrando com Maria na casa. Nunca o perdão para João.
         A casa era escura, mas a luz entrava pelas frestas do teto. João ficou nu e Maria viu que era uma penugem de anjo e arame. Hoje com menino, na zona até com velhinho acabadinho. A nota vibrando no côncavo da mão. Agradecida. Pagavam melhor os velhos. Ruim mesmo com caminhoneiro e descarregador. Doía muito quando ela ainda se lembrava da casa e pensava no pai. Depois ela esqueceu tudo e nunca mais doeu. Foi trabalhando. Veio o doutor e ela quis ir até o fim com ele. Aí o doutor era um homem sério, casado e com filhos e ela não teve coragem pro aborto. Bebeu conhaque com o dinheiro e disse a ele que não mataria um filho. Lavadeira de roupa e nunca mais o doutor. Desertou da zona. Sua vida ninguém com isso. Deitou na cama e Joãozinho por cima. Segunda vez do menino ali. Na primeira vez não foi. Sentou-o na borda da cama e o fez espumar. Agora o homenzinho experiente. Deixou-o ir. Mas como ele não acertava logo ajudou-o com a mão –Ponha  aqui. Sentiu-o dentro. Pronto para começar. Prestava essa caridade. Eles eram todos meninos. Ela limpinha. Nunca tivera uma doença da zona. Se guardava. Nenhum anjo com pingadeira. João se atrapalhava – Deixa dentro. De olhos abertos Maria pensava na claridade rasa do quarto, João acomodava-se dentro dela. Pela primeira vez sentiu-o. Lá estava ele. Lança trêmula, mas aguda. Conchegou-a aceitando-a completa. Ponha mais. Então João conheceu que tinha aprendido como era que se fazia e fechou os olhos para ver se organizava tudo junto. O corpo de Maria era quente e lavado. Tinha cheiro de sabão e da água da torneira. João compreendeu que poderia cair mais longe dentro daquela rosa, mas veio o enjoo e o espasmo e ele não estava mais na terra. Tu já? Olhinho revirado de João, pingo de suor na fronte do negrinho.
          __Hoje tu foi um homem Joãozinho.
         __...
         __Chama teu amiguinho, o mais anjinho, quero com ele também.
         João saiu André entrou – Vem que eu te ensino anjo. Dois olhos de André cravados nos peitos de Maria. A fome voraz. Ele se disse que já tivera nas mãos gomos tão grossos como aqueles e que da primeira vez precisara sugá-los para preencher a fome por dentro – Quantos anos anjinho? Penso que nem consegue ainda nada. Melhor mesmo, fico descansando. Deita na caminha, te dou na boquinha. Hoje só pra começar. Depois você vem com Joãozinho. Deita, vou ser tua mãezinha – 13, 14? Bem que vi. Lá fora ainda muitos. Nem posso com todos. Vão me acabar. Uns bem hominhos já. Vou com você – Só ficar deitado? Recebi dinheiro para ouvir um cliente falar mal da mulher e da filha, mas que gostava do chefe como gostava do pai – Você diferente de João. Cheiro de menino ainda. João com fartum de homem. 16, 17? João perde vocês todos. Cuidado no fogo do inferno. Não diga nada ao padre, se ele sabe, pode querer. Segredinho dos hominhos e de Maria Velha. Depois que sair diga que não recebo mais. Terminar a roupa. Mais um entra e é o último. Moreninho você anjo. Tem aquele branco loiro. Deixa que ele. Tem pintinhas no corpo. Até a penugem é loira. Acabou? Volte sem o João. Amanhã não. Entrego a roupa. Não assim. Ponha toda anjo – você   Jonas? O vesgo que veio... ah! vocês 15? Largaram tudo. Gaiolas com passarinhos, fruta madura no pé, caco de vidro na mão, bolinha de gude. Faço com você depois não tem mais. Vinde a mim os meninos, eu sou Maria.



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