sexta-feira, 24 de abril de 2020

CRÔNICA - ABISMO DE ROSAS



Abismo de rosas


         A mãe. A mãe. A mãe. Sim, ela era a mãe. A mãe que tinha direitos sobre o filho. E como mãe não se podia impedir afinal. Mas quem a obrigaria mesmo? Não havia nem como constrangê-la porque assumira todos os trabalhos e finalmente podia constatar sem surpresa que triunfara. E que a glória enfim se estendia inumerável diante de seus olhos. Ela era uma heroína legendária.
         E ela tinha as mãos limpas e poderia ainda anunciar que fizera tudo imaculadamente. Fora tão meticulosa que não duvidava ter sido mesmo trabalho de suas mãos toda aquela propícia messe. Mas não estava nem um pouco cansada. E se agora sentara-se numa cadeira foi apenas porque precisava olhar o vale e perguntar-se – Para onde agora?
         Olhou-se no espelho, conhecia aquele rosto, aquela face, aquela montanha. Viu a fotografia sobre a penteadeira, ah! era ele. Mas os olhos que ele trazia eram tão límpidos. Ela observou-o fixamente. Os cabelos crescidos, os lábios oblongos, as mãos paradas.
         Assim ela podia constatar que um dia ele fora aquele menino. E que ele tinha sido mesmo um menino ruivo e infantil e isto a fizera consciente de seu trabalho e do seu dever. Estendeu a mão para tocar o retrato, mas recuou logo, pois ela sabia que as sombras não se dispersariam mesmo que ela as afastasse com os dedos.
         Voltou à posição original na cadeira e voltou a olhar-se no espelho. Não podia duvidar-se nunca. Estava perigosa e compreendia que mesmo se não fosse uma enorme aranha com sua teia tecida e estendida, ainda assim estaria apta a pegar muitas moscas.
         Esqueceu as mãos sobre o colo e só com o pensamento acariciou o rosto frio e nodoso. Sem nenhuma surpresa encontrou uma ruga transversal erguendo-se sobre sua tez. Olhou-se mais profundamente e viu-se murchando num jardim de muitas flores esparsas.
         Mas como era a mãe não temia nenhuma daquelas flores. O vento as tiraria do halo e ela ficaria feliz de vê-las mortas caídas no chão. E mesmo se não fosse uma aranha seus palpos ainda o atrairiam para seu íntimo. Daniel olharia para ela e a chamaria uma vez de mãe, mas quando a fixasse abstrato e irrestrito ele mesmo perguntaria – “Que tenho eu contigo mulher?” Então ela o olharia sem mácula e compreenderia sua frase como uma travessia.
         O menino que ele fora não tinha permanecido. E agora mesmo que não fosse uma aranha recolheria seus ovos e os guardaria num saco de teia. Daniel estava um homem. No entanto não era exatamente este o nível da sua compreensão. O que ela compreendia era que um homem vinha substituindo o menino e Daniel era esse homem.
         E o espelho ardia na sua transparência lisa, mas ela estava cálida como uma pedra no meio do campo. Depois viria o sol que aqueceria a rocha e a chuva que lavaria a rocha e o vento que despentearia a rocha. Mas nenhuma dessas intempéries a distrairia da sua imperturbabilidade quieta. Foi então que lembrou-se de friccionar uma unha na outra.
         Ah! afinal tinha garras de fêmea. Era uma grande ave de rapina caçando do alto das nuvens de onde poderia vislumbrar todos os répteis que rastejam indefesos na terra. E ela era a única fera que acolheria Daniel ao seio. Ofereceria seus peitos para que o rapaz os sugasse com avidez e impudicícia. Ah! mas ela não se importava com isto. Abateria com suas setas todas as aves que sobrevoasse o seu jardim.
         Apertou as unhas no pulso esquerdo. Desta carne manará leite e mel que te alimentará no deserto enquanto o habitares quarenta dias e quarenta noites. E ela era ainda o grande fruto suspenso preso entre as folhagens. Mas o sol vinha e atravessava a sombra e via-se a aparência loura desse fruto maduro que Daniel colheria com as mãos trêmulas.
         Nunca que ela se desvencilharia desse amor. Ela seria uma mulher de cem braços para colher essa flor que afinal tinha medrado em vasos que ela mesma modelara com suas mãos. Se não quisesse esta flor para si não a teria cultivado tão cuidadosamente. Se tivesse cultivado uma flor para o vento não teria tido tanta atenção quando o sol a ameaçara crestar e quando a chuva a queria levar. Agora que ela abria-se e sua corola oferecia o mais doce mel das estrelas ela teria também o privilégio de prová-lo puro dentro de fulgurante taça.
         Ela testemunhara como abrira-se aquela flor. Num dia em que a viu entre nuvens escuras de penugens plúmbeas. Ninho de pombinha agreste. Basta folhagem ruiva revelando fruto púbere. Agora que o tempo era propício vinham muitas mãos que se estendiam para a colheita? Nunca que ela permitisse. Mesmo que não fosse uma aranha suas pinças o imobilizariam inevitavelmente retido nela.


         Afrouxou o pulso e sem olhar o estrago que fizera na própria carne sentiu que ela pulsava ardente. Quem era que ousaria? Procurou reconfortar-se dentro de si mesmo olhando em volta e tateando um ponto onde pudesse amparar-se para não sentir-se sozinha. Mas a verdade é que ela poderia estar sozinha e abandonada naquele exato momento. Seria verdade?
         Pensou que Daniel era seu filho e a acolheria. Sim, primeiro a acolheria como a mãe. E quando isto acontecesse o primeiro passo já estaria dado e como todo primeiro passo significa sempre estar com os dois pés dentro de algum espaço, ela concluía muito tranquilamente que estava bem à frente daquelas que haviam começado depois dela.
         Sobretudo não enganava-se com Daniel, pois ele era seu filho e ela o conhecera desde sempre. Seus dedos tinham formado a carne de Daniel e suas mãos haviam modelado na argila da sua pele o que ele em verdade viera a fazer-se. Também fora ela que, enquanto sendo a mãe sazonara o seu impróprio fruto. Não duvidava que ela tivesse privilégios. Quem negaria isso? Nunca ele que era seu filho.
         Assumiu nova posição diante do espelho. Precisava atribuir-se uma atitude muito digna. No entanto ela não sorriu. Mexeu uma das mãos entendendo-a para diante. Observou que poderia abrir uma gaveta da penteadeira e tomar o carretel de linha para amarrar uma ponta na entrada e continuar desenrolando o resto à medida que caminhasse.
         Riu-se dessa conjectura tão transparente, mas decidiu prosseguir com o intuito. Quando encontrasse o bêbedo do marido dentro daquele vórtice ela estaria segura e voltaria pelo mesmo caminho. Agora ele só é feliz bebendo tanto, tanto, tanto que não se tem mais em pé sem a necessidade de uma coluna de apoio. Daniel olhava o pai e ela não se inquietava com a percepção clara de que ele o fazia com um sarcasmo escamando-se em gumes prateados. Deixara de respeitar o pai para convencer-se apenas de que afinal poderia restringir-se apenas a amá-lo sem mágoas, pois assim não precisaria pensar muito nele e conformar-se de que pensar era não ter o pai no pensamento.
         Ela não se inquietava com isto. A realidade tragava todos os entes para dentro dessa vaga voraz. A casa dormia em paz e ela não podia deixar de estar ainda que impudicamente, satisfeita com isto. Agora cada um com a sua vida. Dentro do labirinto o pai. Ela conhecia o mistério e tinha a chave e assim estava fora das paredes contemplado a luz que brilhava perpendicularmente do alto.
         Então Daniel vinha. Muito ruivo e improcedente, mas estendia-se como um grande navio, nu e coroado de ouriços nas pedras lavadas pela salsugem marinha. Ela o via, mas como ele vinha coberto de intempéries e sargaços, olhava-o e sorria-lhe compreendendo a desventura que sobreviera-lhe naqueles jardins de delícias. Afinal ele sempre estaria de volta àquele mesmo seguro porto.
         Assumiu posição indefectível na cadeira. Era a mãe. Assumira esse atributo. E tinha minerado com as próprias mãos esse fruto que ora revelava-se ao mundo perene e púbere. E ela que agora era um ser álgido e saberia enfrentar com lucidez e clarividência inaudita o revelador eclipse que encobriria seu luminoso astro. Mas quando enfim ela pudesse vislumbrar sua luz irradiando-se em outras estrelas poderia assumir duas atitudes prováveis. Negar-lhes o direito de receber aqueles raios de luz fulgente, soprar-lhes a chama volúvel e fazê-las perder-se para sempre no meio das trevas.
         Assim, mesmo que ela não fosse uma aranha teceria uma vastíssima teia, ficaria no centro muito atenta esperando que algum réptil, alguma folha, um orvalho, um raio caído do sol e mesmo o vento que passa despertasse seus sentidos e a fizesse caminhar até lá, onde ocorrera o estremecimento, e envolver o fenômeno com sua dúctil habilidade de tecedeira voraz.




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