Abismo de rosas
A mãe. A mãe. A mãe. Sim, ela
era a mãe. A mãe que tinha direitos sobre o filho. E como mãe não se podia
impedir afinal. Mas quem a obrigaria mesmo? Não havia nem como constrangê-la
porque assumira todos os trabalhos e finalmente podia constatar sem surpresa
que triunfara. E que a glória enfim se estendia inumerável diante de seus
olhos. Ela era uma heroína legendária.
E ela tinha as mãos limpas e poderia
ainda anunciar que fizera tudo imaculadamente. Fora tão meticulosa que não duvidava
ter sido mesmo trabalho de suas mãos toda aquela propícia messe. Mas não estava
nem um pouco cansada. E se agora sentara-se numa cadeira foi apenas porque
precisava olhar o vale e perguntar-se – Para onde agora?
Olhou-se no espelho, conhecia aquele
rosto, aquela face, aquela montanha. Viu a fotografia sobre a penteadeira, ah!
era ele. Mas os olhos que ele trazia eram tão límpidos. Ela observou-o
fixamente. Os cabelos crescidos, os lábios oblongos, as mãos paradas.
Assim ela podia constatar que um dia
ele fora aquele menino. E que ele tinha sido mesmo um menino ruivo e infantil e
isto a fizera consciente de seu trabalho e do seu dever. Estendeu a mão para
tocar o retrato, mas recuou logo, pois ela sabia que as sombras não se
dispersariam mesmo que ela as afastasse com os dedos.
Voltou à posição original na cadeira e
voltou a olhar-se no espelho. Não podia duvidar-se nunca. Estava perigosa e
compreendia que mesmo se não fosse uma enorme aranha com sua teia tecida e
estendida, ainda assim estaria apta a pegar muitas moscas.
Esqueceu as mãos sobre o colo e só com
o pensamento acariciou o rosto frio e nodoso. Sem nenhuma surpresa encontrou
uma ruga transversal erguendo-se sobre sua tez. Olhou-se mais profundamente e
viu-se murchando num jardim de muitas flores esparsas.
Mas como era a mãe não temia nenhuma
daquelas flores. O vento as tiraria do halo e ela ficaria feliz de vê-las mortas
caídas no chão. E mesmo se não fosse uma aranha seus palpos ainda o atrairiam
para seu íntimo. Daniel olharia para ela e a chamaria uma vez de mãe, mas
quando a fixasse abstrato e irrestrito ele mesmo perguntaria – “Que tenho eu contigo mulher?” Então ela
o olharia sem mácula e compreenderia sua frase como uma travessia.
O menino que ele fora não tinha
permanecido. E agora mesmo que não fosse uma aranha recolheria seus ovos e os
guardaria num saco de teia. Daniel estava um homem. No entanto não era
exatamente este o nível da sua compreensão. O que ela compreendia era que um
homem vinha substituindo o menino e Daniel era esse homem.
E o espelho ardia na sua transparência
lisa, mas ela estava cálida como uma pedra no meio do campo. Depois viria o sol
que aqueceria a rocha e a chuva que lavaria a rocha e o vento que despentearia
a rocha. Mas nenhuma dessas intempéries a distrairia da sua imperturbabilidade
quieta. Foi então que lembrou-se de friccionar uma unha na outra.
Ah! afinal tinha garras de fêmea. Era
uma grande ave de rapina caçando do alto das nuvens de onde poderia vislumbrar
todos os répteis que rastejam indefesos na terra. E ela era a única fera que
acolheria Daniel ao seio. Ofereceria seus peitos para que o rapaz os sugasse
com avidez e impudicícia. Ah! mas ela não se importava com isto. Abateria com
suas setas todas as aves que sobrevoasse o seu jardim.
Apertou as unhas no pulso esquerdo.
Desta carne manará leite e mel que te alimentará no deserto enquanto o
habitares quarenta dias e quarenta noites. E ela era ainda o grande fruto
suspenso preso entre as folhagens. Mas o sol vinha e atravessava a sombra e
via-se a aparência loura desse fruto maduro que Daniel colheria com as mãos
trêmulas.
Nunca que ela se desvencilharia desse
amor. Ela seria uma mulher de cem braços para colher essa flor que afinal tinha
medrado em vasos que ela mesma modelara com suas mãos. Se não quisesse esta
flor para si não a teria cultivado tão cuidadosamente. Se tivesse cultivado uma
flor para o vento não teria tido tanta atenção quando o sol a ameaçara crestar
e quando a chuva a queria levar. Agora que ela abria-se e sua corola oferecia o
mais doce mel das estrelas ela teria também o privilégio de prová-lo puro dentro
de fulgurante taça.
Ela testemunhara como abrira-se aquela
flor. Num dia em que a viu entre nuvens escuras de penugens plúmbeas. Ninho de
pombinha agreste. Basta folhagem ruiva revelando fruto púbere. Agora que o
tempo era propício vinham muitas mãos que se estendiam para a colheita? Nunca
que ela permitisse. Mesmo que não fosse uma aranha suas pinças o imobilizariam
inevitavelmente retido nela.
Afrouxou o pulso e sem olhar o estrago
que fizera na própria carne sentiu que ela pulsava ardente. Quem era que
ousaria? Procurou reconfortar-se dentro de si mesmo olhando em volta e tateando
um ponto onde pudesse amparar-se para não sentir-se sozinha. Mas a verdade é
que ela poderia estar sozinha e abandonada naquele exato momento. Seria
verdade?
Pensou que Daniel era seu filho e a
acolheria. Sim, primeiro a acolheria como a mãe. E quando isto acontecesse o
primeiro passo já estaria dado e como todo primeiro passo significa sempre
estar com os dois pés dentro de algum espaço, ela concluía muito tranquilamente
que estava bem à frente daquelas que haviam começado depois dela.
Sobretudo não enganava-se com Daniel,
pois ele era seu filho e ela o conhecera desde sempre. Seus dedos tinham
formado a carne de Daniel e suas mãos haviam modelado na argila da sua pele o
que ele em verdade viera a fazer-se. Também fora ela que, enquanto sendo a mãe
sazonara o seu impróprio fruto. Não duvidava que ela tivesse privilégios. Quem
negaria isso? Nunca ele que era seu filho.
Assumiu nova posição diante do espelho.
Precisava atribuir-se uma atitude muito digna. No entanto ela não sorriu. Mexeu
uma das mãos entendendo-a para diante. Observou que poderia abrir uma gaveta da
penteadeira e tomar o carretel de linha para amarrar uma ponta na entrada e
continuar desenrolando o resto à medida que caminhasse.
Riu-se dessa conjectura tão
transparente, mas decidiu prosseguir com o intuito. Quando encontrasse o bêbedo
do marido dentro daquele vórtice ela estaria segura e voltaria pelo mesmo
caminho. Agora ele só é feliz bebendo tanto, tanto, tanto que não se tem mais
em pé sem a necessidade de uma coluna de apoio. Daniel olhava o pai e ela não
se inquietava com a percepção clara de que ele o fazia com um sarcasmo
escamando-se em gumes prateados. Deixara de respeitar o pai para convencer-se
apenas de que afinal poderia restringir-se apenas a amá-lo sem mágoas, pois
assim não precisaria pensar muito nele e conformar-se de que pensar era não ter
o pai no pensamento.
Ela não se inquietava com isto. A
realidade tragava todos os entes para dentro dessa vaga voraz. A casa dormia em
paz e ela não podia deixar de estar ainda que impudicamente, satisfeita com
isto. Agora cada um com a sua vida. Dentro do labirinto o pai. Ela conhecia o
mistério e tinha a chave e assim estava fora das paredes contemplado a luz que
brilhava perpendicularmente do alto.
Então Daniel vinha. Muito ruivo e
improcedente, mas estendia-se como um grande navio, nu e coroado de ouriços nas
pedras lavadas pela salsugem marinha. Ela o via, mas como ele vinha coberto de
intempéries e sargaços, olhava-o e sorria-lhe compreendendo a desventura que
sobreviera-lhe naqueles jardins de delícias. Afinal ele sempre estaria de volta
àquele mesmo seguro porto.
Assumiu posição indefectível na
cadeira. Era a mãe. Assumira esse atributo. E tinha minerado com as próprias
mãos esse fruto que ora revelava-se ao mundo perene e púbere. E ela que agora
era um ser álgido e saberia enfrentar com lucidez e clarividência inaudita o
revelador eclipse que encobriria seu luminoso astro. Mas quando enfim ela
pudesse vislumbrar sua luz irradiando-se em outras estrelas poderia assumir
duas atitudes prováveis. Negar-lhes o direito de receber aqueles raios de luz
fulgente, soprar-lhes a chama volúvel e fazê-las perder-se para sempre no meio
das trevas.
Assim, mesmo que ela não fosse uma
aranha teceria uma vastíssima teia, ficaria no centro muito atenta esperando
que algum réptil, alguma folha, um orvalho, um raio caído do sol e mesmo o
vento que passa despertasse seus sentidos e a fizesse caminhar até lá, onde
ocorrera o estremecimento, e envolver o fenômeno com sua dúctil habilidade de
tecedeira voraz.
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