sexta-feira, 27 de março de 2020

CRÔNICA - CARTA AO PAI



Carta ao pai

         __Teu pai morreu.
         __Então morreu?
         __Não estava doente, mas enfim morreu.
         __Você soube?
         __Sim, eu soube, não foi de repente.
         __Então?
         __Nossos amigos.
         __Minha mãe.
         __Não digo teus amigos, digo meus e do teu pai, Carlos.
         __Com que intenção?
         __Avisaram, bastava que avisassem.
         __Então agora já sei, meu pai morreu.
         __Eu sei que você não, meu filho.
         __Você diz minha mãe.
         __Mas era teu pai compreenda.
         __Não me lembrei disto agora.
         __Precisa de alguém.
         __Já não fecharam os olhos dele?
         __Já, mas precisa de um punhado de terra por cima.
         __Você quer que eu leve um punhado de terra para meu pai minha mãe?
         __Não é a obrigação do filho?
         __Por que eu nunca?
         __Um último esforço Carlos.
         __Era meu pai, você diz.
         __Era teu pai, eu digo.
         __E morreu?
         __Ontem eu soube, só hoje encontrei você.
         __Minha mãe, era meu pai esse que morreu e eu que sou então o seu filho preciso ir até ele e dar-lhe sepultura.
         __É o que te peço, vem comigo.
         __Outros.
         __Nenhum posso exigir.
         __...
         __Tuas irmãs nenhuma. Teu irmão, você acha que ele poderia?
         __Então eu também não posso.
         __Teu irmão com dez anos. Nenhuma das tuas irmãs. Você o primeiro filho.
         __Justamente o que ele mais odiou.
         __Não aprendeu a perdoar Carlos?
         __Não aprendi a perdoar minha mãe.
         __Vem comigo. Vem por mim.


         Era então meu pai o que tinha morrido daquela morte. Era o meu pai o mesmo que durante sua vida havia de alguma forma comprometido-se com os filhos. Não que nós, os filhos lhes devêssemos por isso. Não se impõe aos filhos a necessidade de vir trazer alguma recompensa ao pai por haver se comprometido com todos os seus filhos. Não sei se o pai poderia fazer de outro modo. As obrigações do pai já estão determinadas segundo princípios imutáveis. E você que era o meu pai e que eu reconheço não podia agir de outro modo. Como então ser-lhe útil nessa hora meu pai? Muitas tempestades fizeram de mim, seu filho, de você, meu pai, amargurados. Nossos peitos em silêncio. Muitas pedras em nossas bocas. Nossas mãos guardadas. Eu precisava de um gesto seu. Você que nunca esperou um gesto meu. Colhemos nossos lírios, os esquecemos aos molhos pelos caminhos, andamos na mesma senda e nunca mais nenhuma erva cresceu onde caminhamos juntos. Eu era um menino e tu eras já meu pai. Tu chegavas cansado e trazia a roupa suja das intempéries da implacável labuta. Nos teus pés vinha a terra que lavravas, nas tuas mãos o sangue coagulado, mãos calosas e duras. Teus braços, glórias da força sobre-humana. Movias um rio com eles, sustentavas o mundo com tua força de homem. Mas como todo deus tu trabalhavas e também cansavas. E por isso o teu cansaço não era o cansaço triste dos homens. Eu via e compreendia como um menino que compreende. Tu eras nascido da terra meu pai – de terra eram teu cabelos, (terra boa), de terra tua pele escura (terra preta e outras terras), de terra também era teu peito, (rocha matriz), teus olhos, boca, sangue e urina. Terra. Terra. Terra. Meu pai. Havia também teu cheiro. No começo nauseante, porque eras tu quem estava em casa meu pai. O ar faltava-me e eu me convencia de que tu o respiravas todo me sufocando. Mas fui aprendendo a respirar também e isto para mim foi uma revelação. Vieram os anos e foi nos consumindo meu pai. O menino que compreendia para amar foi ao homem e o homem alimentou muitas dores e estas dores o feriram e ele olhando o vasto campo atravessou pelas pedras ferindo-se nos espinhos. Foi o momento em que passei a te odiar meu pai. E era um ódio sem remorsos. Um ódio invariável e tranquilo. Não foi sempre a tua bebida meu pai. O álcool que te privou de nossa mãe e de teus filhos. Não foi sempre isso. Eu naturalmente tenho medo de ti. O medo do pai não é privilégio de alguns. Posso crer que nenhum menino não tenha tido medo do pai. E quando crescemos com esse medo. Crescer com medo do pai também não chega a ser privilégio exclusivo. Os meninos crescem como homens com medo do pai. Eu cresci e não sou mais nenhum menino, mas não deixei de ter medo de ti meu pai. Nunca que você soubesse hein? O filho que te enfrentava. O filho que tinha nojo do pai. E principalmente o filho que se envergonhava de você meu pai. Nunca que você soubesse hein? Agora você está preso dentro de mim meu pai e eu o carrego sobre mim. Quanto esforço para não ser você, para nunca por na boca uma gota de álcool. Para nuca começar meu pai. Se eu venci? Eu sempre quis que você soubesse o que eu fiz de mim. Mas eu sei que você nunca soube. Nossa mãe pede que lhe dê sepultura. Não quis logo. Depois eu quis porque ela pediu. Então eu vim meu pai. E onde você?
         __Morreu de noite e quando vimos, estava deitado de bruços no terreiro.
         __Como um cão?
         __Justamente, como um cão. Sua mãe não veio logo, nem você.
         __Muito ocupado. Minha mãe quem soube primeiro.
         __Sem dúvida. Era seu pai, não era mais nada dela.
         __Então enterraram ele?
         __Assim. Não tinha nada. Trouxemos uma roupa, veio o caixão e vela e veio o carro. Assim tudo de caridade mesmo.
         __...




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