Carta
ao pai
__Teu
pai morreu.
__Então
morreu?
__Não
estava doente, mas enfim morreu.
__Você
soube?
__Sim,
eu soube, não foi de repente.
__Então?
__Nossos
amigos.
__Minha
mãe.
__Não
digo teus amigos, digo meus e do teu pai, Carlos.
__Com
que intenção?
__Avisaram,
bastava que avisassem.
__Então
agora já sei, meu pai morreu.
__Eu
sei que você não, meu filho.
__Você
diz minha mãe.
__Mas
era teu pai compreenda.
__Não
me lembrei disto agora.
__Precisa
de alguém.
__Já
não fecharam os olhos dele?
__Já,
mas precisa de um punhado de terra por cima.
__Você
quer que eu leve um punhado de terra para meu pai minha mãe?
__Não
é a obrigação do filho?
__Por
que eu nunca?
__Um
último esforço Carlos.
__Era
meu pai, você diz.
__Era
teu pai, eu digo.
__E
morreu?
__Ontem
eu soube, só hoje encontrei você.
__Minha
mãe, era meu pai esse que morreu e eu que sou então o seu filho preciso ir até
ele e dar-lhe sepultura.
__É
o que te peço, vem comigo.
__Outros.
__Nenhum
posso exigir.
__...
__Tuas
irmãs nenhuma. Teu irmão, você acha que ele poderia?
__Então
eu também não posso.
__Teu
irmão com dez anos. Nenhuma das tuas irmãs. Você o primeiro filho.
__Justamente
o que ele mais odiou.
__Não
aprendeu a perdoar Carlos?
__Não
aprendi a perdoar minha mãe.
__Vem
comigo. Vem por mim.
Era
então meu pai o que tinha morrido daquela morte. Era o meu pai o mesmo que
durante sua vida havia de alguma forma comprometido-se com os filhos. Não que
nós, os filhos lhes devêssemos por isso. Não se impõe aos filhos a necessidade
de vir trazer alguma recompensa ao pai por haver se comprometido com todos os
seus filhos. Não sei se o pai poderia fazer de outro modo. As obrigações do
pai já estão determinadas segundo princípios imutáveis. E você que era o meu
pai e que eu reconheço não podia agir de outro modo. Como então ser-lhe útil
nessa hora meu pai? Muitas tempestades fizeram de mim, seu filho, de
você, meu pai, amargurados. Nossos peitos em silêncio. Muitas pedras em nossas
bocas. Nossas mãos guardadas. Eu precisava de um gesto seu. Você que nunca
esperou um gesto meu. Colhemos nossos lírios, os esquecemos aos molhos pelos
caminhos, andamos na mesma senda e nunca mais nenhuma erva cresceu onde
caminhamos juntos. Eu era um menino e tu eras já meu pai. Tu chegavas cansado e
trazia a roupa suja das intempéries da implacável labuta. Nos teus pés vinha a
terra que lavravas, nas tuas mãos o sangue coagulado, mãos calosas e duras. Teus
braços, glórias da força sobre-humana. Movias um rio com eles, sustentavas o
mundo com tua força de homem. Mas como todo deus tu trabalhavas e também cansavas.
E por isso o teu cansaço não era o cansaço triste dos homens. Eu via e compreendia
como um menino que compreende. Tu eras nascido da terra meu pai – de terra eram
teu cabelos, (terra boa), de terra tua pele escura (terra preta e outras terras),
de terra também era teu peito, (rocha matriz), teus olhos, boca, sangue e
urina. Terra. Terra. Terra. Meu pai. Havia também teu cheiro. No começo
nauseante, porque eras tu quem estava em casa meu pai. O ar faltava-me e eu me
convencia de que tu o respiravas todo me sufocando. Mas fui aprendendo a
respirar também e isto para mim foi uma revelação. Vieram os anos e foi nos
consumindo meu pai. O menino que compreendia para amar foi ao homem e o homem
alimentou muitas dores e estas dores o feriram e ele olhando o vasto campo
atravessou pelas pedras ferindo-se nos espinhos. Foi o momento em que passei a
te odiar meu pai. E era um ódio sem remorsos. Um ódio invariável e tranquilo.
Não foi sempre a tua bebida meu pai. O álcool que te privou de nossa mãe e de
teus filhos. Não foi sempre isso. Eu naturalmente tenho medo de ti. O medo do
pai não é privilégio de alguns. Posso crer que nenhum menino não tenha tido
medo do pai. E quando crescemos com esse medo. Crescer com medo do pai também
não chega a ser privilégio exclusivo. Os meninos crescem como homens com medo
do pai. Eu cresci e não sou mais nenhum menino, mas não deixei de ter medo de
ti meu pai. Nunca que você soubesse hein? O filho que te enfrentava. O filho
que tinha nojo do pai. E principalmente o filho que se envergonhava de você meu
pai. Nunca que você soubesse hein? Agora você está preso dentro de mim meu pai
e eu o carrego sobre mim. Quanto esforço para não ser você, para nunca por na
boca uma gota de álcool. Para nuca começar meu pai. Se eu venci? Eu sempre quis
que você soubesse o que eu fiz de mim. Mas eu sei que você nunca soube. Nossa mãe
pede que lhe dê sepultura. Não quis logo. Depois eu quis porque ela pediu.
Então eu vim meu pai. E onde você?
__Morreu
de noite e quando vimos, estava deitado de bruços no terreiro.
__Como
um cão?
__Justamente,
como um cão. Sua mãe não veio logo, nem você.
__Muito
ocupado. Minha mãe quem soube primeiro.
__Sem
dúvida. Era seu pai, não era mais nada dela.
__Então
enterraram ele?
__Assim.
Não tinha nada. Trouxemos uma roupa, veio o caixão e vela e veio o carro. Assim
tudo de caridade mesmo.
__...
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