quarta-feira, 25 de março de 2020

CRÔNICA - MÃE



Mãe

         Ela o olhou como quem o reconhecia pela primeira vez. Mas absolutamente não era a primeira vez que o via porque ele era seu filho e ela que era sua mãe o tinha gerado durante os nove meses que antecederam seu nascimento que se dera há três dias exatos. Sendo necessariamente a mãe poderia afirmar que conhecia seu filho, pois que o acompanhara crescendo no seu ventre.
         Mas agora que o tinham separado dela, agora que ele não crescia mais nas suas entranhas, agora que ela não o sentia mais como uma coisa que era o seu próprio ser integral e indissociável, sua presença como um filho palpável e material impunha-se.
         Como cresceria indelével no mundo? De que se nutriria? Que dores carpiria esse serzinho que respirava o primeiro ar da manhã clara? Ela então retinha as mãozinhas tenras e frias dele entre as suas mãos calosas e assépticas.
         Como colheriam um dia os frutos das árvores mais altas? Seriam essas as mãos que empunhariam a foice, o martelo e a enxada? Seriam elas que ergueriam bandeira? Seriam essas mãos que se estenderiam em acolhimento? Ou seriam essas mesmas mãos que se negariam para sempre recolhidas nos bolsos da calça?
         Contou-lhe os dedos, em cada mão pode constatar a exata soma de cinco, o que o punha então entre os seres que trazem o número dez como constante vetorial nas suas grandes batalhas.
         Que lutas ele lutará? Ganhará alguma? Será como o natural dos homens ganhando algumas e perdendo muitas? Ou antes como um homem cuja sorte lhe sorrir ganhando sempre e perdendo apenas para aproveitar os despojos da derrota para impor uma incontestável vitória mais adiante? Ou antes, (e que assim não seja) um vencido da vida que amargará muitas derrotas nunca mais reconciliando-se com a necessidade de vencer o mundo e mover os calhaus que se interporão no meio do caminho?
         Espalmou as mãos sobre seu peito.
         Efetivamente era um menino, era frágil como um lírio que cresce na areia. Mas a vida pulsava-lhe inquieta. Ela podia senti-la quente e vibrante intumescendo-lhe o corpinho breve.
         Que forças ele reuniria dentro de si? Seria como o outro que andara pelos montes falando as ervas, as pedras, aos passarinhos e distribuindo pão e peixe para depois morrer no madeiro? Ou como águia combateria a frente de numeroso exército e venceria e voltaria coberto de glórias fazendo-se general e monumento público?

         Como adivinhar-lhe?
         O pai não que não fora tão longe. Ela que era a mãe e que não se desviara muito do caminho que já lhe vinha imposto desde a sua mãe, desde a sua avó, desde as muitas mulheres que foram distribuindo outros meninos pela família. Mas ele era um menino e aos meninos não se nega tudo.
         No entanto ele, o pai não tivera tanto e muito lhe fora negado. A terra que ora calca sob seus pés e de onde se nutre e que também nutrirá o menino, esta que poderia caber-lhe em herança lhe fora negada e a alugam pelo alto preço do seu suor vertido. A semente que cresce nesta mesma terra alimentará muitos outros, mas não chegará alimentá-lo ou nutrir devidamente seu filho.
         Crescerá então este menino.
         Terá a barriga cheia de vermes e a tênia se nutrirá de suas entranhas e seu sangue de pouca tinta lhe imporá formidáveis raquitismos. Comerá terra e disputará aos cães os restos do boi morto. Roubará fruta madura e tirará aos porcos seu alimento. Comerá em dias incertos e quando não comer e a fome impor-se como uma dor que transfigura e uma doença não fatal, recolherás tuas lágrimas e chorarás baixinho dentro do sono que não esquece.
         Este menino e tomou-o nos braços, que não adivinhava, mas que era seu, que era um complemento natural de toda a sua existência, que era, (e isto não se podia concluir devidamente, necessário ao mundo), já insistia na vida.
         Tinha boca e tinha olhos. E esses olhos que tinha veriam mais luz ou imensas trevas no decurso de todo o caminho que seus pés caminhariam? E os pezinhos quantos espinhos os feririam? E essas feridas se curariam? Ou seriam úlceras? Seriam esses os espinhos o e se se ensina acharem-se sempre nos caminhos da felicidade constante e bem aventurada?
         Ou seriam pedras que se interporiam irremovíveis diante de seus olhos?
          E esses olhos que se abrem agora para a luz da manhã clara estariam um dia perdidos no meio da treva espessa? Estariam abertos e, entretanto cegos?
         E a mãe olhou-se nos olhos do menino, lá dentro o grande reflexo dela reconhecendo-se e o filho que a olhava e que igualmente a reconhecia como o rochedo seguro aonde viera prender-se, a árvore de profundíssimos rizomas que o susteria e o nutriria fazendo-o respectivamente fruto e galho, flor e raiz cujo vento incessante bateria, mas que resistiria impávida a mais treda borrasca.
         E ela que era a mãe e ele que era o filho e que se reconheciam dentro do mesmo ser que transubstanciavam-se e faziam-se uno e múltiplo, matéria e não matéria, imanência táctil estavam diante do mesmo espelho.
         E as águas que miravam eram calmas na superfície, mas lá no fundo ela que tinha vivido até ali sabia com uma antecipação divina que havia grandes correntezas e que quando obrigassem soltar-lhes as mãos, ele seria arrastado como enxurro para o val e então novas raízes cresceriam nele para impedir-se de continuar batido pela intempérie voraz.






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