Mãe
Ela
o olhou como quem o reconhecia pela primeira vez. Mas absolutamente não era a
primeira vez que o via porque ele era seu filho e ela que era sua mãe o tinha
gerado durante os nove meses que antecederam seu nascimento que se dera há três
dias exatos. Sendo necessariamente a mãe poderia afirmar que conhecia seu
filho, pois que o acompanhara crescendo no seu ventre.
Mas
agora que o tinham separado dela, agora que ele não crescia mais nas suas
entranhas, agora que ela não o sentia mais como uma coisa que era o seu próprio
ser integral e indissociável, sua presença como um filho palpável e material
impunha-se.
Como
cresceria indelével no mundo? De que se nutriria? Que dores carpiria esse
serzinho que respirava o primeiro ar da manhã clara? Ela então retinha as
mãozinhas tenras e frias dele entre as suas mãos calosas e assépticas.
Como
colheriam um dia os frutos das árvores mais altas? Seriam essas as mãos que
empunhariam a foice, o martelo e a enxada? Seriam elas que ergueriam bandeira?
Seriam essas mãos que se estenderiam em acolhimento? Ou seriam essas mesmas
mãos que se negariam para sempre recolhidas nos bolsos da calça?
Contou-lhe
os dedos, em cada mão pode constatar a exata soma de cinco, o que o punha então
entre os seres que trazem o número dez como constante vetorial nas suas grandes
batalhas.
Que
lutas ele lutará? Ganhará alguma? Será como o natural dos homens ganhando
algumas e perdendo muitas? Ou antes como um homem cuja sorte lhe sorrir
ganhando sempre e perdendo apenas para aproveitar os despojos da derrota para
impor uma incontestável vitória mais adiante? Ou antes, (e que assim não seja)
um vencido da vida que amargará muitas derrotas nunca mais reconciliando-se com
a necessidade de vencer o mundo e mover os calhaus que se interporão no meio do
caminho?
Espalmou
as mãos sobre seu peito.
Efetivamente
era um menino, era frágil como um lírio que cresce na areia. Mas a vida
pulsava-lhe inquieta. Ela podia senti-la quente e vibrante intumescendo-lhe o corpinho
breve.
Que
forças ele reuniria dentro de si? Seria como o outro que andara pelos montes
falando as ervas, as pedras, aos passarinhos e distribuindo pão e peixe para
depois morrer no madeiro? Ou como águia combateria a frente de numeroso
exército e venceria e voltaria coberto de glórias fazendo-se general e
monumento público?
Como
adivinhar-lhe?
O pai
não que não fora tão longe. Ela que era a mãe e que não se desviara muito do
caminho que já lhe vinha imposto desde a sua mãe, desde a sua avó, desde as
muitas mulheres que foram distribuindo outros meninos pela família. Mas ele era
um menino e aos meninos não se nega tudo.
No
entanto ele, o pai não tivera tanto e muito lhe fora negado. A terra que ora
calca sob seus pés e de onde se nutre e que também nutrirá o menino, esta que
poderia caber-lhe em herança lhe fora negada e a alugam pelo alto preço do seu
suor vertido. A semente que cresce nesta mesma terra alimentará muitos outros,
mas não chegará alimentá-lo ou nutrir devidamente seu filho.
Crescerá
então este menino.
Terá
a barriga cheia de vermes e a tênia se nutrirá de suas entranhas e seu sangue
de pouca tinta lhe imporá formidáveis raquitismos. Comerá terra e disputará aos
cães os restos do boi morto. Roubará fruta madura e tirará aos porcos seu
alimento. Comerá em dias incertos e quando não comer e a fome impor-se como uma
dor que transfigura e uma doença não fatal, recolherás tuas lágrimas e chorarás
baixinho dentro do sono que não esquece.
Este
menino e tomou-o nos braços, que não adivinhava, mas que era seu, que era um
complemento natural de toda a sua existência, que era, (e isto não se podia
concluir devidamente, necessário ao mundo), já insistia na vida.
Tinha
boca e tinha olhos. E esses olhos que tinha veriam mais luz ou imensas trevas
no decurso de todo o caminho que seus pés caminhariam? E os pezinhos quantos
espinhos os feririam? E essas feridas se curariam? Ou seriam úlceras? Seriam
esses os espinhos o e se se ensina acharem-se sempre nos caminhos da felicidade
constante e bem aventurada?
Ou seriam
pedras que se interporiam irremovíveis diante de seus olhos?
E esses olhos que se abrem agora para a luz da
manhã clara estariam um dia perdidos no meio da treva espessa? Estariam abertos
e, entretanto cegos?
E a
mãe olhou-se nos olhos do menino, lá dentro o grande reflexo dela reconhecendo-se
e o filho que a olhava e que igualmente a reconhecia como o rochedo seguro aonde
viera prender-se, a árvore de profundíssimos rizomas que o susteria e o
nutriria fazendo-o respectivamente fruto e galho, flor e raiz cujo vento incessante
bateria, mas que resistiria impávida a mais treda borrasca.
E ela
que era a mãe e ele que era o filho e que se reconheciam dentro do mesmo ser
que transubstanciavam-se e faziam-se uno e múltiplo, matéria e não matéria, imanência
táctil estavam diante do mesmo espelho.
E as
águas que miravam eram calmas na superfície, mas lá no fundo ela que tinha vivido
até ali sabia com uma antecipação divina que havia grandes correntezas e que
quando obrigassem soltar-lhes as mãos, ele seria arrastado como enxurro para o
val e então novas raízes cresceriam nele para impedir-se de continuar batido
pela intempérie voraz.
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