A sesta de um fauno
Acordou
sobressaltado, o ar grosso e estagnado cortava-lhe a respiração. Dormira pouco,
e ele compreendia que não deveria. Afinal o pai. Tivera muitos maus sonhos.
Vencida, a consciência o trouxera de volta, então ele pensou em Clarinha e
descobriu já meio acordado que tudo acontecera mesmo naquela manhã.
A
mãe que não tinha visto. A menina que não tinha gritado. Mas ele era o pai e
era um homem. A menina estava botando seios, mas a mãe que não poderia
imaginar. Como aconteceu? A cabeça doendo-lhe do lado direito. Ouviu o silêncio
da casa. Agora a menina mais calma.
De
manhã não estava. Uma menina. Essa o Coronel não devia. Sua filha. Como o
Coronel? Mas era o Coronel. Clarinha, sua filha. Ele o pai. Tudo tinha acabado.
Clarinha deflorada, o Coronel não tinha o direito. Insistia, ele era o pai.
Recostou-se
outra vez na rede. Mil coroas de espinhos cravando-se na sua fronte. O pai tinha
o dever da honra. Mas contra o Coronel, quem? Só entendia que o Coronel não
tinha o direito, que a menina era sonsinha e não tinha ainda formas.
Quando
a mãe não a viu por perto caminhou pelo leito do rio e achou na margem o lugar
das folhas espalhadas, sangue na terra. Compreendeu tudo e chorou. Mais adiante
a menina sem sentidos. Mortinha mesmo a menina. Que o Coronel não tinha o
direito. Ele que era o pai e até poderia.
Mas
contra o Coronel, quem?
A
saliva grossa queimando na boca. Tinha febre. No Cumbe nenhuma virgem.
Todas violadas. Botam seios para o Coronel. Ganham formas para o Coronel.
Nenhum respeito por mulher, o bode. Todas cadelinhas dele.
Tinha
uma filha perdida. Agora a menina mais calma. Então ele fechou os olhos só para
abri-los em seguida. Clarinha recomeçava a chorar lá dentro. Uma coisa volumosa
crescia dentro dele. Mas a menina não chorou tanto e ele pode fechar os olhos e
impor-se a necessidade de não pensar. Não se convenceu a isto. A filha soluçava
e ele nunca não queria deixar de pensar em como a havia perdido para sempre.
Lá
fora a tarde crescia completa e ardente.
Quando
acabava o almoço era depois de onze horas e a tarde se tornava muito áspera com
o calor ardendo dentro do dia e o vento ventando nuvens de pó que se acumulava
em muitos estratos na folhagem dos fícus da rua. Era a hora da sesta e quem não
tinha adormecido dentro das casas jazia em bancos de pau à sombra das
platibandas.
Sob
o tamarindo havia os cães e os meninos. Ester tinha agulha e tinha linha, então
ela bordaria a colcha da cama com os heliotrópios mais azuis que quisesse.
Depois do almoço do Coronel ela não tinha mais nada para fazer até que
terminasse a tarde. Ouviu o ventilador elétrico. Era hora de tranquilidade e
serenidade quando até os lagartos param para descansar nas lájeas das pedras.
Ester
limpou os óculos, mas não os pôs logo para não ter que começar o bordado. Ainda
teria tempo até que o Coronel acordasse lá dentro. Quando isto voltasse a
acontecer ela largaria o bordado e se disporia ao serviço da casa. O Coronel a
solicitaria e ela que era a esposa se imporia o cumprimento do dever.
Mas
agora o Coronel dormia a sesta da tarde.
Então
os meninos que não tinham dormido porque naturalmente não se convenciam da
necessidade daquele sono, passaram sob a janela do Coronel olharam por cima do
umbral e viram seu ventre muito abaulado subindo e descendo num estertor de boi
doente. A respiração parada e um súbito resfôlego que subia das regiões da
morte impunha a certeza de que o Coronel voltaria a estar acordado quando
acabasse a sesta.
O
Cumbe ardia.
Mas
as mulheres desciam para o poço com os cântaros. Essas servas não descansavam.
Era a hora da sesta do Coronel e não teriam outra ocasião mais propícia.
Sobretudo agora era a hora em que não haveria nenhum temor pelas mulheres.
As
filhas não escandalizariam seus pais e as mulheres seriam fieis aos seus
maridos. E tudo isso era tão tácito que os homens do povoado continuaram
dormindo a sesta enquanto as mulheres desciam pela rua, livres e sem pensar que
até o final da tarde teriam que ter toda a água de que precisavam nas
cisternas.
Então
quando voltavam com os cântaros alguém se lembrou da menina que a mãe levou
para o rio e era uma menina e o Coronel não tinha respeitado. Mas alguém também
se lembrou que desde que já tinha peitos deveria ter se impedido de ir ao rio
durante a manhã.
__Era
uma criança.
__Menina.
__Menina
e tinha começo de peito.
__Menina
e moça.
__Sem
formas.
__Não
era uma mulher.
__E
a mãe?
__Nem
viu nada.
__Diz
que não viu nada.
__Não
viu?
__Levou
a menina pra ajudar.
__Lavava
a roupa.
__Não
viu?
__Diz
que não viu.
__O
Coronel apareceu?
__O
rio é do Coronel.
__A
menina mais embaixo brincando.
__Ainda
brincava?
__Tinha
modos de mulher.
__Mas
não era mulher.
__O
Coronel não respeita.
__Eu
sou mulher.
__Fico
em casa enquanto o Coronel.
__ E
o pai?
__Está
feito louco.
__Só
chora.
__Tem
o dever da honra.
__Mas
foi o Coronel.
__Só
há uma virgem no Cumbe.
__Ester.
__A
mulher do Coronel.
__Nessa
ele não toca.
__E
a menina?
__Menina
e moça.
__Foi
levada pra casa.
__O
Coronel fez seu estrago.
__Sangrava.
__Pensavam
que morta.
__Estava
viva.
__Chorou
muito quando tornou.
__O
pai gritou no quintal.
__Levaram
pra dentro, estava como doido.
__Deram
Lorax.
__Ele
dormiu.
__A
mãe não devia ter.
__Não
sabia.
__O
Coronel já de olho.
__Agora
acabou.
Quando
Ester pôs os óculos para começar o bordado viu que as mulheres do povoado
voltavam com a água nos cântaros. Não surpreendeu-se com isso. Naturalmente depois
que serviam o almoço para seus maridos não tinham mais nada para fazer e se
impunham a necessidade de encher as cisternas para ter água em casa. Sem tempo
mais pra olhar para a rua pôs um longuíssimo fio azul na agulha e começou um
halo do heliotrópio.
Ester
ouviu o silêncio da casa, mas o ventilador elétrico era constante, o Coronel
tinha dormido e não voltaria a acordar até que acabasse a hora da sesta.
Como
as mulheres do povoado sabiam que o Coronel não voltaria a acordar até que
acabasse a hora da sesta puderam encher as cisternas, arrancar a erva que
crescera nas hortas dos quintais, estender os lençóis lavados nos varais e
houve dentre elas quem se esquecesse que precisava ocupar-se com todo o serviço
da casa para segredar-se coisas que elas tinham guardado desde a tarde do dia
anterior, mas que urgia falar.
__Casada.
__Não
foi ela que quis?
__Diz
que não.
__Mas
o Coronel não só virgens?
__Principalmente
virgens.
__Meninas.
__Estreitas.
__E
essa?
__Casada.
__Era
casada.
__O
Coronel quis e ela pode.
__Quem
pode?
__Ele
é o Coronel.
__Mulher
casada todo mundo sabe.
__O
marido descobre depois.
__Então
o que faz?
__O
cornudo?
__Fica
com a mulher.
__Ele
ficou.
__E
ela?
__Contou
tudo.
__O
Coronel a violou nos canteiros do quintal.
__Ele
pulou o muro?
__Diz
que sim.
__Mas
viram quando ela abriu a porta.
__O
Coronel entra na casa?
__
Se for convidado.
__Enfiou
no rabo dela.
__E
o marido?
__Voltou
pra casa e viu tudo.
__Viu
o Coronel?
__Viu
a mulher caída no quintal.
__Levou
pra dentro. Lavou com creolina.
__Depois
não tocou mais nela.
__Nunca
mais.
__Espalhou
que a mulher tem fedor de pai-de-chiqueiro no corpo.
__Do
Coronel.
__...
Ester
terminou um molho de heliotrópios e depôs o bordado sobre uma cadeira. Cruzou
as mãos sobre o ventre e sentiu o nó dos dedos na palma. Não estava tão cansada
que precisasse esquecer o trabalho. Havia silêncio e podia-se ouvir lá fora o
sol ardendo dentro do ar imóvel.
Lá
dentro do quarto ouviu que o Coronel continuava dormindo.
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