quinta-feira, 5 de março de 2020

CONTO - A SESTA DE UM FAUNO



A sesta de um fauno


         Acordou sobressaltado, o ar grosso e estagnado cortava-lhe a respiração. Dormira pouco, e ele compreendia que não deveria. Afinal o pai. Tivera muitos maus sonhos. Vencida, a consciência o trouxera de volta, então ele pensou em Clarinha e descobriu já meio acordado que tudo acontecera mesmo naquela manhã.
         A mãe que não tinha visto. A menina que não tinha gritado. Mas ele era o pai e era um homem. A menina estava botando seios, mas a mãe que não poderia imaginar. Como aconteceu? A cabeça doendo-lhe do lado direito. Ouviu o silêncio da casa. Agora a menina mais calma.
         De manhã não estava. Uma menina. Essa o Coronel não devia. Sua filha. Como o Coronel? Mas era o Coronel. Clarinha, sua filha. Ele o pai. Tudo tinha acabado. Clarinha deflorada, o Coronel não tinha o direito. Insistia, ele era o pai.
         Recostou-se outra vez na rede. Mil coroas de espinhos cravando-se na sua fronte. O pai tinha o dever da honra. Mas contra o Coronel, quem? Só entendia que o Coronel não tinha o direito, que a menina era sonsinha e não tinha ainda formas.
         Quando a mãe não a viu por perto caminhou pelo leito do rio e achou na margem o lugar das folhas espalhadas, sangue na terra. Compreendeu tudo e chorou. Mais adiante a menina sem sentidos. Mortinha mesmo a menina. Que o Coronel não tinha o direito. Ele que era o pai e até poderia.
         Mas contra o Coronel, quem?
         A saliva grossa queimando na boca. Tinha febre. No Cumbe nenhuma virgem. Todas violadas. Botam seios para o Coronel. Ganham formas para o Coronel. Nenhum respeito por mulher, o bode. Todas cadelinhas dele.
         Tinha uma filha perdida. Agora a menina mais calma. Então ele fechou os olhos só para abri-los em seguida. Clarinha recomeçava a chorar lá dentro. Uma coisa volumosa crescia dentro dele. Mas a menina não chorou tanto e ele pode fechar os olhos e impor-se a necessidade de não pensar. Não se convenceu a isto. A filha soluçava e ele nunca não queria deixar de pensar em como a havia perdido para sempre.
         Lá fora a tarde crescia completa e ardente.
         Quando acabava o almoço era depois de onze horas e a tarde se tornava muito áspera com o calor ardendo dentro do dia e o vento ventando nuvens de pó que se acumulava em muitos estratos na folhagem dos fícus da rua. Era a hora da sesta e quem não tinha adormecido dentro das casas jazia em bancos de pau à sombra das platibandas.
         Sob o tamarindo havia os cães e os meninos. Ester tinha agulha e tinha linha, então ela bordaria a colcha da cama com os heliotrópios mais azuis que quisesse. Depois do almoço do Coronel ela não tinha mais nada para fazer até que terminasse a tarde. Ouviu o ventilador elétrico. Era hora de tranquilidade e serenidade quando até os lagartos param para descansar nas lájeas das pedras.
         Ester limpou os óculos, mas não os pôs logo para não ter que começar o bordado. Ainda teria tempo até que o Coronel acordasse lá dentro. Quando isto voltasse a acontecer ela largaria o bordado e se disporia ao serviço da casa. O Coronel a solicitaria e ela que era a esposa se imporia o cumprimento do dever.
         Mas agora o Coronel dormia a sesta da tarde.
         Então os meninos que não tinham dormido porque naturalmente não se convenciam da necessidade daquele sono, passaram sob a janela do Coronel olharam por cima do umbral e viram seu ventre muito abaulado subindo e descendo num estertor de boi doente. A respiração parada e um súbito resfôlego que subia das regiões da morte impunha a certeza de que o Coronel voltaria a estar acordado quando acabasse a sesta.
         O Cumbe ardia.
         Mas as mulheres desciam para o poço com os cântaros. Essas servas não descansavam. Era a hora da sesta do Coronel e não teriam outra ocasião mais propícia. Sobretudo agora era a hora em que não haveria nenhum temor pelas mulheres.
         As filhas não escandalizariam seus pais e as mulheres seriam fieis aos seus maridos. E tudo isso era tão tácito que os homens do povoado continuaram dormindo a sesta enquanto as mulheres desciam pela rua, livres e sem pensar que até o final da tarde teriam que ter toda a água de que precisavam nas cisternas.
         Então quando voltavam com os cântaros alguém se lembrou da menina que a mãe levou para o rio e era uma menina e o Coronel não tinha respeitado. Mas alguém também se lembrou que desde que já tinha peitos deveria ter se impedido de ir ao rio durante a manhã.

         __Era uma criança.
         __Menina.
         __Menina e tinha começo de peito.
         __Menina e moça.
         __Sem formas.
         __Não era uma mulher.
         __E a mãe?
         __Nem viu nada.
         __Diz que não viu nada.
         __Não viu?
         __Levou a menina pra ajudar.
         __Lavava a roupa.
         __Não viu?
         __Diz que não viu.
         __O Coronel apareceu?
         __O rio é do Coronel.
         __A menina mais embaixo brincando.
         __Ainda brincava?
         __Tinha modos de mulher.
         __Mas não era mulher.
         __O Coronel não respeita.
         __Eu sou mulher.
         __Fico em casa enquanto o Coronel.
         __ E o pai?
         __Está feito louco.
         __Só chora.
         __Tem o dever da honra.
         __Mas foi o Coronel.
         __Só há uma virgem no Cumbe.
         __Ester.
         __A mulher do Coronel.
         __Nessa ele não toca.
         __E a menina?
         __Menina e moça.
         __Foi levada pra casa.
         __O Coronel fez seu estrago.
         __Sangrava.
         __Pensavam que morta.
         __Estava viva.
         __Chorou muito quando tornou.
         __O pai gritou no quintal.
         __Levaram pra dentro, estava como doido.
         __Deram Lorax.
         __Ele dormiu.
         __A mãe não devia ter.
         __Não sabia.
         __O Coronel já de olho.
         __Agora acabou.
         Quando Ester pôs os óculos para começar o bordado viu que as mulheres do povoado voltavam com a água nos cântaros. Não surpreendeu-se com isso. Naturalmente depois que serviam o almoço para seus maridos não tinham mais nada para fazer e se impunham a necessidade de encher as cisternas para ter água em casa. Sem tempo mais pra olhar para a rua pôs um longuíssimo fio azul na agulha e começou um halo do heliotrópio.
         Ester ouviu o silêncio da casa, mas o ventilador elétrico era constante, o Coronel tinha dormido e não voltaria a acordar até que acabasse a hora da sesta.
         Como as mulheres do povoado sabiam que o Coronel não voltaria a acordar até que acabasse a hora da sesta puderam encher as cisternas, arrancar a erva que crescera nas hortas dos quintais, estender os lençóis lavados nos varais e houve dentre elas quem se esquecesse que precisava ocupar-se com todo o serviço da casa para segredar-se coisas que elas tinham guardado desde a tarde do dia anterior, mas que urgia falar.
         __Casada.
         __Não foi ela que quis?
         __Diz que não.
         __Mas o Coronel não só virgens?
         __Principalmente virgens.
         __Meninas.
         __Estreitas.
         __E essa?
         __Casada.
         __Era casada.
         __O Coronel quis e ela pode.
         __Quem pode?
         __Ele é o Coronel.
         __Mulher casada todo mundo sabe.
         __O marido descobre depois.
         __Então o que faz?
         __O cornudo?
         __Fica com a mulher.
         __Ele ficou.
         __E ela?
         __Contou tudo.
         __O Coronel a violou nos canteiros do quintal.
         __Ele pulou o muro?
         __Diz que sim.
         __Mas viram quando ela abriu a porta.
         __O Coronel entra na casa?
         __ Se for convidado.
         __Enfiou no rabo dela.
         __E o marido?
         __Voltou pra casa e viu tudo.
         __Viu o Coronel?
         __Viu a mulher caída no quintal.
         __Levou pra dentro. Lavou com creolina.
         __Depois não tocou mais nela.
         __Nunca mais.
         __Espalhou que a mulher tem fedor de pai-de-chiqueiro no corpo.
         __Do Coronel.
         __...
         Ester terminou um molho de heliotrópios e depôs o bordado sobre uma cadeira. Cruzou as mãos sobre o ventre e sentiu o nó dos dedos na palma. Não estava tão cansada que precisasse esquecer o trabalho. Havia silêncio e podia-se ouvir lá fora o sol ardendo dentro do ar imóvel.         
          Lá dentro do quarto ouviu que o Coronel continuava dormindo.








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