sexta-feira, 20 de março de 2020

CRÔNICA - A PEDRA DA SODOMIA




A pedra da sodomia


         A promiscuidade masculina é coisa ora consentida, ora combatida pela sociedade. Fala-se que o casamento é para toda a vida, mas ao mesmo tempo já li muita coisa que afirma peremptoriamente que o animal humano não é como os seus primos gorilas, monogâmico e propenso a manter relações de acasalamento com uma só fêmea durante toda a vida. Acresce a isto uma coisa bem óbvia, seres humanos masculinos nem sempre escolhem suas parceiras e nunca conheci um homem que acasalasse com sua fêmea.
         Como disse, a promiscuidade masculina foi coisa muito consentida outrora e as esposas coitadas davam graças a Deus que havia as putas das “casas de tolerância” para seus maridos as deixarem em paz. A igreja que no nosso tempo tanto condena o pulo do marido fora do tálamo nupcial, também foi muito conivente num passado muito próximo com as escapadas do esposo do leito da sua escolhida.
         Em verdade parece que essa ideia de fidelidade masculina como atributo essencial para a manutenção de um casamento de características burguesas ocidentais remonta inexplicavelmente a revolução de 1968 ou parece-me que aos casamentos padrões das telenovelas que há cinquenta anos os brasileiros assistem na televisão. Sei lá. Penso que há muito retardamento sexual nos homens brasileiros, mas também sou muitas vezes convencidos pelos padres da renovação carismática e pastores neopentecostais que o mundo está mesmo perdido e que a depravação está em toda parte de uns tempos para cá.
         Mas sexualidade masculina é uma coisa que me deixa confuso. Principalmente quando sou levado a refletir sobre ele depois de ler alguma coisa escrita ou dita sobre tal assunto. Falar de sexo é bom e não acaba nunca e o homem sempre teve direito ao sexo mais do que as mulheres. Creio que já se escreveu muito sobre isto. De Tebas no Egito Antigo ao Vaticano durante as comemorações do Jubileu do ano 2000 o sexo do homem sempre foi o leitmotiv da religião, da arte e da política e aqui estou eu martelando outra vez o assunto nesta crônica.
         Mas como disse o assunto em questão sempre me deixa muito confuso e é uma confusão que me remete à minha infância. Coisa estranha essa de você aprender o principal da teoria sobre a sexualidade quando se é um menino implume. Eu fui um menino que como todos os outros meninos não deixa de ser nem menos, nem mais libidinoso para sua idade. Fui aprendendo com os outros que eram mais experientes do que eu o básico sobre o sexo e suas principais manifestações nos humanos.
         Ainda me lembro com uma clarividência insuspeita um desses momentos de descobertas fatais para um menino. Eu tinha nove anos quando desvelou-se-me esta ideia clara e distinta, não era o ato de beijar que trazia os bebês para o mundo, mas uma forma bem peculiar do homem “comer” a mulher.
         E o meu amiguinho que caminhava comigo expôs-me com um conhecimento de sexólogo inveterado como a sua irmã Lúcia tinha engravidado do primo dela, João, dentro do bananal. Não cheguei a acreditar logo no Joaquim, mas como o Antônio e o Roberto que não eram menos espertos do que eu já sabiam que era assim que acontecia mesmo, não pude deixar de acreditar que aquela fosse mesmo a verdade dos fatos.
         Como acreditei assim ficou sendo o modo dos bebês virem ao mundo. O homem “come” a mulher que depois engravida dele. A confirmação da teoria veio dali há dias quando fiquei mais atento ao que diziam perto de mim quem já tinha “comido” uma mulher. Depois não parei mais de aprender sobre essas coisas. O mundo tornou-se para mim uma eterna novidade constante. Peço perdão aos leitores sensíveis, as palavras cruas são do vocabulário masculino de quem cuja sexualidade trato nesta crônica.
         Como disse, o menino que eu era não parou mais de aprender. E o que aprendi em seguida, lição gozosa foi a arte de bater punheta. Não havia catequistas lá no nosso povoado, padre ou beata que sustentasse o mal da masturbação para os meninos. Palmas das mãos cabeludas, anemia, entortamento do pau, sei lá. Tive bons mestres de putaria infantil, meninos que aprendiam com os mais velhos e ensinavam bem ensinadinho para os outros meninos ensimesmados como eu. Havia um local onde nos reuníamos para as práticas das nossas primícias sexuais. Era a lá no Riacho Seco. “Oh que saudades tenho da aurora da minha vida... da minha infância querida que os anos não trazem mais!”
         Era a pedra da sodomia.

         A mata florida de mofumbos, tão cheirosas e inebriantes flores. Arapuás cruzavam o espaço levando nas asas o delicado pólen das acácias, na boca o dulcíssimo mel das flores silvestres. A terra molhada vertia o cheiro de fêmea impura, as avencas atapetavam o chão da mata e dos barrancos manava límpida a água fresca que escorria em regato. Tão doce era o canto dos passarinhos na copa das frondosas árvores que baloiçavam deliciosamente ao vento. Rolas arrulhavam chamando o casto esposo, maracanãs voavam pelo espaço azul em algazarra feliz, periquitos verdes pousavam nas ramagens roçando-se num pipilar amoroso. Os lagartos boiavam sobre as lájeas quentes e as borboletas brancas, amarelas, azuis e pretas, cruzavam-se numa confusão de asas e cores. Ah os frutos silvestres! Maracujás capitosos que espargiam seus odores viciosos pelo caminho, catolés maduros com sua polpa amarela e dulcíssima, as uvas babosas da mata, cerejas, gravatás e croatás. Ah o som da água que escorria entre pedras! Pequeninas cascatas que saltavam de pedra em pedra e enchiam amplos caldeirões cavados pela erosão das águas mais antigas. “Que doce a vida não era nessa risonha manhã!” E e pedra da sodomia como um altar de sacrifício gozoso. 
         Perdoem-me, mas não pude me esquivar de pintar a infância ideal como um poeta manco o faria.
         Os meninos em verdade não são castos. Falo da perspectiva de um menino que se tornou pai do homem que sou hoje. Jesus confiava nos meninos do seu tempo. A pureza dos pastorinhos que pasciam as ovelhinhas tranquilas nos prados da Judeia o inspirou a frase clássica: “Deixai os pequeninos e não os estorveis de vir a mim, porque dos tais é o Reino dos céus”. E as cabras de Belém nada disseram, e se os meninos as sodomizavam nos pastos da Palestina é incerto. Mas como tudo é duvidoso neste mundo e como é bem certo que os meninos gregos e romanos coabitavam com os animais dos rebanhos, leiam As bucólicas de Virgílio não é impossível que os judeuzinhos do mesmo tempo também fornicassem com suas cabrinhas.
         Veja que a costumada afirmação de que o mundo hoje encontra-se perdido devido a propagação da depravação desenfreada desde a tenra idade, não passa de uma prática ególatra de nosso tempo que quer ser singular e especial em tudo. Os meninos depravados existiram em todos os tempos. No meu tempo fazíamos como os meninos gregos e romanos e as cabras eram sodomizadas e as jumentas desfrutavam de um harém de mancebos.
         Cousa maravilhosa de se ver um ror de moleques fazendo fila no barranco para transar com a jumentinha dócil de Zé Ferreira.
         No povoado conhecia-se a pedra da sodomia e sua fama, porque seu uso era antigo. Não tínhamos sido os primeiros meninos a fazer uso dela ou inventá-la para as práticas impuras da nossa própria infância. Creio mesmo que havia nódoas ancestrais gravadas no granito dela.
         Era o lugar da mata que oferecia os gozos do prazer inupto, depois podia-se comer a goiaba branca que crescia na beira do poço, banhar-se na água límpida da chuva e tomar sol nuzinho deitado sobre a pedra morna. Tudo isto coberto pelo indelével manto da natureza primeva. (Mas isto é muito enfático confesso, o velho hábito do poeta manco que acredita na infância puríssima).
         Os meninos como eu, e aos meninos que viveram antes de mim e aqueles que foram meninos em todos os séculos dos séculos sempre desfrutaram de suas cabras, jumentas, bananeiras e goiabas no meio da mata, tudo isto é crescer, mas quando o menino cresce e se faz homem é que ele passa a acreditar que o ser humano já foi melhor num tempo escatológico.



        

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