sexta-feira, 10 de janeiro de 2020

CRÔNICA - ORATÓRIO DE SÃO LÁZARO



Oratório de São Lázaro

         A chuva tinha lavado a paisagem e ele podia sentir pontos de odor cheiroso em cada coisa que encontrava naquela manhã de dezembro. Era dezembro ainda, mas pensou que já era janeiro e não sabia exatamente como é que tinha chegado a pensar em tal coisa. O ar estava tão limpo que era possível ver que o horizonte crescia.
         Assim as coisas se tornavam mais simples. O pai agora campeava na várzea molhada e as galinhas corriam no monturo da casa. Havia muito ar doce em volta. E a barriga da mãe já estava bem grande. Foi o que ele pensou, mas não quis pensar nisto sempre porque viu Catita muito atenta atrás da casa.
         Era o gato que tinha saído do mato. Era o gato que tinha saído do mato. Era o gato que tinha saído do mato.
         Deu a volta e foi encontrado as coisas pelo caminho. Uma pedra atirada. Um pedaço de galho morto. Um lírio nascido da terra. Uma folha que tinha caído. Um rastro que ficara para trás.
___Catita minha velha! Eh! Catita minha velha!
         O gato estava parado na borda da mata que começava atrás da casa e só acabava do outro lado do mundo. O menino foi até lá e contemplou o cheiro úmido e quente das folhas molhadas que se aspergiam pelo chão. Olhou para dentro da mata e não escutou nada. Procurou ouvir um pássaro que passasse entre as árvores, mas não viu nenhum voo ou agitar-se de asas.
         Olhou para trás. A casa logo ali, tão próxima que era fácil de alcançar se o vento despertasse o silêncio preso nos galhos imóveis das árvores. Ele era um menino que tinha medo. Principalmente tinha medo de saber o que estava misteriosamente acontecendo lá dentro da mata.
         De manhã havia o sol que iluminava o céu, mas ele sabia que o sol não chegava até o chão úmido, ele sabia que a luz ficava parada nas folhas verdes e que sob a umidade das ervas e das folhas podres cresciam lacraias de ferrão. A mãe falava e ela sabia quando falava. Era uma coisa que a mãe sabia de verdade. Então ele parou. Agachou-se. Tomou um graveto e pôs-se a escrever na terra molhada.
         Se Catita esquecesse o gato poderia vir saber o que ele estava escrevendo no chão. Então uma formiga passava. Estava perdida. Onde as companheiras? Procurou-as, mas não estavam ali. Traçou uma longuíssima linha no chão e depois um círculo em volta da formiga perdida. Dentro do círculo ela ficou mais perdida do que estava quando tinha o mundo inteiro para andar.
         Se superasse aquele obstáculo poderia ser livre e voltar para casa. Mas ele suspeitava que o formigueiro daquela formiga ficasse dentro da mata e ela tinha se perdido do caminho. Se Catita esquecesse o gato ele também se esqueceria da formiga. Desenhou outro círculo dentro do círculo maior e fez do mundo um lugar menor para as formigas e para os meninos brincarem. Era uma forma de viver.
         Foi quando alguma coisa aconteceu no terreiro da casa e houve uma agitação geral entre as galinhas, no gato e em Catita. As galinhas correram curiosas para saber o que era. O gato fugiu porque as galinhas corriam tontas e Catita tinha perdido o gato e não se interessava pelas galinhas.
         Então ele se ergueu e com a pontinha do pé apagou a borda do círculo maior. Foi quando entendeu que a mãe havia despejado a água da bacia que lavara os pratos e as galinhas tinham pensado que ela tinha jogado comida pra elas. Bicho burrinho é uma galinha. Cabeça de galinha é como uma cabeça de peixe, não tem nada dentro.
         Estalou os dedos e Catita veio vindo feliz. Veio toda se mijando a louquinha.
___Eu só queria te dizer uma coisa Catita, só uma coisa que tu vai gostar.
         Carlinhos olhou nos olhos da cadela que eram grandes e brilhantes e ficou parado lá dentro. O pai era uma sombra na sua memória e a mãe ele podia ouvir dentro de casa cuidando da irmãzinha dele que ainda não sabia exatamente de nada como as coisas aconteciam lá fora. Ele gostava de Catita, gostava da mãe e da irmãzinha. Não era assim?
___Era pra te dizer Catita que Dona Mariazinha Sinhá pediu pra te levar lá na casa dela pra festa que ela vai fazer só pra cachorro ir. Vai ser bom não vai Catita?
         Mas Catita nem pensava no que o menino estava dizendo. Ela era um bicho como é que ia saber o que o menino estava dizendo? Mas a voz ela ouvia e como era tranquila e quente podia entender que o menino era bom. Mas e o pai? O pai era a voz que vibrava dentro dela. Caminhou entre as pernas do menino e sentou-se olhando-o de frente.
         Carlinhos tomou a cabeça da cachorra entre as mãos, desceu os dedos até as orelhas e a ponta do polegar até o focinho. Catita olhava-o de frente ouvindo-o como se estivesse compreendendo, mas não compreendia coisa alguma porque era um bicho que não sabia entender como a voz humana estava cheia de pensamentos. Era um animal bem bobo, mas como o menino falava permanecia atenta, mas não era uma atenção concentrada porque havia tudo em volta: as moscas que voavam e as galinhas que corriam doidas e a onipresença do gato em qualquer lugar.

___Saiba você que foi o pai quem disse. O pai disse que eu vou te levar. Vai ter janta. Veja você Catita. Vai ter janta só pra cachorro mesmo. Não vai ter pra gente não. É uma coisa que Dona Mariazinha Sinhá vai fazer só pra cachorro ir. Gente vai, mas não vai pra comer. Mãe falou. Cachorro vai comer no prato e gente nenhuma vai comer lá. Dona Mariazinha Sinhá muito boa mesmo. Eu gosto de Dona Mariazinha Sinhá. É uma velhinha muito boa. Eu quero que você goste dela também. Todo mundo gosta. Mas tem uma coisa Catita. Eu vou te dizer logo. Você não vai poder ficar no meio dos outros, tá bom? Catita você sabe que o pai não gosta disso. Você sabe. Tem que ter vergonha. Vai ter gente lá também, mas vai ter mais cachorro porque é festa só pra cachorro. Cachorro comendo no prato e tudo. Gente vai só beber café na xícara. Engraçado isso né? Dona Mariazinha Sinhá faz tudo. Inventa mesmo tudo. Fica toda noite descaroçando algodão. Eu já vi como ela faz. Você também já viu. O capucho fica todo branquinho e macio sem nenhum caroço dentro. Ela descaroça tudo com os dedos. Vai catando pra fora até encontrar o último. E depois é que acontece uma coisa bonita mesmo. Você já viu Catita. Ela usa o fuso e faz um fio. Comprido fio de algodão e com outro fio comprido ela faz outro fio comprido também e enrola num novelo. Logo ela tem uma bola de algodão com os fios que ela fez. Parece mentira, mas eu já vi e você também viu. Ela inventa tudo. Eu gosto também do doce de coco de Dona Mariazinha Sinhá. É tão bom porque é bom. O coco e o açúcar crescem dentro da gente. Essa festa pra cachorro era uma coisa que eu nem sabia, mas agora eu sei. Um santo só pra cachorro. Eh! Tem um santo só pra tu. Não é bom? Um santo para gente e para cachorro também. Mas não tem santo pro gato nem para as galinhas. Já pensou? Dona Mariazinha Sinhá quem descobriu isso. Vamos gostar muito dela por causa disso. É uma coisa que a gente aprendeu. A gente não sabia disso e agora sabe é como quando amanhece sem sol, mas aí as nuvens vão ficando transparentes e de repente o sol aparece como uma bola que atravessa o céu. Eu sei que você não sabe o que é isso Catita. Você nunca olha pra cima e não ver o sol. Mas isso não importa. Eu é que olho pra cima e vejo o céu azul, mas hoje o céu não está azul porque choveu de noite. Você ver como existe uma sombra fria cobrindo a terra Catita? O que nós vamos fazer agora Catita? Eu não quero que você mexa lá no ninho das galinhas sabe? O pai não gosta e o pai pode tudo. Depois eu não posso nada. Se você fizer isso depois não tem como resolver o que você fez. Ninho de galinha não é pra cachorro mexer. O pai te acaba e eu não posso nada. Não podemos confiar. Pensa numa coisa - eu não vou poder fazer nada se o pai não gostar, está bem? Mãe também não pode nada. Ninguém pode depois que o pai sabe o que aconteceu. Então não faça mais uma coisa parecida. Eu vou te ensinar a não ser assim tão louquinha. Mas eu preciso que você não fique fingindo que não sabe de nada. Eu preciso mesmo que você aprenda logo Catita. Mas agora eu não posso mesmo. Eu nem sei o que fazer. Eu não estou nem querendo brincar. O que eu posso dizer é que eu sou um menino que não é feliz. Quando eu for embora Catita, você não vai poder ir comigo. Mas quando eu voltar você ainda estará aqui. Eu sempre volto. Um dia eu preciso ir aí o pai me leva e eu vou, mas depois eu volto porque o pai me traz de volta. Eu nem sei por que eu vou, mas eu sempre sei por que eu volto. A barriga da mãe agora está muito grande e todo mundo precisará ir com ela. Mas você não vai. Catita vai ficar com o pai na casa. Quando eu voltar você vai estar deitada aqui na frente da casa, só vai saber que eu sou eu quando compreender que eu voltei. Mas isso não vai ser hoje. Hoje Dona Mariazinha Sinhá pediu pra te levar. Eu vou te levar sim. Uma cura que ela conseguiu. O santo é bom e ela agora quer pagar pra ele. Então ele pediu que não acendesse vela nem fizesse reza, chamasse todos os cachorros e desse janta pra eles. Ele morreu com os cachorros lambendo as feridas dele. Ninguém queria mais ele, mas os cachorros andavam atrás dele e nunca deixaram ele sozinho. Quando ele morreu os cachorros ficaram vigiando pra nenhum urubu chegar perto, aí Jesus veio e mandou ele voltar a viver. Ele viveu e só depois de viver mais tempo que antes foi que morreu de novo. A história que Dona Mariazinha Sinhá sabia e contou como aconteceu. Isso foi no começo do mundo. Ela conta a história e a bola de fios nasce nas mãos dela. Então o candeeiro vai se apagando com o vento. Mas a chama resiste e não se apaga. Então a gente sabe que é tarde e vai pra casa dormir. Na outra noite é como se tudo começasse outra vez desde o primeiro fio que ela enrola na ponta do dedo, que ela roda no fuso e que as mãos pretas dela apontam pra lua que começa a nascer de dentro da mata. Eu sei que é assim que acontece. Você também sabe. O cheiro de café arde no ar e o candeeiro volta pra iluminar a sala do santo. Antão conta como era no engenho. O pai escuta. Mãe nem fala. Eu estou no canto, por que eu sou um menino como você sabe e eu não precisava nem estar ali. Mas eu estou e fico calado. Minha voz esquecida para sempre na boca. Eu vejo tudo com meus olhos – as mãos de Dona Mariazinha Sinhá criando um fio e outro fio que vai se unindo a outros fios até se tornar um fio maior que não termina nunca naquela noite; então a lua vem vindo pra dentro do céu; então o café chega na xícara branca e o vento que insiste, mas a luz do candeeiro não apaga, resiste. Depois eu nem sei como tudo isso acaba porque eu durmo. Durmo mesmo, mas eu sei que não acabou e no outro dia vai começar tudo outra vez. E seria tão bom se não acabasse mesmo. O pai que chama pra voltar para casa e que me traz dormindo. Eu venho nos braços do pai. É assim que eu venho, nos braços do pai. Mãe que vem atrás. A barriga de mãe já está bem grande. E você vem também Catita. E estou preso como a mosca fica na teia da aranha. Muitos fios prendem meu sono. Quando eu acordo encontro você aqui e eu estou aqui também. E logo o mundo começa a acontecer outra vez.






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