Oratório de São
Lázaro
A chuva
tinha lavado a paisagem e ele podia sentir pontos de odor cheiroso em cada
coisa que encontrava naquela manhã de dezembro. Era dezembro ainda, mas pensou
que já era janeiro e não sabia exatamente como é que tinha chegado a pensar em
tal coisa. O ar estava tão limpo que era possível ver que o horizonte crescia.
Assim
as coisas se tornavam mais simples. O pai agora campeava na várzea molhada e as
galinhas corriam no monturo da casa. Havia muito ar doce em volta. E a barriga
da mãe já estava bem grande. Foi o que ele pensou, mas não quis pensar nisto sempre
porque viu Catita muito atenta atrás da casa.
Era
o gato que tinha saído do mato. Era o gato que tinha saído do mato. Era o gato
que tinha saído do mato.
Deu a
volta e foi encontrado as coisas pelo caminho. Uma pedra atirada. Um pedaço de
galho morto. Um lírio nascido da terra. Uma folha que tinha caído. Um rastro que
ficara para trás.
___Catita minha velha! Eh! Catita minha velha!
O gato
estava parado na borda da mata que começava atrás da casa e só acabava do outro
lado do mundo. O menino foi até lá e contemplou o cheiro úmido e quente das
folhas molhadas que se aspergiam pelo chão. Olhou para dentro da mata e não
escutou nada. Procurou ouvir um pássaro que passasse entre as árvores, mas não viu
nenhum voo ou agitar-se de asas.
Olhou
para trás. A casa logo ali, tão próxima que era fácil de alcançar se o vento
despertasse o silêncio preso nos galhos imóveis das árvores. Ele era um menino que
tinha medo. Principalmente tinha medo de saber o que estava misteriosamente
acontecendo lá dentro da mata.
De
manhã havia o sol que iluminava o céu, mas ele sabia que o sol não chegava até o
chão úmido, ele sabia que a luz ficava parada nas folhas verdes e que sob a umidade
das ervas e das folhas podres cresciam lacraias de ferrão. A mãe falava e ela
sabia quando falava. Era uma coisa que a mãe sabia de verdade. Então ele parou.
Agachou-se. Tomou um graveto e pôs-se a escrever na terra molhada.
Se
Catita esquecesse o gato poderia vir saber o que ele estava escrevendo no chão.
Então uma formiga passava. Estava perdida. Onde as companheiras? Procurou-as,
mas não estavam ali. Traçou uma longuíssima linha no chão e depois um círculo
em volta da formiga perdida. Dentro do círculo ela ficou mais perdida do que
estava quando tinha o mundo inteiro para andar.
Se
superasse aquele obstáculo poderia ser livre e voltar para casa. Mas ele
suspeitava que o formigueiro daquela formiga ficasse dentro da mata e ela tinha
se perdido do caminho. Se Catita esquecesse o gato ele também se esqueceria da
formiga. Desenhou outro círculo dentro do círculo maior e fez do mundo um lugar
menor para as formigas e para os meninos brincarem. Era uma forma de viver.
Foi
quando alguma coisa aconteceu no terreiro da casa e houve uma agitação geral
entre as galinhas, no gato e em Catita. As galinhas correram curiosas para
saber o que era. O gato fugiu porque as galinhas corriam tontas e Catita tinha
perdido o gato e não se interessava pelas galinhas.
Então
ele se ergueu e com a pontinha do pé apagou a borda do círculo maior. Foi quando entendeu
que a mãe havia despejado a água da bacia que lavara os pratos e as galinhas
tinham pensado que ela tinha jogado comida pra elas. Bicho burrinho é uma
galinha. Cabeça de galinha é como uma cabeça de peixe, não tem nada dentro.
Estalou
os dedos e Catita veio vindo feliz. Veio toda se mijando a louquinha.
___Eu só queria te dizer uma coisa Catita, só uma
coisa que tu vai gostar.
Carlinhos
olhou nos olhos da cadela que eram grandes e brilhantes e ficou parado lá
dentro. O pai era uma sombra na sua memória e a mãe ele podia ouvir dentro de
casa cuidando da irmãzinha dele que ainda não sabia exatamente de nada como as
coisas aconteciam lá fora. Ele gostava de Catita, gostava da mãe e da
irmãzinha. Não era assim?
___Era pra te dizer Catita que Dona Mariazinha
Sinhá pediu pra te levar lá na casa dela pra festa que ela vai fazer só pra
cachorro ir. Vai ser bom não vai Catita?
Mas
Catita nem pensava no que o menino estava dizendo. Ela era um bicho como é que
ia saber o que o menino estava dizendo? Mas a voz ela ouvia e como era
tranquila e quente podia entender que o menino era bom. Mas e o pai? O pai era
a voz que vibrava dentro dela. Caminhou entre as pernas do menino e sentou-se
olhando-o de frente.
Carlinhos
tomou a cabeça da cachorra entre as mãos, desceu os dedos até as orelhas e a
ponta do polegar até o focinho. Catita olhava-o de frente ouvindo-o como se
estivesse compreendendo, mas não compreendia coisa alguma porque era um bicho
que não sabia entender como a voz humana estava cheia de pensamentos. Era um
animal bem bobo, mas como o menino falava permanecia atenta, mas não era uma
atenção concentrada porque havia tudo em volta: as moscas que voavam e as
galinhas que corriam doidas e a onipresença do gato em qualquer lugar.
___Saiba você que foi o pai quem disse. O pai
disse que eu vou te levar. Vai ter janta. Veja você Catita. Vai ter janta só
pra cachorro mesmo. Não vai ter pra gente não. É uma coisa que Dona Mariazinha
Sinhá vai fazer só pra cachorro ir. Gente vai, mas não vai pra comer. Mãe
falou. Cachorro vai comer no prato e gente nenhuma vai comer lá. Dona
Mariazinha Sinhá muito boa mesmo. Eu gosto de Dona Mariazinha Sinhá. É uma
velhinha muito boa. Eu quero que você goste dela também. Todo mundo gosta. Mas
tem uma coisa Catita. Eu vou te dizer logo. Você não vai poder ficar no meio
dos outros, tá bom? Catita você sabe que o pai não gosta disso. Você sabe. Tem
que ter vergonha. Vai ter gente lá também, mas vai ter mais cachorro porque é
festa só pra cachorro. Cachorro comendo no prato e tudo. Gente vai só beber
café na xícara. Engraçado isso né? Dona Mariazinha Sinhá faz tudo. Inventa
mesmo tudo. Fica toda noite descaroçando algodão. Eu já vi como ela faz. Você
também já viu. O capucho fica todo branquinho e macio sem nenhum caroço dentro.
Ela descaroça tudo com os dedos. Vai catando pra fora até encontrar o último. E
depois é que acontece uma coisa bonita mesmo. Você já viu Catita. Ela usa o
fuso e faz um fio. Comprido fio de algodão e com outro fio comprido ela faz
outro fio comprido também e enrola num novelo. Logo ela tem uma bola de algodão
com os fios que ela fez. Parece mentira, mas eu já vi e você também viu. Ela
inventa tudo. Eu gosto também do doce de coco de Dona Mariazinha Sinhá. É tão
bom porque é bom. O coco e o açúcar crescem dentro da gente. Essa festa pra
cachorro era uma coisa que eu nem sabia, mas agora eu sei. Um santo só pra
cachorro. Eh! Tem um santo só pra tu. Não é bom? Um santo para gente e para
cachorro também. Mas não tem santo pro gato nem para as galinhas. Já pensou?
Dona Mariazinha Sinhá quem descobriu isso. Vamos gostar muito dela por causa
disso. É uma coisa que a gente aprendeu. A gente não sabia disso e agora sabe é
como quando amanhece sem sol, mas aí as nuvens vão ficando transparentes e de
repente o sol aparece como uma bola que atravessa o céu. Eu sei que você não
sabe o que é isso Catita. Você nunca olha pra cima e não ver o sol. Mas isso
não importa. Eu é que olho pra cima e vejo o céu azul, mas hoje o céu não está
azul porque choveu de noite. Você ver como existe uma sombra fria cobrindo
a terra Catita? O que nós vamos fazer agora Catita? Eu não quero que você mexa
lá no ninho das galinhas sabe? O pai não gosta e o pai pode tudo. Depois eu não
posso nada. Se você fizer isso depois não tem como resolver o que você fez.
Ninho de galinha não é pra cachorro mexer. O pai te acaba e eu não posso nada.
Não podemos confiar. Pensa numa coisa - eu não vou poder fazer nada se o pai
não gostar, está bem? Mãe também não pode nada. Ninguém pode depois que o pai
sabe o que aconteceu. Então não faça mais uma coisa parecida. Eu vou te ensinar
a não ser assim tão louquinha. Mas eu preciso que você não fique fingindo que
não sabe de nada. Eu preciso mesmo que você aprenda logo Catita. Mas agora eu
não posso mesmo. Eu nem sei o que fazer. Eu não estou nem querendo brincar. O
que eu posso dizer é que eu sou um menino que não é feliz. Quando eu for embora
Catita, você não vai poder ir comigo. Mas quando eu voltar você ainda estará
aqui. Eu sempre volto. Um dia eu preciso ir aí o pai me leva e eu vou, mas
depois eu volto porque o pai me traz de volta. Eu nem sei por que eu vou, mas
eu sempre sei por que eu volto. A barriga da mãe agora está muito grande e todo
mundo precisará ir com ela. Mas você não vai. Catita vai ficar com o pai na
casa. Quando eu voltar você vai estar deitada aqui na frente da casa, só vai
saber que eu sou eu quando compreender que eu voltei. Mas isso não vai ser
hoje. Hoje Dona Mariazinha Sinhá pediu pra te levar. Eu vou te levar sim. Uma
cura que ela conseguiu. O santo é bom e ela agora quer pagar pra ele. Então ele
pediu que não acendesse vela nem fizesse reza, chamasse todos os cachorros e
desse janta pra eles. Ele morreu com os cachorros lambendo as feridas dele.
Ninguém queria mais ele, mas os cachorros andavam atrás dele e nunca deixaram
ele sozinho. Quando ele morreu os cachorros ficaram vigiando pra nenhum urubu
chegar perto, aí Jesus veio e mandou ele voltar a viver. Ele viveu e só depois
de viver mais tempo que antes foi que morreu de novo. A história que Dona
Mariazinha Sinhá sabia e contou como aconteceu. Isso foi no começo do mundo.
Ela conta a história e a bola de fios nasce nas mãos dela. Então o candeeiro
vai se apagando com o vento. Mas a chama resiste e não se apaga. Então a gente
sabe que é tarde e vai pra casa dormir. Na outra noite é como se tudo começasse
outra vez desde o primeiro fio que ela enrola na ponta do dedo, que ela roda no
fuso e que as mãos pretas dela apontam pra lua que começa a nascer de dentro da
mata. Eu sei que é assim que acontece. Você também sabe. O cheiro de café arde
no ar e o candeeiro volta pra iluminar a sala do santo. Antão conta como era no
engenho. O pai escuta. Mãe nem fala. Eu estou no canto, por que eu sou um
menino como você sabe e eu não precisava nem estar ali. Mas eu estou e fico
calado. Minha voz esquecida para sempre na boca. Eu vejo tudo com meus
olhos – as mãos de Dona Mariazinha Sinhá criando um fio e outro fio que vai se
unindo a outros fios até se tornar um fio maior que não termina nunca naquela
noite; então a lua vem vindo pra dentro do céu; então o café chega na xícara
branca e o vento que insiste, mas a luz do candeeiro não apaga, resiste. Depois
eu nem sei como tudo isso acaba porque eu durmo. Durmo mesmo, mas eu sei que
não acabou e no outro dia vai começar tudo outra vez. E seria tão bom se não
acabasse mesmo. O pai que chama pra voltar para casa e que me traz dormindo. Eu
venho nos braços do pai. É assim que eu venho, nos braços do pai. Mãe que vem
atrás. A barriga de mãe já está bem grande. E você vem também Catita. E estou
preso como a mosca fica na teia da aranha. Muitos fios prendem meu sono. Quando
eu acordo encontro você aqui e eu estou aqui também. E logo o mundo começa a
acontecer outra vez.
Nenhum comentário:
Postar um comentário