quinta-feira, 16 de janeiro de 2020

CRÔNICA - A COLETIVIZAÇÃO DAS GALINHAS



 A coletivização das galinhas



         Ela era a mãe. Era a mãe e olhou para dentro deste espaço vazio sem, contudo ver como a água jazia parada lá no fundo. E como era a mãe olhou o filho. Ela estava calma e resignada, mas o menino não entendia nada das mães resignadas, o menino tinha fome.
         A fome é a dor que dói como um prego, é a dor que vem vindo para fora num aperto de sufocamento, é a dor que estrangula sobretudo as mães. O menino que tinha fome era o filho dela e ela era a mãe que se afogava transida de dor, espectadora resignada da fome do menino. E o filho diz para a mãe – Estou com fome mãe. Dentro dessas palavras o nó que a sufocava, a corda suspendia na trave do telhado.
         Onde o pai? O pai era Francisco, semeador de terra alheia. Vasto campo avaro molhado com seu suor vendido. A terra a meias e seus frutos anchos, mas divididos. Melhor quinhão tinha o patrão: sua parte da colheita, seu homem que empreita e ela, a mulher na cozinha.
         Os filhos que iam crescendo entre muitas fomes e alguma fartura. Cresciam primeiro dentro dela onde os sentia espernearem ansiosos de vir ao mundo. Houve mesmo os que não vingaram. Outros vieram vindo mortos já, anjos tutelados pela justiça de Deus. Sempre havia um passarinho que o patrão não podia prender no viveiro.
         Tudo do patrão. A terra da várzea, a serra, o morro, a mata atrás da casa, a própria casa, o riacho que corria nas terras de baixo e o canavial no brejo. Tudo ele tinha, Aarão, o patrão voraz comedor de terra e trabalho alheio.
         Ninguém livre, se não era de Aarão teria sempre outro patrão. O vale não era de ninguém, mas todo distribuído direitinho entre os patrões. A divisão natural das cercas definindo cada posse e justa extensão da terra para que cada dono tivesse sua parte de brejo, de mata, de rio e de serra.

           Francisco não era livre. Ela, Maria não era livre. E o menino também servia. Na venda comprar cigarros, querosene e sal. Havia também a menina, mas esta não servia ainda, a fome mesmo a privara de sangue bom. Tinha vermes e comia terra. As bichas roíam-lhe e ela as saciava com a terra olorosa da parede mal caiada.
         A menina era boazinha porque era resignada e não dizia – Estou com fome mãe! O menino não comia terra e a fome era-lhe uma tropelia de muitos cavalos no estômago. De noite é que era mais impossível. O menino pensava em dormir, mas não esquecia a fome logo. O sono era apaziguador. Mas nem de tarde o menino não dormia. E havia o bebê para amamentar, a menina pra não deixar comer terra e o outro dentro dela querendo vir ao mundo. O mundo onde ele queria viver não era bom para o menino. Os gêmeos e o outro menino mais velho, antes desse aí, nenhum não quis ficar, foram como os lírios que crescem atrás da casa depois da primeira chuva de dezembro.
         Aí veio este que é chato e chora com fome. Que insiste que se exaspera mesmo diante dela. Os dois olham-se em silêncio, a mãe e o filho, nenhum não compreendendo como chegaram até aqui. O menino consumado, a mãe calada, a voz esquecida na boca e uma ideia coando na cabeça. Ela de cócoras atrás da casa, o menino sentado fazendo montinhos de terra, ambos presos no silêncio da tarde imóvel.
         Nada a fazer. Sábado Aarão vai pagar. Francisco então devolve. Todo o salário devidamente entregue ao irmão do patrão. Jesus recebe. Francisco ainda devendo. Entrega todo o salário e ainda devendo. Não pode comprar quase nada. O menino com fome. A menina doente. O bebê não chora mais, ela sem leite pro bebê. Outro que vem vindo.
         E a mãe olha fixamente para dentro da tarde que se recusa a consumação parada no tempo. O calor vibra nas pedras e coágulos de sol cruzam-se na sua retina. São as galinhas da patroa, vêm pastar no terreiro da casa. Saem de dentro do mato atrás da casa e comem no monturo dela. Bem gordas as galinhas de Dona Neném.

         A patroa criava galinhas, mas ela é quem dava de comer as galinhas. Não havia fome no galinheiro da patroa. A patroa decidia. Maria dar de comer as galinhas e aos porcos no chiqueiro. O peru e a perua comem também. Ela cumpria porque não podia haver fome no galinheiro e no chiqueiro de Dona Neném.
         A patroa permitia que os restos da cozinha fossem dela. Levava tudo para o menino. Ela não comia nada. A menina não comia. Podia insistir, a menina não comia mesmo nada. Só terra. Dona Neném deixava restos, ela trazia para o menino. Ainda trazia mais que os restos. E sempre sobrava muito. Era fácil sobrar muito. Ela sabia como fazer isso. Tinha aprendido como fazer muitos restos. A mãe também servira na cozinha de uma patroa muito antiga.
         Aí era quando o menino comia. Nos outros dias o menino recusava o pão-de-milho. Comia pouco e sem vontade. Ela não insistia. Tinha fome, mas não comia o pão-de-milho. Depois quando Francisco não estivesse resmungaria com fome.
         Fazer o quê? No mundo tudo tinha um patrão. A terra, as frutas que amadureciam, os homens como Francisco e as mulheres como ela tinham patroas como Dona Neném que tinha porcos, perus e galinhas que vinham pastar no monturo da casa dela.
         As galinhas. Na verdade as galinhas estavam sempre em perigo. As galinhas se embrenhavam no mato e se punham sob o risco das raposas. Bichos que saíam de dentro da mata para pegar as galinhas no terreiro de casa. Aarão deu ordem - Francisco uma armadilha pra raposa cair. Nenhuma raposa cai, e as galinhas continuaram sumindo do galinheiro e Dona Neném muito atenta ao fenômeno pedia a caça às raposas que lhe comiam as melhores galinhas.
         Ela, Maria, absolutamente não se preocupava com as raposas. Não tinha galinhas. Os pintos sempre na panela, adiantava-se a raposa. A fome exigia as suas galinhas. Então não criava galinhas. Dona Neném que era patroa tinha muitas galinhas. Poderia matar muitas fomes juntas com as aves gordas que pastavam fora do galinheiro lá dela.
         A mãe puxou um suspiro bem fundo, de dentro. Olhou o céu onde o azul não cabia e se derramava tranquilo dentro da tarde. O menino brincando com a cachorra não pensava agora que tinha fome, a menina catava torrões de terra na parede sem caliça não pensava nas galinhas. O bebê tinha dormido e ela estava cansada, não havia ninguém mais cansada do que ela e ela pensava nas galinhas e no menino e na menina e também no bebê quando acordasse.
         Estava desamparada diante do sol que ardia solenemente calcinando o vento que chegava em lufadas mornas no terreiro da casa. Nunca que ela descansaria do trabalho de ser a mãe. Para sempre presa àqueles seres que cresciam e a exigiam de manhã até a noite quando ela ainda não descansava pensado que no outro dia as coisas voltariam como tinham voltado no dia que acabava quando o menino cansado da fome dormia na rede.
         Levantou-se, em pé observava melhor as galinhas livres de Dona Neném. Sempre era um jeito do menino comer mais do pão-de-milho. Quando Francisco chegasse a casa encontraria o menino feliz porque não tinha fome. Francisco também comeria e recuperaria sua força de homem. E amanhã a patroa saberia que a raposa muito a espreita de dentro da mata veio no terreiro de casa, levando-lhe outra das suas melhores galinhas.
         Tomou um punhado de milho no saco, lançou às galinhas. Então elas viram o grão, correram ao grão. Louquinhas atraídas pelo milho espalhado no chão da cozinha. Arisca a branca não entrou, mas a vermelha não era tímida e transpôs a porta aberta para apanhar o milho no chão. O menino olhou o fato logo compreendendo tudo. Deu a volta na casa. Fechou a porta da cozinha atrás da galinha. 
         Antes que ela atordoada desse o alarma o bote claro da mãe na galinha. Dedos no pescoço da ave, não vá ela fazer escândalo. Galinha grita e se anuncia. A técnica perfeita da mãe. Galinha estrangulada. Últimos estertores da ave no chão da cozinha. As outras galinhas de Dona Neném pastando na borda da mata que começava atrás da casa. Nenhuma não sabe que a vermelha não voltará ao galinheiro.
         E os dois em silêncio, compreendendo misteriosamente tudo, o menino e a mãe, cúmplices no mesmo impenetrável segredo guardado com a chave dos outros que ficaram atrás. 




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