quinta-feira, 30 de janeiro de 2020

CAUIM - POESIAS




CAUIM.....................................................................................................................5

O homem que cai; Cascalhos; Poema; A música de Cego Oliveira; O poema; Barrela; Para o Zé; Stultifera navis; Poesia; Formas em exegese; Bandinha de pífanos; O nó do enforcado; Solilóquio; Poema estrutural; Bordado e Cerzura; O boi de canga; Almanaque; João Cabral de Melo Neto; Ideia Fixa; Joaseiro Revisited.




O HOMEM QUE CAI
Meus irmãos eu vos anuncio que caio e que morro,
Morro dessa morte inquieta,
Suspenso no vento
Mas com minhas duas asas quebradas.

Mãos vazias,
Não vos trago sementes,
Lancei-as na margem do caminho,
Caíram entre as sarças,
Calcinaram no meio das pedras,
Medraram esta flor ingênua.

E agora que estou morto
E caminho nesta manhã irreparável
Que começa dentro dos quintais,
Que amadurece nas frutas,
Que acorda no sono das crianças,
Meus pés resvalam e volto cair,
E caindo estou sozinho,
E sozinho estou insepulto,
Insepulto sou o repasto do verme
O verme que consome a vida
E traz a velhice galvânica,
Esta velhice que aos trinta e sete anos
Antegozo e gozo como um bêbado caído.

Se eu tivesse sonhos não os guardava,
Não traria a utopia no bolso da calça,
Não estaria no escuro de olhos abertos dentro da treva,
Espessa treva silenciosa,
Silenciosa e fria que me queima a retina.
E agora estou cego,
Os olhos parados presos na luz,
E erro na vasta claridade e caio outra vez,
Estou voando, estou caindo, resvalando para baixo,
A morte é o supremíssimo cansaso anunciado
pelo poeta nunca existido.

Caminho na rua sem mistério aparente
Entre meio dia e duas horas da tarde,
Olhos voltados para o chão
Onde me escondo e espero nascer a flor fatal e imune.
Caio ainda,
Mas não grito,
Não tenho medo,
Aprendi a cair e a morrer sem sustos,
Voo livre,
Calado e impávido pássaro adiado.


CASCALHOS
Entre as roseiras ela colhia espinhos,
Olhava sem curiosidade
E depois largava pelo caminho,
Nasciam desertos sob seus pés
E ela aceitava o silêncio na paisagem insone.

No rádio diziam o nome de Helena,
Mas a noite trazia as estrelas frias
E a lua que principiava no céu entre nuvens.
Helena era apenas um nome não escrito,
Era apenas uma sombra sob céu claro,
Era apenas o vento dentro da meia noite.

Então as pedras caíam das nuvens de Deus,
E cada homem jazia morto dentro do seu automóvel.
Os anjos vieram como pássaros queimando
E o enxofre do céu caldeou os sonhos,
Mas um outro anjo de asas enormes
soprou a luz que estava parada na treva.
Eu acordei,
A minha boca quente de palavras,
Minha voz esquecida,
Meu gesto parado.

Na minha mão direita os bulbos de um lírio.


         
POEMA
Teu corpo abria-se em corola
Para acolher minha língua bífida,
Para ser invadida por minha força
de homem e fera renhida.

Teu corpo era carne estuante
Para saciar minha sede lasciva,
Para aceitar minhas mãos em concha
sobre teus peitos de mulher vencida.

Teu corpo tinha o calor da flor imprópria
Para receber no cálix meu amor intumescido,
Para sucumbir à voragem de todos os beijos
com que beijei tua boca, teus seios, teu sexo.




A MÚSICA DE CEGO OLIVEIRA
A música é o braço, a mão.
A música é o barro, a lavra.
A música é a chuva, a terra molhada.
A música é a faca, o facão.
A música é a enxada, o leirão.
A música é a safra de cana, a usina.
A música é o trigo é o pão.
A música é o cobre, o vintém.
A música é a cachaça, é o prato de feijão.

Dentro da música tinha tudo:
Tinha a pedra, tinha o cante,
Água da chuva na biqueira.
Tinha o boi, tinha o arado,
E o sertão enluarado.
Dentro da música tinha tudo:
Tinha o alísio, tinha o poema,
E estação das chuvas em abril.
Dentro da música tinha tudo:
Tinha o sal, tinha o fumo,
E pedra de breu e querosene.

O descante era a música,
E a música era pedrenta, e era solúvel
Dentro da memória espessa.
A música estava fechada na rabeca, no arco,
Mas vinha do chão, diapasão do teu canto,
Glabra e visível na claridade imóvel.


       
 
O POEMA
O poema não fede,
O poema não cheira,
O poema é eunuco,
O poema semeia a messe,
O poema sodomiza,
O poema concebe.

Do poema vêm as palavras,
Do poema caem anjos do céu,
Do poema chove das nuvens,
Do poema nascem cabelos,
Do poema corre o rio,
Do poema ressuscita o morto.

No poema o amor morre,
No poema o amor vive,
No poema acaba o mundo,
No poema Deus escreve,
No poema o nada eterno,
No poema a matéria inerte.

O ovo no poema,
O punhal no poema,
O suicídio no poema,
O jornal no poema,
O bêbado no poema,
O escárnio no poema.

No poema tudo:
A guerra, um nome,
Teu nome, Laura, Marília,
Beatriz, Oriana, Rimbaud.


  
BARRELA
Ele tinha dois mil anos no tempo,
E eu não sabia nada de metafísica.
Chamo por vós, clamo por nós,
Seu gesto passava chamando.

Começava a cavalgada escrita,
O céu plúmbeo escurecia,
A música varria a terra,
E acabava-se o mundo.

Dentro da espiral vinham os santos,
Nos barcos iluminados os assassinos,
E eu não acreditava e morria,
Depois acordava no seio da terra,
Meus olhos abertos na morte eterna.


          
EPIGRAMA PARA O ZÉ
O Zé tange a guitarra
e ajunta bois
e ajunta pedras
e colhe flores
e calca os lírios.

O canto do Zé
sobe a montanha
desce a serra
segue pelo rio
abre a porteira
entra na cidade,
pega o trem,
bate o ponto,
almoça prego,
volta pra casa,
bebe a cachaça,
deita na cama
e dorme cansado.

O Zé é pegureiro
lá em Minas,
onde a vida é besta,
onde se lavra ouro,
atrás da montanha.

O Zé minera o cante,
lima o poema,
semeia nuvens,
Zé olha pra cima,
Hey Zé! Parado aí
Meu velho!
que cê tá fazendo Zé?
A vida, nós sabemos,
A vida não presta,
Mas existe a poesia,
No fundo da bateia,
Bilha Zé, é ouro de tolo,
É fruta madura,
É beijo de moça,
É língua no ouvido,
É o que sobra da vida,
Pedaço de nada,
Quinhão de tudo Zé.


STULTIFERA NAVIS
Esta coisa que sou
Esta coisa onde estou,
Meu corpo, minh’alma,
Miserável coisa,
Vontade de gritar,
Grito, grito, grito,
Mas eu não grito,
Oh não, não devia,
Porque tenho medo,
Miserável que sou,
Colho ventania,
Semeio borrasca,
Largo pelo deserto
punhados de sal.

E choro na lua cheia,
E desço da montanha,
Quebro minhas asas,
Vou levado no vento.

Mas nada vale voar,
Mas nada vale gritar,
A lua cheia como um balão
Transcendente no céu.
É a lua dos amantes,
É a lua dos bêbados,
É a nau dos loucos.
Vou com ela vogando,
Não sou amante,
Não sou trovador,
Louco de olhar macio,
Gravemente louco,
Animal feliz.

E entro no poço,
Com escafandro e tudo,
Opresso entre paredes,
Que é isto que vejo lá fora?
Não é Deus, eu juro!



POESIA
Meu amigo, os sonhos todos morreram,
Que é da utopia, que é da revolução?
É que ainda acreditamos nos santos,
É que ainda folheamos as páginas de um livro,
É que Deus ainda está nas igrejas,
Louco, feliz animal pregado na cruz.
Então sejamos convictos,
Atende meu gesto no horizonte,
Eu te chamo de dentro da tempestade,
Vem comigo e derrubemos o altar pagão,
Queimaremos a cruz e as cidades votivas,
Beberemos o vinho e o pão lançaremos na lama,
Ficaremos bêbados e xingaremos a virgem,
Diremos versos obscenos,
Cu, cloaca, vulva, fornicar, pai e mãe,
Depois cairemos de gozo na terra,
O amor intumescido fechado em nossa mão.





FORMAS EM EXEGESE
Aquela mulher que passava na rua sob o guarda-sol amarelo.
Olhavas para o céu iluminado de azul; quando cegaste;
havia um cão na esquina; um automóvel; uma janela; uma flor no                                                                                                     [asfalto
havia também um jardim público e um ipê em setembro. O homem
parado na porta da confeitaria era triste e calado.

Poderia renunciar ao amor, à metafísica, à esperança, e suicidar-me
                                                                                            [ na rua
poderia comprar jornal com notícia da minha morte, olhar a lua visível                                                                                                                [ao meio dia,
fornicar com Marcel, ir com os anjos de Deus castigar Gomorra.
Muitas escolhas; nenhum fruto maduro...
Caminho pela calçada mãos guardadas no bolso da calça.

O dia, estúpido e universal rodando suas engrenagens.



BANDINHA DE PÍFANOS
Ouvi a toada
No claro do vento,
Ouvi a toada
No raio da lua.
Frautas,
Tíbias,
Aulos,
Avenas.
Rodopio,
Corrupio,
Faca, facão,
Macaco caxingó.

Ruda música,
Defolhando em dó.





O NÓ DO ENFORCADO
Agora que eu morri e o relógio está parado,
Não temos mais compromisso e a vida enfim está perdida.
Podes casar e viajar, ouvir um blues, jogar-se da ponte,
Nada é mais importante que nossos corpos apodrecendo,
Nossos sexos secando e nossas mãos envelhecendo.
Ouvi que me chamavam, mas não era o amor,
Tinha um nome escrito,
Que nome era?
Estava embaixo e meus dedos não tocavam,
Então não pude colher esta flor.
Quando voltei os homens tinham naufragado
Ninguém compreendeu que era setembro
Que o sol amanhecia diante da aurora.
Eu estava morto
E olhei a rua sem curiosidade,
Não sei que figura faço,
Mas não tenho nenhum rancor,
Cumpro minha verdade envilecida, e basta!




SOLILÓQUIO
Não queria fazer um poema que fosse triste,
Principalmente não queria falar de mim,
Mas Carlos, este que sou e que sinto em mim dentro,
Este que fala-me e diz-me – não és de Minas
E podes enfim acreditar no amor,
Podes acreditar nos homens,
Até crer em Deus se quiseres,
Porque tu és Carlos, incontestável isto,
Insiste.
Mas o outro Carlos que sabia fazer poemas e que era triste,
Que guardou a pedra no bolso e seguiu a vida até 1987
Este Carlos que convoco em meu nome,
Obsedante,
Impróprio,
Impudico,
Não o recuso,
Está parado dentro da mim.



POEMA ESTRUTURAL
Veio o primeiro homem e disse:
─ Eu amo a guerra e creio em Deus,
Então veio a primeira mulher e consentiu:
─ Eu preparo o teu jantar e cuido dos teus filhos.
E esse foi o primeiro e o sexto dia da criação.
Depois não houve mais descanso e todo mundo teve que trabalhar.

Veio o santo chagado,
Ensinava a multiplicar o pão e os peixes,
Mas houve medo na multidão
Porque era só estender as mãos
                                    [e tomar.
Penduraram o pelotiqueiro na cruz
E voltaram a pescar.

Muito tempo depois apareceu um homem que fazia discursos e acreditava nos livros onde ele interpretava os sinais e este homem fez uma revolução, mas a revolução caiu em desuso e ninguém acreditou mais nos livros e nos homens e as pedras, as cadeiras, as galinhas, os automóveis, continuaram existindo.




BORDADO E CERZURA
Pano ordinário,
Alinhavos,
Plic plic
Segue segue,
Overloque.

Era uma vez uma mulher que costurava calças de homem e era virgem
                                                                                              [aos 50 anos,
Gostava de fumar cigarros Del Prado,
Gostava de beber licor vermelho,
E também conhecia o amor na ponta dos dedos.


                 
O BOI DE CANGA
A lua vai nascer e iluminar o viaduto onde a mulher que olha atrás da treva está caminhando para casa para alimentar seus filhos; ela não tem torre de leite, mas trabalha na casa rica e se cansa. É uma preta, eu vejo. Há quantos séculos as pretas como eu são amas-de-leite, lavadeiras, quitandeiras e concubinas que servem para foder? A memória disto está dentro de mim – meu sangue, meu povo, minha revolta. Eu poderia gritar, mas eu não grito, tenho os dentes cerrados e a boca enxuta. Estou calado e meus irmãos sofrem desde uma aurora a outra aurora. Alguém colhe girassóis no jardim público ou compra sonhos açucarados na confeitaria em frente, olho-o com a lucidez da minha consciência livre. É boca da noite, a lua vai nascer, pressinto. E esta liberdade meu deus? Estas duas mãos quentes? Pensei que fosse febre, pensei que fosse abril. Quantos homens nesta hora não estarão voltando para casa e pensando nas suas mulheres cansadas? Eu que sei disto? Volvo o olhar para o viaduto, meu Deus ela pulou! E a lua começava no céu, exata e fixa.



ALMANAQUE
(Variações sobre piada de Oswald de Andrade)

Na ilha de Cipango o sol nasce primeiro
E a lua nasce depois.
Lá tem um rei que também é imperador
E gosta de ouro,
Mas não deixa ninguém roubar este ouro
Para não andar a mendigar como nestes Reinos.



JOÃO CABRAL DE MELO NETO
Esquadro e prumo,
Paisagem e rio,
Poesia e Marianne Moore
Vida e faca
Cassaco e Sevilha,
Recife e lama,
Pedra e canavial,
Morte e leirão,
Mulher e usina
Capibaribe e não-Nordeste.
Tuas mesmas vinte palavras
E Graciliano Ramos
Verso antipoético.



IDEIA FIXA
Agora tenho medo meu pai,
Tua presença não física, mas palpável
Está presa dentro de mim,
Que fazer para libertá-lo?

Eu vivo em ti porque me concebeste
naquele dia fatal,
Teu sangue queima dentro de mim
Meu pai, tenho medo.

Quando estás, quando não estás,
Quando vens, quando não vens,
Quando sonho, quando não sonho,
Tenho medo e é de ti, meu pai.

Onde teu beijo me bubuiando,
Onde tua mão me pegando na mão,
Onde teu colo afável...
Onde tu meu pai?
Onde tu meu pai?
Onde tu meu pai?



JOASEIRO REVISITED
Pela ladeira em fora onde nos espera o santo,
Pelas igrejas, batistérios, beatérios, passos da paixão,
Este santo não tinha chagas, não gozou lepra,
Teimou de ser santo e foi assim que o chamaram quem o sucedeu.
Agora o santo jaz sob a lájea da igreja
E torna mais rica a cidade que ele encontrou de barro.

Mas na tarde que voa presa no calor de setembro
Não vejo mais o barro,
Tudo é tão claro na tarde que arde,
Comércio, andores de santo, comércio, cantos de megafone, comércio, romarias, batedores de carteira, erisipela, mulheres sem fama, elefantíases, beatos, mãos que pedem, mãos que cedem, mãos que negam, mãos que oferecem, mãos que recolhem, velas, procissões devotas, missas, missas, missas e rezas recolhidas, joelhos penitentes.

Esta negra retinta
Esposa mística de Deus,
Mulher chagada,
Gozosa, extática,
Derramou sangue de Cristo,
Segunda vez.
Lavou nossos pecados,
nossos desejos em chama,
nossas luxúrias, nossa lama.
Esta negra retinta
Não teve carro de glória,
Teve algoz e carrasco,
Fez fama de santa,
E morreu sem consolação.

Podemos subir ruas, descer ruas, becos, ladeiras, baixas, pontes,         
                                                                              [largos, viagem,
São João e o cordeirinho, São Francisco chagado, São Miguel e o e diabo num escárnio, São José com um feixe de lírios, a Mãe de Deus com o coração trespassado de urzes e espadas,
O Cristo crucificado para sempre pendente e o Cristo morto, mas muito mais morto que pensas deitado numa cama de pedra.

Bimbalhai sinos da matriz,
Bimbalhai sinos de bronze
Viemos de muito longe,
Alagoas, Pernambuco,
Minas Gerais e Goiás,
Viemos pelo santo,
Viemos pelo perdão.
Bimbalhai sino da igreja,
Bimbalhai sino da torre,
Cresce a tarde e a noite chega,
Vamos que ainda não é o juízo,
Temos cachaça e chouriço,
Temos banda de música
E enquanto não leem o grande
livro é tempo pra redenção.

Era uma vez o barro, era uma vez o pó, e do pó se fez o homem,
E o homem não tinha vontade de ser pó a vida inteira,
E o homem construiu a cidade e a cidade engoliu o homem.




FIM DE “CAUIM”.


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