CAUIM.....................................................................................................................5
O homem que cai; Cascalhos; Poema; A música de Cego Oliveira; O poema;
Barrela; Para o Zé; Stultifera navis; Poesia; Formas em exegese; Bandinha de
pífanos; O nó do enforcado; Solilóquio; Poema estrutural; Bordado e Cerzura; O
boi de canga; Almanaque; João Cabral de Melo Neto; Ideia Fixa; Joaseiro
Revisited.
O HOMEM QUE CAI
Meus irmãos eu vos anuncio que caio e que morro,
Morro dessa morte inquieta,
Suspenso no vento
Mas com minhas duas asas quebradas.
Mãos vazias,
Não vos trago sementes,
Lancei-as na margem do caminho,
Caíram entre as sarças,
Calcinaram no meio das pedras,
Medraram esta flor ingênua.
E agora que estou morto
E caminho nesta manhã irreparável
Que começa dentro dos quintais,
Que amadurece nas frutas,
Que acorda no sono das crianças,
Meus pés resvalam e volto cair,
E caindo estou sozinho,
E sozinho estou insepulto,
Insepulto sou o repasto do verme
O verme que consome a vida
E traz a velhice galvânica,
Esta velhice que aos trinta e sete anos
Antegozo e gozo como um bêbado caído.
Se eu tivesse sonhos não os guardava,
Não traria a utopia no bolso da calça,
Não estaria no escuro de olhos abertos dentro da treva,
Espessa treva silenciosa,
Silenciosa e fria que me queima a retina.
E agora estou cego,
Os olhos parados presos na luz,
E erro na vasta claridade e caio outra vez,
Estou voando, estou caindo, resvalando para baixo,
A morte é o supremíssimo cansaso anunciado
pelo poeta nunca existido.
Caminho na rua sem mistério aparente
Entre meio dia e duas horas da tarde,
Olhos voltados para o chão
Onde me escondo e espero nascer a flor fatal e imune.
Caio ainda,
Mas não grito,
Não tenho medo,
Aprendi a cair e a morrer sem sustos,
Voo livre,
Calado e impávido pássaro adiado.
CASCALHOS
Entre as roseiras ela colhia espinhos,
Olhava sem curiosidade
E depois largava pelo caminho,
Nasciam desertos sob seus pés
E ela aceitava o silêncio na paisagem insone.
No rádio diziam o nome de Helena,
Mas a noite trazia as estrelas frias
E a lua que principiava no céu entre nuvens.
Helena era apenas um nome não escrito,
Era apenas uma sombra sob céu claro,
Era apenas o vento dentro da meia noite.
Então as pedras caíam das nuvens de Deus,
E cada homem jazia morto dentro do seu automóvel.
Os anjos vieram como pássaros queimando
E o enxofre do céu caldeou os sonhos,
Mas um outro anjo de asas enormes
soprou a luz que estava parada na treva.
Eu acordei,
A minha boca quente de palavras,
Minha voz esquecida,
Meu gesto parado.
Na minha mão direita os bulbos de um lírio.
POEMA
Teu corpo abria-se em
corola
Para acolher minha
língua bífida,
Para ser invadida por
minha força
de homem e fera
renhida.
Teu corpo era carne
estuante
Para saciar minha sede
lasciva,
Para aceitar minhas
mãos em concha
sobre teus peitos de
mulher vencida.
Teu corpo tinha o
calor da flor imprópria
Para receber no cálix
meu amor intumescido,
Para sucumbir à
voragem de todos os beijos
com que beijei tua
boca, teus seios, teu sexo.
A MÚSICA DE CEGO OLIVEIRA
A música é o braço, a
mão.
A música é o barro, a
lavra.
A música é a chuva, a
terra molhada.
A música é a faca, o
facão.
A música é a enxada, o
leirão.
A música é a safra de
cana, a usina.
A música é o trigo é o
pão.
A música é o cobre, o
vintém.
A música é a cachaça,
é o prato de feijão.
Dentro da música tinha
tudo:
Tinha a pedra, tinha o
cante,
Água da chuva na
biqueira.
Tinha o boi, tinha o
arado,
E o sertão enluarado.
Dentro da música tinha
tudo:
Tinha o alísio, tinha
o poema,
E estação das chuvas
em abril.
Dentro da música tinha
tudo:
Tinha o sal, tinha o
fumo,
E pedra de breu e
querosene.
O descante era a
música,
E a música era
pedrenta, e era solúvel
Dentro da memória
espessa.
A música estava
fechada na rabeca, no arco,
Mas vinha do chão,
diapasão do teu canto,
Glabra e visível na
claridade imóvel.
O POEMA
O poema não fede,
O poema não cheira,
O poema é eunuco,
O poema semeia a
messe,
O poema sodomiza,
O poema concebe.
Do poema vêm as
palavras,
Do poema caem anjos do
céu,
Do poema chove das
nuvens,
Do poema nascem
cabelos,
Do poema corre o rio,
Do poema ressuscita o
morto.
No poema o amor morre,
No poema o amor vive,
No poema acaba o
mundo,
No poema Deus escreve,
No poema o nada
eterno,
No poema a matéria
inerte.
O ovo no poema,
O punhal no poema,
O suicídio no poema,
O jornal no poema,
O bêbado no poema,
O escárnio no poema.
No poema tudo:
A guerra, um nome,
Teu nome, Laura,
Marília,
Beatriz, Oriana,
Rimbaud.
BARRELA
Ele tinha dois mil
anos no tempo,
E eu não sabia nada de
metafísica.
Chamo por vós, clamo
por nós,
Seu gesto passava
chamando.
Começava a cavalgada
escrita,
O céu plúmbeo
escurecia,
A música varria a
terra,
E acabava-se o mundo.
Dentro da espiral
vinham os santos,
Nos barcos iluminados
os assassinos,
E eu não acreditava e
morria,
Depois acordava no
seio da terra,
Meus olhos abertos na
morte eterna.
EPIGRAMA PARA O ZÉ
O Zé tange a guitarra
e ajunta bois
e ajunta pedras
e colhe flores
e calca os lírios.
O canto do Zé
sobe a montanha
desce a serra
segue pelo rio
abre a porteira
entra na cidade,
pega o trem,
bate o ponto,
almoça prego,
volta pra casa,
bebe a cachaça,
deita na cama
e dorme cansado.
O Zé é pegureiro
lá em Minas,
onde a vida é besta,
onde se lavra ouro,
atrás da montanha.
O Zé minera o cante,
lima o poema,
semeia nuvens,
Zé olha pra cima,
Hey Zé! Parado aí
Meu velho!
que cê tá fazendo
Zé?
A vida, nós sabemos,
A vida não presta,
Mas existe a poesia,
No fundo da bateia,
Bilha Zé, é ouro de
tolo,
É fruta madura,
É beijo de moça,
É língua no ouvido,
É o que sobra da vida,
Pedaço de nada,
Quinhão de tudo Zé.
STULTIFERA NAVIS
Esta coisa que sou
Esta coisa onde estou,
Meu corpo, minh’alma,
Miserável coisa,
Vontade de gritar,
Grito, grito, grito,
Mas eu não grito,
Oh não, não devia,
Porque tenho medo,
Miserável que sou,
Colho ventania,
Semeio borrasca,
Largo pelo deserto
punhados de sal.
E choro na lua cheia,
E desço da montanha,
Quebro minhas asas,
Vou levado no vento.
Mas nada vale voar,
Mas nada vale gritar,
A lua cheia como um
balão
Transcendente no céu.
É a lua dos amantes,
É a lua dos bêbados,
É a nau dos loucos.
Vou com ela vogando,
Não sou amante,
Não sou trovador,
Louco de olhar macio,
Gravemente louco,
Animal feliz.
E entro no poço,
Com escafandro e tudo,
Opresso entre paredes,
Que é isto que vejo lá
fora?
Não é Deus, eu juro!
POESIA
Meu amigo, os sonhos
todos morreram,
Que é da utopia, que é
da revolução?
É que ainda
acreditamos nos santos,
É que ainda folheamos
as páginas de um livro,
É que Deus ainda está
nas igrejas,
Louco, feliz animal
pregado na cruz.
Então sejamos
convictos,
Atende meu gesto no
horizonte,
Eu te chamo de dentro
da tempestade,
Vem comigo e
derrubemos o altar pagão,
Queimaremos a cruz e
as cidades votivas,
Beberemos o vinho e o
pão lançaremos na lama,
Ficaremos bêbados e
xingaremos a virgem,
Diremos versos
obscenos,
Cu, cloaca, vulva,
fornicar, pai e mãe,
Depois cairemos de
gozo na terra,
O amor intumescido
fechado em nossa mão.
FORMAS EM EXEGESE
Aquela mulher que
passava na rua sob o guarda-sol amarelo.
Olhavas para o céu
iluminado de azul; quando cegaste;
havia um cão na
esquina; um automóvel; uma janela; uma flor no [asfalto
havia também um jardim
público e um ipê em setembro. O homem
parado na porta da
confeitaria era triste e calado.
Poderia renunciar ao
amor, à metafísica, à esperança, e suicidar-me
[ na rua
poderia comprar jornal
com notícia da minha morte, olhar a lua visível [ao meio dia,
fornicar com Marcel,
ir com os anjos de Deus castigar Gomorra.
Muitas escolhas;
nenhum fruto maduro...
Caminho pela calçada
mãos guardadas no bolso da calça.
O dia, estúpido e
universal rodando suas engrenagens.
BANDINHA DE PÍFANOS
Ouvi a toada
No claro do vento,
Ouvi a toada
No raio da lua.
Frautas,
Tíbias,
Aulos,
Avenas.
Rodopio,
Corrupio,
Faca, facão,
Macaco caxingó.
Ruda música,
Defolhando em dó.
O NÓ DO ENFORCADO
Agora que eu morri e o
relógio está parado,
Não temos mais
compromisso e a vida enfim está perdida.
Podes casar e viajar,
ouvir um blues, jogar-se da ponte,
Nada é mais importante
que nossos corpos apodrecendo,
Nossos sexos secando e
nossas mãos envelhecendo.
Ouvi que me chamavam,
mas não era o amor,
Tinha um nome escrito,
Que nome era?
Estava embaixo e meus
dedos não tocavam,
Então não pude colher
esta flor.
Quando voltei os
homens tinham naufragado
Ninguém compreendeu
que era setembro
Que o sol amanhecia
diante da aurora.
Eu estava morto
E olhei a rua sem
curiosidade,
Não sei que figura
faço,
Mas não tenho nenhum
rancor,
Cumpro minha verdade
envilecida, e basta!
SOLILÓQUIO
Não queria fazer um
poema que fosse triste,
Principalmente não
queria falar de mim,
Mas Carlos, este que
sou e que sinto em mim dentro,
Este que fala-me e
diz-me – não és de Minas
E podes enfim
acreditar no amor,
Podes acreditar nos
homens,
Até crer em Deus se
quiseres,
Porque tu és Carlos,
incontestável isto,
Insiste.
Mas o outro Carlos que
sabia fazer poemas e que era triste,
Que guardou a pedra no
bolso e seguiu a vida até 1987
Este Carlos que
convoco em meu nome,
Obsedante,
Impróprio,
Impudico,
Não o recuso,
Está parado dentro da
mim.
POEMA ESTRUTURAL
Veio o primeiro homem
e disse:
─ Eu amo a guerra e
creio em Deus,
Então veio a primeira
mulher e consentiu:
─ Eu preparo o teu
jantar e cuido dos teus filhos.
E esse foi o primeiro
e o sexto dia da criação.
Depois não houve mais
descanso e todo mundo teve que trabalhar.
Veio o santo chagado,
Ensinava a multiplicar o pão e os peixes,
Mas houve medo na multidão
Porque era só estender as mãos
[e tomar.
Penduraram o pelotiqueiro na cruz
E voltaram a pescar.
Muito tempo depois
apareceu um homem que fazia discursos e acreditava nos livros onde ele
interpretava os sinais e este homem fez uma revolução, mas a revolução caiu em
desuso e ninguém acreditou mais nos livros e nos homens e as pedras, as
cadeiras, as galinhas, os automóveis, continuaram existindo.
BORDADO E CERZURA
Pano ordinário,
Alinhavos,
Plic plic
Segue segue,
Overloque.
Era uma vez uma mulher
que costurava calças de homem e era virgem
[aos 50 anos,
Gostava de fumar
cigarros Del Prado,
Gostava de beber licor
vermelho,
E também conhecia o
amor na ponta dos dedos.
O BOI DE CANGA
A
lua vai nascer e iluminar o viaduto onde a mulher que olha atrás da treva está
caminhando para casa para alimentar seus filhos; ela não tem torre de leite,
mas trabalha na casa rica e se cansa. É uma preta, eu vejo. Há quantos séculos
as pretas como eu são amas-de-leite, lavadeiras, quitandeiras e concubinas que
servem para foder? A memória disto está dentro de mim – meu sangue, meu povo,
minha revolta. Eu poderia gritar, mas eu não grito, tenho os dentes cerrados e
a boca enxuta. Estou calado e meus irmãos sofrem desde uma aurora a outra
aurora. Alguém colhe girassóis no jardim público ou compra sonhos açucarados na
confeitaria em frente, olho-o com a lucidez da minha consciência livre. É boca
da noite, a lua vai nascer, pressinto. E esta liberdade meu deus? Estas duas
mãos quentes? Pensei que fosse febre, pensei que fosse abril. Quantos homens
nesta hora não estarão voltando para casa e pensando nas suas mulheres
cansadas? Eu que sei disto? Volvo o olhar para o viaduto, meu Deus ela pulou! E
a lua começava no céu, exata e fixa.
ALMANAQUE
(Variações sobre
piada de Oswald de Andrade)
Na ilha de Cipango o
sol nasce primeiro
E a lua nasce depois.
Lá tem um rei que
também é imperador
E gosta de ouro,
Mas não deixa ninguém
roubar este ouro
Para não andar a
mendigar como nestes Reinos.
JOÃO CABRAL DE MELO
NETO
Esquadro e prumo,
Paisagem e rio,
Poesia e Marianne
Moore
Vida e faca
Cassaco e Sevilha,
Recife e lama,
Pedra e canavial,
Morte e leirão,
Mulher e usina
Capibaribe e
não-Nordeste.
Tuas mesmas vinte
palavras
E Graciliano Ramos
Verso antipoético.
IDEIA FIXA
Agora tenho medo meu
pai,
Tua presença não
física, mas palpável
Está presa dentro de
mim,
Que fazer para
libertá-lo?
Eu vivo em ti porque
me concebeste
naquele dia fatal,
Teu sangue queima
dentro de mim
Meu pai, tenho medo.
Quando estás, quando
não estás,
Quando vens, quando
não vens,
Quando sonho, quando
não sonho,
Tenho medo e é de ti,
meu pai.
Onde teu beijo me
bubuiando,
Onde tua mão me
pegando na mão,
Onde teu colo
afável...
Onde tu meu pai?
Onde tu meu pai?
Onde tu meu pai?
JOASEIRO REVISITED
Pela ladeira em fora
onde nos espera o santo,
Pelas igrejas,
batistérios, beatérios, passos da paixão,
Este santo não tinha
chagas, não gozou lepra,
Teimou de ser santo e
foi assim que o chamaram quem o sucedeu.
Agora o santo jaz sob
a lájea da igreja
E torna mais rica a
cidade que ele encontrou de barro.
Mas na tarde que voa
presa no calor de setembro
Não vejo mais o barro,
Tudo é tão claro na
tarde que arde,
Comércio, andores de
santo, comércio, cantos de megafone, comércio, romarias, batedores de carteira,
erisipela, mulheres sem fama, elefantíases, beatos, mãos que pedem, mãos que
cedem, mãos que negam, mãos que oferecem, mãos que recolhem, velas, procissões
devotas, missas, missas, missas e rezas recolhidas, joelhos penitentes.
Esta negra retinta
Esposa mística de Deus,
Mulher chagada,
Gozosa, extática,
Derramou sangue de Cristo,
Segunda vez.
Lavou nossos pecados,
nossos desejos em chama,
nossas luxúrias, nossa lama.
Esta negra retinta
Não teve carro de glória,
Teve algoz e carrasco,
Fez fama de santa,
E morreu sem consolação.
Podemos subir ruas,
descer ruas, becos, ladeiras, baixas, pontes,
[largos, viagem,
São João e o
cordeirinho, São Francisco chagado, São Miguel e o e diabo num escárnio, São
José com um feixe de lírios, a Mãe de Deus com o coração trespassado de urzes e
espadas,
O Cristo crucificado
para sempre pendente e o Cristo morto, mas muito mais morto que pensas deitado
numa cama de pedra.
Bimbalhai sinos da matriz,
Bimbalhai sinos de bronze
Viemos de muito longe,
Alagoas, Pernambuco,
Minas Gerais e Goiás,
Viemos pelo santo,
Viemos pelo perdão.
Bimbalhai sino da igreja,
Bimbalhai sino da torre,
Cresce a tarde e a noite chega,
Vamos que ainda não é o juízo,
Temos cachaça e chouriço,
Temos banda de música
E enquanto não leem o grande
livro é tempo pra redenção.
Era uma vez o barro,
era uma vez o pó, e do pó se fez o homem,
E o homem não tinha
vontade de ser pó a vida inteira,
E o homem construiu a
cidade e a cidade engoliu o homem.
FIM DE “CAUIM”.
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