Duas irmãs
Muitos
anos depois de conhecer Isabel no baile do clube Francisco sabia que se casaria
com ela. Ela tinha um pai e tinha uma mãe. Moravam na casa que ficava no começo
da rua. A casa era caiada e Ageu retocava todo ano depois que acabava a estação
das chuvas em abril. Francisco caminhava na frente da casa, mas como ainda não
tinha chegado o tempo de casar com Isabel não pensava nisto e ela era apenas
uma menina pondo os lençóis imaculados ao vento e ao sol.
Isabel
era a filha devota. Tinha mãe, mas a mãe já era velha e cansada então era ela
que servia na casa. A mãe na cozinha, Isabel no tanque, no quarador, a roupa no
varal. Isabel no ferro de passar, nos quartos pondo lençóis limpos nas camas. A
casa também sempre limpa, não fosse ela deixar a poeira sobre os móveis, os
ninhos de aranha no teto, o limo na cozinha e as casas de besouro no canto da
parede.
Mas
havia nela uma voracidade qualquer. A casa limpa não a sustinha e sobretudo não
era a única verdade que ela pressupunha dentro dela. Quando tornou-se mulher
ela soube que todo o sangue derramado era pouco para redimi-la, ela precisava
de mais transfiguração. Assim Isabel ainda limpava a casa com obstinação e
crença, mas também se tornou má.
Ela
sentia que o mal era a semente que esperava crescer como uma flor impura dentro
dela. Não amava sua imagem no espelho, mas via-se nua e impenetrável durante o
banho. Isabel gostava de verter-se prazer enquanto a água estava imóvel e
cálida dentro da tina do banho. Mexia na água com as costas das mãos, mas
dentro dela estouravam bolhas transparentes de prazer e vergonha.
E
tinha a irmã que era Maria. Mas irmã ainda não era totalmente Maria. Isabel
chamava-a de outro modo. Era Mariazinha. Uma criança e ela que era uma mulher
quase. Foi o último esforço da mãe. Sete filhos perdidos e duas meninas que
viveram. O pai era Ageu, na farmácia sozinho. Na velhice ninguém trabalharia
por ele.
Voltava
a casa e comia. Comia o almoço dormia a sesta, comia a janta e saía para o
bacará. Era o pai e a família estava completa com a mãe, com Mariazinha
crescendo como uma menina e Isabel fazendo-se mulher.
Assim
rodou o tempo e ninguém morreu. Até que Isabel já era uma mulher e Francisco
então veio, porque já era o tempo de ele vir para colher Isabel. Tudo começou
depois da sesta quando o pai entrou na farmácia e eram três horas da tarde.
Fazia calor e o sol calcinava a claridade que emergia de dentro do dia.
Francisco não veio de súbito, apareceu sempre como um cão na porta da farmácia.
Veio e soube que podia entrar e entrou.
Ageu
só compreendeu quando Francisco não estava mais na porta da farmácia, compreendeu
tudo quando estremunhado da sesta o viu diante da casa e era Isabel por trás da
janela. Podia opor-se porque era o pai e tinha aquela filha, mas não pensou
nisto tão profundamente que pudesse decidir logo e olhando a sombra cerrada do
jasmineiro aceitou que não faria mesmo nada.
Como
não houve oposição aconteceu de Francisco casar-se com Isabel. A mãe de Isabel
já estava muito mais velha que antes, mas o casamento da filha era um dogma.
Mariazinha que se tornara Maria agora seria a filha devota. E assim foi.
Principalmente porque Ageu não sobreviveu e morreu quase um ano depois do
casamento. A farmácia agora para Francisco.
Ageu
morreu e não conheceu o filho de Isabel porque ele não nasceu enquanto Ageu
viveu. E o filho que Francisco fez em Isabel veio mais de um ano depois do
casamento quando Ageu já tinha morrido e Lia a mãe de Isabel tinha sofrido um
derrame que a pôs entrevada na cama. Mariazinha não descuidou daquela que era a
sua mãe, não podia abandonar a pobre viúva entrevada para sempre. Isabel não
pode muito, casada tinha Francisco em casa. Todo o dia na farmácia, depois em
casa precisava cuidados.
Francisco
era um homem e comia. A casa limpa, a roupa lavada, os vasos de gerânios
molhados, Isabel precisava viver a própria vida. Mas também ainda tinha mãe.
Então ajudava Maria como podia. Quando o primeiro filho nasceu Isabel não pode
mais nos primeiros tempos. Então Maria que podia cuidava da mãe e não
descuidava de Isabel. Todo o resguardo de Isabel ao seu lado.
A
mãe era prioridade, uma pobre velha entrevada. Não podia nada. Esquecera a fala
e engrolava umas palavras dentro da boca. A língua para sempre parada. Mas
Isabel era sua irmã e não podia impedir-se. Francisco comia em casa e exigia
cuidados. Isabel nunca tinha sido uma mãe e precisava ajuda. Mas a menina não
mamava. O leite de Isabel empedrado. Sofria a menina, sofria a mãe que não
podia alimentar a pobrezinha. Maria cuidava. A roupa de Francisco lavada. A
casa de Isabel limpa. O banho morno da menina. A ablução de Isabel.
Na
farmácia Francisco trabalhava. Precisou de estoque novo. Agora prosperava. Ageu
não plantava para colher amanhã. Cem anos fazendo botica. Agora era uma
farmácia. A família crescia. Primeiro Isabel e agora a menina. Era natural que
a família crescesse e ele tivesse que trabalhar para sustentar a família que
era dele. Sempre pensara que um dia chegaria a sua vez. Ele era um homem e
tinha naturalmente as qualidades de um homem.
O
pai que ele não conhecera também tinha sido um homem. Onde o pai neste mundo? A
mãe que ele sabia quem era, mas não podia dizer com certeza que a conhecia. Era
a mãe que ele tinha perdido muito cedo. A tia que o tinha criado e que o fizera
chegar até aqui. A tia que não tinha filhos nem tivera tempo de ter marido
também. Para sempre no céu porque foi fiel a Deus e nunca abandonou Padre
Cristóvão nem enquanto ele dormia.
Tinha
graça aquela coisa da tia e do Padre Cristóvão. Até na mesma cama um dia na
hora da sesta. Mas o que ele tinha visto era apenas uma sombra na sua memória.
O resto era a tia, o banho na tina que a tia lhe dava, o caldo do Padre
Cristóvão que ela fazia e ele também tomava. Depois ele chegou até aqui. Também
já sabia que chegaria até aqui. Veio com a tia e o Padre Cristóvão. Mas agora
não havia mais a tia e o Padre Cristóvão foi a bispo. Longe muito longe tudo
isto. Mariazinha é quem faz a comida agora. A menina mais fortinha, Isabel já
tinha leite pra ela. O problema é a entrevada deitada na cama. Vai morrer, mas
não agora. Se ela morre Mariazinha sozinha na casa. Isabel vai querer cuidar.
Muito unidas ambas.
De
noite Francisco em casa, Mariazinha servia a janta. Vestidinho na linha do
joelho. Pronta para ir pra casa, a mãe entrevada, dispensar a cuidadora. Agora
era a sua vez. Enquanto tivesse mãe. Pobre Mariazinha, ajudava nas duas casas.
Sem tempo para si mesmo. Despedia-se de Isabel. Amanhã volto. Só fazer a comidinha
da mãe. Estaria aqui. Francisco sabia então. Tinha que dormir, a farmácia
amanhã. Trabalho. Trabalho. Trabalho.
Quando
Isabel não precisou mais de Maria ela não veio mais a casa com tanta
frequência. Francisco não entendeu logo a ausência, depois compreendeu. Voltou
a comer o almoço de Isabel e a tomar o café que aquela que era a sua mulher
fazia com suas mãos. Lia que era a sogra mais doente que antes. Agora Maria
quem precisava de ajuda. Isabel fazia o que podia e para poder mais transferiu
o almoço de Francisco para a casa da mãe.
Voltaram
os dias de Mariazinha na cozinha. Voltaram os dias do ramo de gerânio nos
cabelos de Maria. A velha não terminava de se acabar e todo dia ainda existia.
Francisco via. Um caco de velha entrevada que insistia. Um dia não amanheceria
e como foi isto que aconteceu quando ele ouviu Isabel dizer que a mãe morrera
no sono achou muito natural que assim fosse e não havia mesmo surpresa que uma
velha entrevada acabasse um dia.
Morreu
e não durou para sempre. Isto aconteceu e depois que tudo isto se deu Isabel
entendeu que Francisco tinha feito outro filho nela. Não surpreendeu-se com
isto porque Francisco era um homem e ela era a mulher. Quando a outra menina
nasceu, Maria que não tinha mais a mãe para cuidar dedicou-se inteira à Isabel.
As duas tinham já experiência e dessa vez fizeram tudo com tranquilidade
inaudita.
Isabel
atravessou o resguardo sem sustos. A menina mamou o leite que jorrava dos
peitos turinos da mãe. Maria foi a dona da casa para Isabel criar a filha que a
solicitava famélica. Em casa Maria quase não ia. Fechada muitos dias. Instalada
na casa de Isabel. Era o braço direito e a perna esquerda da irmã. Francisco
propôs. Vende a casa. Ela era mulher e desse negócio não sabia exatamente. Não
falou nada e esperou.
Francisco
não esperou tanto. Propôs e liquidou logo. Maria era o que ele via. Não era
mesmo mais Mariazinha, consumação visível, tinha-se feito o que se via, no
fundo do quintal era Maria que punha a roupa no varal. Depois Francisco não viu
mais nada porque o sol iluminava a terra inteira, mas seus olhos não viam mais
que Maria, lascivo gerânio o queimando na modorra da sesta.
Nos
dias que se seguiram Francisco não se impediu de ceder à tumidez do desejo
estuante. E no calor silente da sesta da tarde vinha Maria e ele impunha-lhe
sua força de homem que a tornava mulher. Quando a casa foi vendida e Maria
instalada em frente, nessa outra com jardim de buganvílias, Isabel compreendeu
Francisco e não precisou perdoar Maria.
A
farmácia para as duas famílias. Francisco dormia com Isabel, mas a sesta da
tarde com Maria. O almoço na casa de Maria e a janta em frente na casa de
Isabel. As duas famílias felizes. Logo todo mundo sabia. Francisco era bígamo.
As duas mulheres eram as duas irmãs. Uma cuidava da outra e as duas cuidavam de
Francisco. Ele cultivava sua força de homem. Tomava o espesso caldo de Maria e
passava a noite com Isabel. A gemada de Isabel era a certeza da sesta gozosa
nos braços de Maria.
Quando
a família cresceu foi Isabel quem cuidou de Maria. Não havia dúvida, assim como
a irmã tinha cuidado dela agora que Francisco lhe tinha feito também um filho
precisava não descuidar de Maria. E foi assim que fez. Quando o menino de Maria
que era filho de Francisco nasceu Isabel retribuiu tantos anos de dedicação que
a irmã lhe tributara outrora.
E o
menino que nasceu era grande e forte. Estentor, não solicitava o leite de Maria,
exigia. Como era filho de Francisco cresceu ao longo dos meses e logo não era
mais um bebê que mamava porque tinha se tornado um menino que Maria trazia no
colo. A família agora eram seis e Francisco trabalhava muito, mas não deixava
de ir prosperando. Também não deixava de comer o almoço de Maria e a janta de
Isabel. E as meninas cresciam e o menino era forte. Ele ainda era um homem e não
podia deixar de consentir-se ao amor das duas mulheres.
Assim
quando soube que tinha feito mais um filho em Isabel não se surpreendeu porque
acreditava na sua força de homem e tinha prosperado tanto na farmácia que não
teria problemas em sustentar uma família grande. Mas o filho que ele tinha
feito em Isabel não quis vir e quando ele nasceu morto Francisco soube que era
um menino bonito e teve pena de enterrar o pobrezinho dentro da caixa. Maria o
impôs isto. Que Isabel não podia ver o mortinho tinha padecido como uma mártir,
mas não tivera sucesso e o menino viera morto pro mundo.
Francisco
soube o que era preciso e Maria cobriu de jasmins o menino que nasceu morto. Não
havia mais nada. Sepultou-o, ele era o pai. Muito tempo Maria na casa de Isabel.
Minuciosos cuidados era sua irmã afinal. Havia também Francisco, as meninas e a
casa ninguém não tinha culpa do que aconteceu com Isabel. Depois ela só tinha
uma irmã no mundo, não podia nunca não fazer o que ela fez naqueles muitos
meses enquanto Isabel se restabelecia.
Mas enfim
restabeleceu-se Isabel e quando isto se deu ela reconheceu o maravilhoso
esforço de Maria que já trazia mais um filho de Francisco crescendo dentro
dela. Então Maria era a sua irmã que serviu-a sem pejo, que não negaceou
ampará-la quando ela tinha precisado, quando Francisco não a tinha na cozinha
nem no tanque e nem as meninas não podiam ter a mãe que era ela. Maria tinha sido
a irmã caridosa, a esposa valorosa e a mãe extremosa de suas filhas.
Agora
era a sua vez. Isabel serviria Maria, sem glória. Serviria como uma irmã que
compreende a necessidade do amor fraterno. Não se impediria de ser útil em toda
necessidade da convalescença de Maria. Impôs-se a si uma promessa aos santos –
que Mariazinha tenha um parto bom e que a criança nasça coberta pela luz de
Belém. E como tudo aconteceu como ela queria que acontecesse Isabel ficou feliz
e o menino que nasceu recebeu um nome que a tia tinha prometido aos santos.
A família
era de Francisco e ele não sabia afirmar se Padre Cristóvão saberia que aquele
menino. A tia também nunca que poderia saber. Mas a tia era quem o banhava na
tina e ele gostava do contato dos dedos da tia que eram finos e encontravam
cada parte que ele tinha para limpar. Padre Cristóvão e a tia estiveram muitos
anos antes presos dentro dele, mas agora era Francisco que tinha Maria na sesta
e Isabel no sono da noite. O surpreendente de tudo isto era que o seu amor
repartido crescia dentro dele voraz e sem cansaço.
Então
quando ele fez mais um filho em Maria e nasceu a menina, Isabel que não tinha
tido mais nenhum filho depois do menino que nasceu morto instalou-se na casa da
irmã e a tratou com o desvelo natural com o qual não poderia deixar de tratar
aquela que ela amava sobretudo porque era sua irmã e tinha mais um filho de
Francisco. O sangue das suas filhas era o sangue de Francisco e o sangue dos
filhos de Maria que era também o seu era o de Francisco e das suas filhas.
Isabel compreendia isto e tranquilizava-se feliz quando olhava para trás.
Um
dia quando os filhos que Francisco fazia em Isabel e Maria não vieram mais eles
todos preparam-se para envelhecer. Mas como
não envelheceram logo foram vivendo através dos muitos anos que se foram
sucedendo. E enquanto sucediam-se todos esses anos Francisco prosperou mais na
farmácia e o amor cresceu entre eles como uma flor eterna aberta ao sol. Os filhos
também foram crescendo e apesar das bichas e da maleita ninguém ficou pelo
caminho.
Domingo
quando tinha padre na igreja a família não faltava para a missa. Isabel caminhava
na frente com Francisco e Maria nunca que desgrudava dos filhos que eram dela e
de Isabel, mas que eram todos de Francisco. Diante do altar gradeciam ao Senhor
por conceder-lhes a felicidade na terra.
Eram
eles muito felizes e não podiam não ser o coroamento da criação.
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