terça-feira, 21 de janeiro de 2020

CONTO - DUAS IRMÃS



Duas irmãs



         Muitos anos depois de conhecer Isabel no baile do clube Francisco sabia que se casaria com ela. Ela tinha um pai e tinha uma mãe. Moravam na casa que ficava no começo da rua. A casa era caiada e Ageu retocava todo ano depois que acabava a estação das chuvas em abril. Francisco caminhava na frente da casa, mas como ainda não tinha chegado o tempo de casar com Isabel não pensava nisto e ela era apenas uma menina pondo os lençóis imaculados ao vento e ao sol.
         Isabel era a filha devota. Tinha mãe, mas a mãe já era velha e cansada então era ela que servia na casa. A mãe na cozinha, Isabel no tanque, no quarador, a roupa no varal. Isabel no ferro de passar, nos quartos pondo lençóis limpos nas camas. A casa também sempre limpa, não fosse ela deixar a poeira sobre os móveis, os ninhos de aranha no teto, o limo na cozinha e as casas de besouro no canto da parede.
         Mas havia nela uma voracidade qualquer. A casa limpa não a sustinha e sobretudo não era a única verdade que ela pressupunha dentro dela. Quando tornou-se mulher ela soube que todo o sangue derramado era pouco para redimi-la, ela precisava de mais transfiguração. Assim Isabel ainda limpava a casa com obstinação e crença, mas também se tornou má.
         Ela sentia que o mal era a semente que esperava crescer como uma flor impura dentro dela. Não amava sua imagem no espelho, mas via-se nua e impenetrável durante o banho. Isabel gostava de verter-se prazer enquanto a água estava imóvel e cálida dentro da tina do banho. Mexia na água com as costas das mãos, mas dentro dela estouravam bolhas transparentes de prazer e vergonha.
         E tinha a irmã que era Maria. Mas irmã ainda não era totalmente Maria. Isabel chamava-a de outro modo. Era Mariazinha. Uma criança e ela que era uma mulher quase. Foi o último esforço da mãe. Sete filhos perdidos e duas meninas que viveram. O pai era Ageu, na farmácia sozinho. Na velhice ninguém trabalharia por ele.
         Voltava a casa e comia. Comia o almoço dormia a sesta, comia a janta e saía para o bacará. Era o pai e a família estava completa com a mãe, com Mariazinha crescendo como uma menina e Isabel fazendo-se mulher.
         Assim rodou o tempo e ninguém morreu. Até que Isabel já era uma mulher e Francisco então veio, porque já era o tempo de ele vir para colher Isabel. Tudo começou depois da sesta quando o pai entrou na farmácia e eram três horas da tarde. Fazia calor e o sol calcinava a claridade que emergia de dentro do dia. Francisco não veio de súbito, apareceu sempre como um cão na porta da farmácia. Veio e soube que podia entrar e entrou.
         Ageu só compreendeu quando Francisco não estava mais na porta da farmácia, compreendeu tudo quando estremunhado da sesta o viu diante da casa e era Isabel por trás da janela. Podia opor-se porque era o pai e tinha aquela filha, mas não pensou nisto tão profundamente que pudesse decidir logo e olhando a sombra cerrada do jasmineiro aceitou que não faria mesmo nada.
         Como não houve oposição aconteceu de Francisco casar-se com Isabel. A mãe de Isabel já estava muito mais velha que antes, mas o casamento da filha era um dogma. Mariazinha que se tornara Maria agora seria a filha devota. E assim foi. Principalmente porque Ageu não sobreviveu e morreu quase um ano depois do casamento. A farmácia agora para Francisco.
         Ageu morreu e não conheceu o filho de Isabel porque ele não nasceu enquanto Ageu viveu. E o filho que Francisco fez em Isabel veio mais de um ano depois do casamento quando Ageu já tinha morrido e Lia a mãe de Isabel tinha sofrido um derrame que a pôs entrevada na cama. Mariazinha não descuidou daquela que era a sua mãe, não podia abandonar a pobre viúva entrevada para sempre. Isabel não pode muito, casada tinha Francisco em casa. Todo o dia na farmácia, depois em casa precisava cuidados.
         Francisco era um homem e comia. A casa limpa, a roupa lavada, os vasos de gerânios molhados, Isabel precisava viver a própria vida. Mas também ainda tinha mãe. Então ajudava Maria como podia. Quando o primeiro filho nasceu Isabel não pode mais nos primeiros tempos. Então Maria que podia cuidava da mãe e não descuidava de Isabel. Todo o resguardo de Isabel ao seu lado.
         A mãe era prioridade, uma pobre velha entrevada. Não podia nada. Esquecera a fala e engrolava umas palavras dentro da boca. A língua para sempre parada. Mas Isabel era sua irmã e não podia impedir-se. Francisco comia em casa e exigia cuidados. Isabel nunca tinha sido uma mãe e precisava ajuda. Mas a menina não mamava. O leite de Isabel empedrado. Sofria a menina, sofria a mãe que não podia alimentar a pobrezinha. Maria cuidava. A roupa de Francisco lavada. A casa de Isabel limpa. O banho morno da menina. A ablução de Isabel.
         Na farmácia Francisco trabalhava. Precisou de estoque novo. Agora prosperava. Ageu não plantava para colher amanhã. Cem anos fazendo botica. Agora era uma farmácia. A família crescia. Primeiro Isabel e agora a menina. Era natural que a família crescesse e ele tivesse que trabalhar para sustentar a família que era dele. Sempre pensara que um dia chegaria a sua vez. Ele era um homem e tinha naturalmente as qualidades de um homem.
         O pai que ele não conhecera também tinha sido um homem. Onde o pai neste mundo? A mãe que ele sabia quem era, mas não podia dizer com certeza que a conhecia. Era a mãe que ele tinha perdido muito cedo. A tia que o tinha criado e que o fizera chegar até aqui. A tia que não tinha filhos nem tivera tempo de ter marido também. Para sempre no céu porque foi fiel a Deus e nunca abandonou Padre Cristóvão nem enquanto ele dormia.
         Tinha graça aquela coisa da tia e do Padre Cristóvão. Até na mesma cama um dia na hora da sesta. Mas o que ele tinha visto era apenas uma sombra na sua memória. O resto era a tia, o banho na tina que a tia lhe dava, o caldo do Padre Cristóvão que ela fazia e ele também tomava. Depois ele chegou até aqui. Também já sabia que chegaria até aqui. Veio com a tia e o Padre Cristóvão. Mas agora não havia mais a tia e o Padre Cristóvão foi a bispo. Longe muito longe tudo isto. Mariazinha é quem faz a comida agora. A menina mais fortinha, Isabel já tinha leite pra ela. O problema é a entrevada deitada na cama. Vai morrer, mas não agora. Se ela morre Mariazinha sozinha na casa. Isabel vai querer cuidar. Muito unidas ambas.
         De noite Francisco em casa, Mariazinha servia a janta. Vestidinho na linha do joelho. Pronta para ir pra casa, a mãe entrevada, dispensar a cuidadora. Agora era a sua vez. Enquanto tivesse mãe. Pobre Mariazinha, ajudava nas duas casas. Sem tempo para si mesmo. Despedia-se de Isabel. Amanhã volto. Só fazer a comidinha da mãe. Estaria aqui. Francisco sabia então. Tinha que dormir, a farmácia amanhã. Trabalho. Trabalho. Trabalho.
         Quando Isabel não precisou mais de Maria ela não veio mais a casa com tanta frequência. Francisco não entendeu logo a ausência, depois compreendeu. Voltou a comer o almoço de Isabel e a tomar o café que aquela que era a sua mulher fazia com suas mãos. Lia que era a sogra mais doente que antes. Agora Maria quem precisava de ajuda. Isabel fazia o que podia e para poder mais transferiu o almoço de Francisco para a casa da mãe.
         Voltaram os dias de Mariazinha na cozinha. Voltaram os dias do ramo de gerânio nos cabelos de Maria. A velha não terminava de se acabar e todo dia ainda existia. Francisco via. Um caco de velha entrevada que insistia. Um dia não amanheceria e como foi isto que aconteceu quando ele ouviu Isabel dizer que a mãe morrera no sono achou muito natural que assim fosse e não havia mesmo surpresa que uma velha entrevada acabasse um dia.
         Morreu e não durou para sempre. Isto aconteceu e depois que tudo isto se deu Isabel entendeu que Francisco tinha feito outro filho nela. Não surpreendeu-se com isto porque Francisco era um homem e ela era a mulher. Quando a outra menina nasceu, Maria que não tinha mais a mãe para cuidar dedicou-se inteira à Isabel. As duas tinham já experiência e dessa vez fizeram tudo com tranquilidade inaudita.
         Isabel atravessou o resguardo sem sustos. A menina mamou o leite que jorrava dos peitos turinos da mãe. Maria foi a dona da casa para Isabel criar a filha que a solicitava famélica. Em casa Maria quase não ia. Fechada muitos dias. Instalada na casa de Isabel. Era o braço direito e a perna esquerda da irmã. Francisco propôs. Vende a casa. Ela era mulher e desse negócio não sabia exatamente. Não falou nada e esperou.
         Francisco não esperou tanto. Propôs e liquidou logo. Maria era o que ele via. Não era mesmo mais Mariazinha, consumação visível, tinha-se feito o que se via, no fundo do quintal era Maria que punha a roupa no varal. Depois Francisco não viu mais nada porque o sol iluminava a terra inteira, mas seus olhos não viam mais que Maria, lascivo gerânio o queimando na modorra da sesta.

         Nos dias que se seguiram Francisco não se impediu de ceder à tumidez do desejo estuante. E no calor silente da sesta da tarde vinha Maria e ele impunha-lhe sua força de homem que a tornava mulher. Quando a casa foi vendida e Maria instalada em frente, nessa outra com jardim de buganvílias, Isabel compreendeu Francisco e não precisou perdoar Maria.
         A farmácia para as duas famílias. Francisco dormia com Isabel, mas a sesta da tarde com Maria. O almoço na casa de Maria e a janta em frente na casa de Isabel. As duas famílias felizes. Logo todo mundo sabia. Francisco era bígamo. As duas mulheres eram as duas irmãs. Uma cuidava da outra e as duas cuidavam de Francisco. Ele cultivava sua força de homem. Tomava o espesso caldo de Maria e passava a noite com Isabel. A gemada de Isabel era a certeza da sesta gozosa nos braços de Maria.
         Quando a família cresceu foi Isabel quem cuidou de Maria. Não havia dúvida, assim como a irmã tinha cuidado dela agora que Francisco lhe tinha feito também um filho precisava não descuidar de Maria. E foi assim que fez. Quando o menino de Maria que era filho de Francisco nasceu Isabel retribuiu tantos anos de dedicação que a irmã lhe tributara outrora.
         E o menino que nasceu era grande e forte. Estentor, não solicitava o leite de Maria, exigia. Como era filho de Francisco cresceu ao longo dos meses e logo não era mais um bebê que mamava porque tinha se tornado um menino que Maria trazia no colo. A família agora eram seis e Francisco trabalhava muito, mas não deixava de ir prosperando. Também não deixava de comer o almoço de Maria e a janta de Isabel. E as meninas cresciam e o menino era forte. Ele ainda era um homem e não podia deixar de consentir-se ao amor das duas mulheres.
         Assim quando soube que tinha feito mais um filho em Isabel não se surpreendeu porque acreditava na sua força de homem e tinha prosperado tanto na farmácia que não teria problemas em sustentar uma família grande. Mas o filho que ele tinha feito em Isabel não quis vir e quando ele nasceu morto Francisco soube que era um menino bonito e teve pena de enterrar o pobrezinho dentro da caixa. Maria o impôs isto. Que Isabel não podia ver o mortinho tinha padecido como uma mártir, mas não tivera sucesso e o menino viera morto pro mundo.
         Francisco soube o que era preciso e Maria cobriu de jasmins o menino que nasceu morto. Não havia mais nada. Sepultou-o, ele era o pai. Muito tempo Maria na casa de Isabel. Minuciosos cuidados era sua irmã afinal. Havia também Francisco, as meninas e a casa ninguém não tinha culpa do que aconteceu com Isabel. Depois ela só tinha uma irmã no mundo, não podia nunca não fazer o que ela fez naqueles muitos meses enquanto Isabel se restabelecia.
         Mas enfim restabeleceu-se Isabel e quando isto se deu ela reconheceu o maravilhoso esforço de Maria que já trazia mais um filho de Francisco crescendo dentro dela. Então Maria era a sua irmã que serviu-a sem pejo, que não negaceou ampará-la quando ela tinha precisado, quando Francisco não a tinha na cozinha nem no tanque e nem as meninas não podiam ter a mãe que era ela. Maria tinha sido a irmã caridosa, a esposa valorosa e a mãe extremosa de suas filhas.
         Agora era a sua vez. Isabel serviria Maria, sem glória. Serviria como uma irmã que compreende a necessidade do amor fraterno. Não se impediria de ser útil em toda necessidade da convalescença de Maria. Impôs-se a si uma promessa aos santos – que Mariazinha tenha um parto bom e que a criança nasça coberta pela luz de Belém. E como tudo aconteceu como ela queria que acontecesse Isabel ficou feliz e o menino que nasceu recebeu um nome que a tia tinha prometido aos santos.
         A família era de Francisco e ele não sabia afirmar se Padre Cristóvão saberia que aquele menino. A tia também nunca que poderia saber. Mas a tia era quem o banhava na tina e ele gostava do contato dos dedos da tia que eram finos e encontravam cada parte que ele tinha para limpar. Padre Cristóvão e a tia estiveram muitos anos antes presos dentro dele, mas agora era Francisco que tinha Maria na sesta e Isabel no sono da noite. O surpreendente de tudo isto era que o seu amor repartido crescia dentro dele voraz e sem cansaço.
         Então quando ele fez mais um filho em Maria e nasceu a menina, Isabel que não tinha tido mais nenhum filho depois do menino que nasceu morto instalou-se na casa da irmã e a tratou com o desvelo natural com o qual não poderia deixar de tratar aquela que ela amava sobretudo porque era sua irmã e tinha mais um filho de Francisco. O sangue das suas filhas era o sangue de Francisco e o sangue dos filhos de Maria que era também o seu era o de Francisco e das suas filhas. Isabel compreendia isto e tranquilizava-se feliz quando olhava para trás.
         Um dia quando os filhos que Francisco fazia em Isabel e Maria não vieram mais eles todos preparam-se para envelhecer.  Mas como não envelheceram logo foram vivendo através dos muitos anos que se foram sucedendo. E enquanto sucediam-se todos esses anos Francisco prosperou mais na farmácia e o amor cresceu entre eles como uma flor eterna aberta ao sol. Os filhos também foram crescendo e apesar das bichas e da maleita ninguém ficou pelo caminho.
         Domingo quando tinha padre na igreja a família não faltava para a missa. Isabel caminhava na frente com Francisco e Maria nunca que desgrudava dos filhos que eram dela e de Isabel, mas que eram todos de Francisco. Diante do altar gradeciam ao Senhor por conceder-lhes a felicidade na terra.
         Eram eles muito felizes e não podiam não ser o coroamento da criação.



        
          

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