A sesta da tarde
O
SILÊNCIO JAZIA imóvel sobre os pratos do almoço acabado, era a tarde que
começava. Carlos sentou-se sobre a cadeira. Pensou em quê? O sol. O sol que estava
sempre lá enquanto a Terra fazia o seu carrossel. Pensou em quê? O pai. Mas tinha
medo do pai. Pensou em quê? O menino. Então ele era um menino que não era
feliz.
Olhou
as coisas paradas mergulhadas no silêncio completo. Nenhuma sombra na
imobilidade geral da tarde. Agora ele não podia mais brincar. Agora precisava
percorrer todo o país do tédio até que o avô estremunhasse acabando a
sesta. Se pudesse respirar sorveria todo o ar em volta para dentro dos seus
pulmões. Contentou-se apenas com a respiração natural que lhe garantia o mínimo
de vida.
E se
procurasse descansar de brincar? Mas como descansar se estava sufocando dentro
dele? Principalmente não havia como descansar de brincar porque ele era um
menino. Fechou os olhos e contou cada um dos ladrilhos que se estendiam diante
de seus olhos abertos. Parou sem terminar, pois se perdera no meio desse
labirinto de desencanto. Abriu os olhos e viu diante de si uma mosca que voava
no espaço vazio.
─
Quem a trouxe aqui?
Sua voz
agitou o ar e ele quase se arrependeu de continuar. Como o recomendado, fez
silêncio. Durante certa hora da tarde era preciso andar pela casa como os móveis:
tristes e parados. Havia uma lei tácita que se estabelecera e ficara para
sempre guardada no alto do armário. Era a hora da tarde que o avô dormia e não
havia como desfazer isso.
Passou
a mão na testa para enxugar o suor que se acumulara sobre os cílios. Ele sentia
o incômodo das mãos paradas. Pôs cada uma delas numa posição. Em cima da mesa
não dava, podia sentir a materialidade da madeira nos seus dedos e isto trazia
desconforto à sua tenra alma. Pousou a outra no joelho. Também não pôde retê-la
ali, pois compreendia que o sangue escorria pelo seu corpo e passava nas palmas
de suas mãos. Estendeu-as para frente, livres, como dois frutos pendentes sobre
o abismo, mas logo cansou os braços e recolheu-as sem nenhuma outra saída.
Agora
estava preso como um besouro dentro de uma garrafa transparente. Via a luz
vasta e imensa lá fora, mas sem nenhuma saída chocava-se contra as paredes de
vidro.
Um
raio de sol caia do telhado sobre o chão. Deitou-se ao lado dele. Era longo e
frio e através dele via-se pó suspenso rodando na luminosidade visível.
Então
era verdade que lá fora o sol era intenso e estava completamente livre. Pôs a
mão esquerda sob esse raio de sol, esperou que ele a queimasse para sentir como
a sua pele preta logo estouraria em pequenas feridas lancinantes. Mas era um
raio frio que fugira do sol e já não tinha a agudez das lanças solares que
crestavam o mundo. Retirou esta mão e pôs a outra, depois se cansou disto e
deitou-se de costas olhando o telhado.
Cada
telha unia-se a outra telha até completar o telhado inteiro e permitir que o
sol não entrasse na casa e recolhesse a chuva para que ela não molhasse dentro
de casa.
E o avô
disputava com os gatos o domínio sobre o telhado. Os gatos o percorriam e ele
não os queria lá, então o avô jogava pedra nos gatos e os gatos deixavam
buracos no telhado por onde passava o sol e eventualmente a chuva.
Mas logo
se cansou de pensar nisso porque eram pensamentos bobinhos esses que estava
pensando. Cruzou as mãos sobre o peito e imaginou que pudesse ficar assim até
que tudo acabasse. Mas como não acabou logo fechou os olhos para esquecer. Mas como
não esqueceu nada abriu-os outra vez e viu a mosca voltando da sua viagem até
Saturno.
Seguiu-a
até que ela pousou não soube nunca onde, mas compreendeu que ela estava próxima
e sem esforço primeiro decidiu esquecê-la depois quis procurá-la. Finalmente não
fez nem uma coisa nem a outra, apenas ergueu meio corpo e tentou olhar para o
lado da sala.
A luz
procurava arrastar-se por baixo da porta que estava fechada. Havia uma enorme
sombra parada na soleira. Pensou que poderia ir até lá, mas o avô dormia na
sala, poderia acordá-lo se desse um encontrão na cadeira ou se pisasse em
alguma aranha que estivesse arrastando-se ali.
Sentou-se
e recolheu a cabeça entre as mãos. Carlos era um menino que não tinha
passarinho na gaiola para poder trocar a comida e a água quando não tivesse
nada para brincar.
Tudo
isso que lhe acontecia era verdadeiramente culpa dele. Culpa dele mesmo. Quando
pudesse sair iria até em baixo da mangueira e arrancaria as asas das mariposas
que pousavam no tronco da mangueira, então ele ficaria feliz porque não seria o
único que não teria asas.
Pôs
então a cabeça entre as pernas e começou a chorar, mas chorava tão baixo que
seus soluços pareciam bolhas de peixes estourando na superfície da água parada.
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