Televisão
A
avó servia-lhe a janta. O avô também era servido. Comiam calados porque o avô
não falava sempre. Carlinhos não comia com veemência. O avô repreendia. Que
comesse, que a janta esfriava no prato, que ele nunca tinha fome e que esse
menino não comia nada Maria.
Quando
o avô acabava de comer ele ainda não tinha terminado. O arroz todo no prato e a
fome esperando. Era um menino que pensava. Pensava em quê? Podia mesmo pensar
na mãe. Onde a mãe aquela hora? A hora das sombras inquietando-se dentro da
mata atrás da casa. E a mãe estava atravessada no seu pensamento. Havia ainda
uma ave de amplas asas voando no céu. Para onde então? Para onde o vento traria
a lua e as primeiras estrelas frias. Assim acabava de comer pensando e
inventado coisas dentro da cabeça dele.
Mas
havia também na casa da avó um gato tigrado que tinha o nome de Cruzado porque o avô não
gostava do governo. O avô falava mal do governo e gostava do gato. O menino e o
gato comiam devagar e eram dois seres muito presos ao avô. Quando o gato acabava
Carlinhos também tinha acabado de comer. Ele não sabia nada do governo, mas a
avó que não falava mal do governo e que não gostava do gato acusava.
O
gato era ladrão.
Roubava nas casas vizinhas. Roubava a carne da panela, roubava o leite e roubava o pão. O avô
favorecia o gato. E que ele não roubava nada as vizinhas é que lhe davam
ocasião.
Quando
a janta acabava a avó lavava os pratos e depois não tinha mais nada para fazer.
Era
a hora da televisão.
Mas
não havia aparelho na casa e o avô reclinado na cadeira de bambu gozava no
cigarro a noite antiga enquanto ouvia no rádio as últimas ondas livres antes da
babel da Voz do Brasil. Então logo ouvia-se o avô pensar contra o governo, impor a ideia. Ageu também não gostava do governo e ouvia o avô. Mas onde Ageu?
Carlinhos ficava parado na cozinha e pensava que se entrasse no quarto da tia não veria mais nada
refletido no espelho da penteadeira. Ele seria invisível preso na treva. E as
luzes dos postes se acenderiam e sob a iluminação artificial as estrelas
ficariam imobilizadas sob a noite que se solidificava em toda parte. Ele ainda
pensava no espelho da penteadeira da tia quando ouviu a primeira guitarra de
lata na sombra atrás da casa. Era um grilo e Carlinhos surpreendeu-se de não
tê-lo ouvido antes.
Prestou
atenção procurando ouvi-lo guardado em alguma fresta da parede. Não pode
guardar esse silêncio nem por um minuto. Inquietou-se e como um menino e seguiu a
avó para a frente da casa. O avô lá estava perdido, olhando para fora, então Carlinhos
olhou também na mesma direção, mas não pode ver nada. Olhou mais
fixamente, mas não via outra coisa e o que via era o cajueiro folhudo coberto
de vento que agitava-se no vazio.
Cansou-se e não olhou mais.
Sentou-se
na borda da calçada, as perninhas agitando-se em muitos movimentos de besouro
virado para cima. Estava começando a entender que não tinha nada para olhar
dentro do princípio de treva que chegava de dentro da noite. Sabia que há esta
hora a mãe abastecia o querosene das lamparinas da casa. As luzes dos postes
eram amarelas e encantavam as mariposas, desviou-se.
E eram
borboletas frias que ficavam girando em volta da luz parada do poste. Isso o
deixava triste. Então ele não olhava para as mariposas perdidas e quando sempre as
encontrava caídas sem voo de manhã depois que a luz apagava-se esmagava-as todinhas com o pé.
Mas
a avó chamava-o para verem a televisão porque a vizinha tinha um aparelho na sala e
podia-se assistir com ela e sua família seus programas prediletos. A avó exigia, ele a seguia.
A televisão era um móvel vasto, abaulado, convexo e parado num
canto da sala. Naquela casa comia-se, bordava-se e penteava-se olhando para
ela. Carlinhos sentava-se ao pé da avó. Calado. Calado. Calado. A televisão
falava entre duas faixas escuras no canto superior e inferior. Ele ouvia tudo.
Mas o que ele ouvia também eram os meninos que havia lá fora.
Mas
ele estava preso à avó e a avó à televisão. Lá fora os meninos
eram alegres e corriam atrás dos sapos. Havia sempre uma bola no meio deles. Ma também subiam nas árvores e enfrentavam a noite que se recolhera escura atrás da casa onde escondiam-se para
serem procurados e encontrados no mistério de seu esconderijo de meninos que
brincam. Ele absolutamente não brincava. Era um menino preso a um estigma.
A
televisão agia impiedosamente. Mas aí o avô suspeitou alguma coisa. Começou
quando a avó terminava de lavar os pratos e os punha para secar. Não falara
nada, suspeitou logo e depois já sabia de tudo.
Maria
tornara-se fiel à televisão.
Não
era assim? Se era! Na televisão havia aquele velho de cabeça branca atrás do
balcão niquelado falando com a voz sólida. Então convenceu-se. Só podia ser com
o cabeça branca.
Apressada
para chegar à casa da vizinha. Era o pinta
o homem dela. Disse-lhe. Confirmação depois que ela indignada. Saiu sem beber
água depois da janta.
Levou-lhe
um copo d’água na casa da vizinha. Minha avó sob o encanto.
___Maria
você veio sem beber água, aí eu trouxe.
Indignada.
Então não tem vergonha Francisco, um homem! O avô não teve tempo, ela
lançou-lhe o insulto na cara e a água escorreu líquida sobre seu rosto negro ensopando
a barba espessa. O menino viu isso e os outros meninos viram o que tinha acontecido e a
brincadeira ficou parada por um instante tenso e imensamente vazio.
O
avô voltou a casa sem que Carlinhos pudesse segui-lo. Então nunca mais o viu na
janta. Sempre no quarto. O escuro o guardava. Tinha medo de Ageu. Ageu atrás
dele. Estava em toda parte. Na roça vira-o atrás da moita. No caminho vira-o
debaixo do cajueiro. Estava na calçada e dentro de casa. Seria a sua morte Maria
porque Ageu perseguia-o e matava-o.
A avó
nada compreendia. Ageu não estava na casa. Ageu não era mais o vizinho. Há
tempos mudado. Onde Ageu? Francisco doido. Ninguém atrás dele, ele escondido no
quarto, até embaixo da cama. O que pensar? Francisco completamente doido.
Mandar pro hospício.
O
avô louco. Nunca que Carlinhos mais o viu. Quando as luzes dos postes se
acendiam então ele pensava que não era possível caminhar até o espelho da
penteadeira da tia e tirar lá de dentro seu rosto onde ele tinha ficado preso
porque olhara-se ao espelho no escuro. Mas o avô, ele era um imenso sol iluminando
sua noite por dentro.
Veio um aperto de dentro e Carlinhos não soube como respirar, então
chorou como um menino que está triste com mil aranhas no peito.
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