terça-feira, 14 de janeiro de 2020

CRÔNICA - TELEVISÃO




Televisão

         A avó servia-lhe a janta. O avô também era servido. Comiam calados porque o avô não falava sempre. Carlinhos não comia com veemência. O avô repreendia. Que comesse, que a janta esfriava no prato, que ele nunca tinha fome e que esse menino não comia nada Maria.
         Quando o avô acabava de comer ele ainda não tinha terminado. O arroz todo no prato e a fome esperando. Era um menino que pensava. Pensava em quê? Podia mesmo pensar na mãe. Onde a mãe aquela hora? A hora das sombras inquietando-se dentro da mata atrás da casa. E a mãe estava atravessada no seu pensamento. Havia ainda uma ave de amplas asas voando no céu. Para onde então? Para onde o vento traria a lua e as primeiras estrelas frias. Assim acabava de comer pensando e inventado coisas dentro da cabeça dele.
         Mas havia também na casa da avó um gato tigrado que tinha o nome de Cruzado porque o avô não gostava do governo. O avô falava mal do governo e gostava do gato. O menino e o gato comiam devagar e eram dois seres muito presos ao avô. Quando o gato acabava Carlinhos também tinha acabado de comer. Ele não sabia nada do governo, mas a avó que não falava mal do governo e que não gostava do gato acusava.
         O gato era ladrão.
         Roubava nas casas vizinhas. Roubava a carne da panela, roubava o leite e roubava o pão. O avô favorecia o gato. E que ele não roubava nada as vizinhas é que lhe davam ocasião.
         Quando a janta acabava a avó lavava os pratos e depois não tinha mais nada para fazer.
         Era a hora da televisão.
         Mas não havia aparelho na casa e o avô reclinado na cadeira de bambu gozava no cigarro a noite antiga enquanto ouvia no rádio as últimas ondas livres antes da babel da Voz do Brasil. Então logo ouvia-se o avô pensar contra o governo, impor a ideia. Ageu também não gostava do governo e ouvia o avô. Mas onde Ageu?
         Carlinhos ficava parado na cozinha e pensava que se entrasse no quarto da tia não veria mais nada refletido no espelho da penteadeira. Ele seria invisível preso na treva. E as luzes dos postes se acenderiam e sob a iluminação artificial as estrelas ficariam imobilizadas sob a noite que se solidificava em toda parte. Ele ainda pensava no espelho da penteadeira da tia quando ouviu a primeira guitarra de lata na sombra atrás da casa. Era um grilo e Carlinhos surpreendeu-se de não tê-lo ouvido antes.
         Prestou atenção procurando ouvi-lo guardado em alguma fresta da parede. Não pode guardar esse silêncio nem por um minuto. Inquietou-se e como um menino e seguiu a avó para a frente da casa. O avô lá estava perdido, olhando para fora, então Carlinhos olhou também na mesma direção, mas não pode ver nada. Olhou mais fixamente, mas não via outra coisa e o que via era o cajueiro folhudo coberto de vento que agitava-se no vazio. 
             Cansou-se e não olhou mais.
         Sentou-se na borda da calçada, as perninhas agitando-se em muitos movimentos de besouro virado para cima. Estava começando a entender que não tinha nada para olhar dentro do princípio de treva que chegava de dentro da noite. Sabia que há esta hora a mãe abastecia o querosene das lamparinas da casa. As luzes dos postes eram amarelas e encantavam as mariposas, desviou-se.

         E eram borboletas frias que ficavam girando em volta da luz parada do poste. Isso o deixava triste. Então ele não olhava para as mariposas perdidas e quando sempre as encontrava caídas sem voo de manhã depois que a luz apagava-se esmagava-as todinhas com o pé.
         Mas a avó chamava-o para verem a televisão porque a vizinha tinha um aparelho na sala e podia-se assistir com ela e sua família seus programas prediletos. A avó exigia, ele a seguia. 
          A televisão era um móvel vasto, abaulado, convexo e parado num canto da sala. Naquela casa comia-se, bordava-se e penteava-se olhando para ela. Carlinhos sentava-se ao pé da avó. Calado. Calado. Calado. A televisão falava entre duas faixas escuras no canto superior e inferior. Ele ouvia tudo. Mas o que ele ouvia também eram os meninos que havia lá fora.
         Mas ele estava preso à avó e a avó à televisão. Lá fora os meninos eram alegres e corriam atrás dos sapos. Havia sempre uma bola no meio  deles. Ma também subiam nas árvores e enfrentavam a noite que se recolhera escura atrás da casa onde escondiam-se para serem procurados e encontrados no mistério de seu esconderijo de meninos que brincam. Ele absolutamente não brincava. Era um menino preso a um estigma.
         A televisão agia impiedosamente. Mas aí o avô suspeitou alguma coisa. Começou quando a avó terminava de lavar os pratos e os punha para secar. Não falara nada, suspeitou logo e depois já sabia de tudo.
         Maria tornara-se fiel à televisão.
         Não era assim? Se era! Na televisão havia aquele velho de cabeça branca atrás do balcão niquelado falando com a voz sólida. Então convenceu-se. Só podia ser com o cabeça branca.
         Apressada para chegar à casa da vizinha. Era o pinta o homem dela. Disse-lhe. Confirmação depois que ela indignada. Saiu sem beber água depois da janta.
         Levou-lhe um copo d’água na casa da vizinha. Minha avó sob o encanto.
         ___Maria você veio sem beber água, aí eu trouxe.
         Indignada. Então não tem vergonha Francisco, um homem! O avô não teve tempo, ela lançou-lhe o insulto na cara e a água escorreu líquida sobre seu rosto negro ensopando a barba espessa. O menino viu isso e os outros meninos viram o que tinha acontecido e a brincadeira ficou parada por um instante tenso e imensamente vazio.
         O avô voltou a casa sem que Carlinhos pudesse segui-lo. Então nunca mais o viu na janta. Sempre no quarto. O escuro o guardava. Tinha medo de Ageu. Ageu atrás dele. Estava em toda parte. Na roça vira-o atrás da moita. No caminho vira-o debaixo do cajueiro. Estava na calçada e dentro de casa. Seria a sua morte Maria porque Ageu perseguia-o e matava-o.
         A avó nada compreendia. Ageu não estava na casa. Ageu não era mais o vizinho. Há tempos mudado. Onde Ageu? Francisco doido. Ninguém atrás dele, ele escondido no quarto, até embaixo da cama. O que pensar? Francisco completamente doido. Mandar pro hospício.
         O avô louco. Nunca que Carlinhos mais o viu. Quando as luzes dos postes se acendiam então ele pensava que não era possível caminhar até o espelho da penteadeira da tia e tirar lá de dentro seu rosto onde ele tinha ficado preso porque olhara-se ao espelho no escuro. Mas o avô, ele era um imenso sol iluminando sua noite por dentro. 
         Veio um aperto de dentro e Carlinhos não soube como respirar, então chorou como um menino que está triste com mil aranhas no peito.

        





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