DEUS TINHA
ILUMINADO a tarde, foi o que ela compreendeu logo que seus olhos arderam
inundados pela implacável claridade do sol. Seu dia vinha sendo contínuo e
constante como os dias anteriores tinham sido igualmente contínuos e
constantes. Então ela pensou que era uma pessoa boa e que não precisava
preocupar-se com o que veria na rua.
Aceitou
o propósito de adiar as compras para o começo da tarde porque era uma coisa que
poderia explicar a si mesmo com algum esforço. Ultimamente ela fizera-se uma
mulher simples e cordata. Nunca pensou que depois de anos uma mulher pudesse
mudar tanto que não se reconhecesse mais nos seus gestos, nem nas suas próprias
roupas íntimas. Mas ela não era odiada e por isso tinha que se sentir feliz.
Era
uma mulher que possuía a felicidade como uma flor artificial entre os dedos.
Isto é, não dessa felicidade enervante. Mas dessas bem comuns, que é está
casada, ter filhos bonitos e um lar provido. As contas estavam sendo paga, em
breve ela teria que comprar um fogão novo e nos domingos podia ir à igreja com
os filhos, depois almoçariam macarrão com molho de almôndegas e folhas de
manjericão.
Então
estava tudo bem ela podia ser uma mulher perfeitamente conformada e até dar-se
algum prazer quando houvesse ocasião propícia.
Acaso
não era esse o desejo de todas? Se não podia acreditar completamente no mundo
em que vinha vivendo não era absolutamente problema dela. Havia evidentemente
muitas outras coisas desejáveis lá fora, mas aprendera que com pássaros é
preciso ter muito cuidado ao retê-los nas mãos fechadas, um leve afrouxar dos
dedos vão se os pássaros e ficam somente os sonhos de um dia tê-los possuídos e
a sensação do desconforto da perda.
Ela
era sem dúvida uma mulher que não sabia perder. Por isso não cultivava rosas
nem em vasos nem tampouco no jardim. Rosas são breves, chegaria um dia e as
roseiras todas amanheceriam pesadas de rosas, haveria odores espalhados e
a manhã seria vivida entre a surpresa dessa súbita florescência e os perfumes
cálidos que penetravam. Mas tudo tão fulgaz que antes do fim da manhã as
pétalas já começariam a cair do halo e ela desesperada não teria mais nenhum
apoio nessa beleza transitória.
Perder
era um grande problema e, portanto ela que era uma mulher podia muito bem se
recusar a isso. Então vivia como quem vive ganhando cada dia e comemorando cada
conquista no imenso teatro do mundo. No final o que todo mundo buscava mesmo
era essa coisa sumarenta, a felicidade, mesmo que viesse através de um ramo de
rosas, uma fatia de bolo, uma pessoa a que se amasse sem pensar nisso, filhos
que exigissem cuidados e desvelos constantes.
Fechou
a porta atrás de si e caminhou para o portão da casa decidida a sair para a rua. Quanto tempo ela ficara exposta ao sol
procurando conciliar o pensamento e à tarde que ardia na soalheira bruta? A luz
atingira-a com um golpe tão brusco que ela não pode impedir logo esse
longuíssimo desvio de percurso, mas agora que estava reconciliada outra vez
poderia prosseguir sem a necessidade de deter-se para recuperar toda a
confiança em si e no mundo que inventara com suas mãos.
Descia
a rua, mas estava tranquila. Agora iria até o final. Quando caminhava sozinha
pela rua podia compreender a tranquilidade que pairava sobre a cidade. No final
da rua observou o perfil sujo do santuário franciscano fulgurando ao sol,
escutou se o trem vinha vindo, apenas certificando-se e atravessou os
trilhos. Antes do calor compraria tudo
que fosse necessário para o jantar. Era ela quem alimentava a família. Todos os
nutrientes que os filhos precisavam vinham de suas mãos provectas.
Conhecia
as mais doces frutas, os mais frescos legumes e os mais nutritivos grãos.
Colhia-os com as mãos, estendia-as e as trazia cheias dos melhores alimentos
para sua prole. Com isso vinha cumprindo com dadivosa solicitude seu papel de
mãe e de mulher convertida em pedra angular da casa. Não era impossível que
tudo isto não a impedisse de ser amada.
Sobretudo
nessa coisa de ser amada ela era voraz. Reconhecia-se voraz, mas merecia ter
algum vício. Era mulher e como tal tinha também uma natureza humana. Otávio
saberia entender esse seu instinto de loba. Amar até ao excesso do uivo! Nisso
podia requisitar dele condescendência.
Procurou
então caminhar na sombra das platibandas para se abrigar um pouco do sol que começava
a enervá-la. Antegostava o cheiro do mercado amadornado naquela tarde quente.
De repente sentiu o odor álacre da carne fresca de cordeiro pendurada no
açougue e o inebriante calor do perfume das frutas maduras colhidas ontem.
Então
ela não pensou mais nos filhos nem em Otávio. Atravessou a rua e entrou no
amplo prédio do mercado municipal. Ouviu as vozes sonolentas abafadas pelo
calor que a golpeou no rosto assim que ela subiu os três degraus. Parou na
entrada para acostumar os olhos à luz artificial do interior, piscou duas vezes
e caminhou ao longo do corredor. Cheiro de peixe passado e carne crua
esquecida. Havia sangue apodrecendo ar. Enxames de moscas abriam caminho para
ela passar. Um cão, dois cães, outro cão, outros e outros deitados por ali,
onde o zelador do mercado para enxotá-los?
No
meio dos cães uma cadela com a vulva inchada de vícios e baba gozosa. Lindo
espetáculo! Teve medo de ter dito isto de modo audível, olhou em volta, ninguém
a via, ela estava sozinha no meio do corredor. Parou para contemplar a matilha
sem nenhum vexame. Isso era crível?
Agora
o que vinha na sua cabeça era uma série de revelações atropeladas e que ela
forçosamente lutava para estabelecer alguma ordem própria. Arfava embaixo do
vestido, mas não era do calor. Podia voltar para casa e usar-se até a hora de
preparar o jantar, mas onde forças para retroceder? Teve medo mais uma vez de
estar sendo observada e recuou para a entrada da ala dos cafés e bares.
Foi
quando ouviu aquela gargalhada espessa de mulher satisfeita.
Apertou
o seio esquerdo entre os dedos crispados e sem domínio de si caminhou naquela
direção. Chegou perto e a viu, toda pintada e bela como uma mulher que é livre.
Havia música e o cheiro de álcool se impunha. Parou inquieta, não a observavam,
mas ela os via, eram livres e não se ocupavam em conservar pássaros na mão
fechada. Ela encostou-se a parede para não estar no meio da passagem. Viu-o,
belo e de torso nu.
Encantou-se
como serpente. Passou a língua entre os dentes superiores. Agora era apenas a
loba. Viu-se entre as nuvens, mas não podia pensar em voo, apenas no estertor
da lama em que se lambuzariam seus corpos indóceis. Prevenira que no amor ela
era voraz. Como atravessar daqui para lá?
Não
precisou preocupar-se com isso como imaginava. Ele a viu. Era bonito em sua
juventude de efebo. Como um menino ele olhou-a e ela não recusou seu olhar. Ele
a via. Ela precisava disto porque era uma mulher e exigia igualmente a
liberdade para caçar. Sorriu-lhe aquiescendo-o, ah como foi bom quando ela viu
que ele estava com ela nos olhos dele. Então ela caminhou para o lado dos
sanitários sem olhar para trás, mas sabendo que ele a seguia. Era um bonito
menino de torso nu e bermuda. Tinha sem dúvida o que era imprescindível ao
homem, ela soubera disto pelo volume.
Chegou
à ala dos banheiros, mas não entrou logo, não estava fugindo dele. Escutou lá
dentro e não havia barulho de água, então poderiam ficar tranquilos. Esperou-o,
sem olhar se ele vinha, pois o sabia atrás dela pelo dulcíssimo cheiro de
almíscar que se desprendia dela. Parou na soleira e ele veio beijá-la com todos
os seus beijos e a beijou com a sua boca quente, seu hálito de homem e álcool
fez-lhe definitivamente serpente e loba.
Entraram
no boxe e quando ele a fechou com o ferrolho ela sentiu que estava
definitivamente perdida. Então ele era um homem como ela podia muito bem
certificar-se com suas mãos e ela era uma mulher como todas as mulheres livres
que exigem apenas essa coisa impalpável que é o amor. E enquanto com todas as
suas mãos ele colhia seus seios, pêssegos tumefatos, e mordia-lhe a carne,
enquanto ele a consumia, a enlaçava com todos os seus braços, a perdia e
atravessava com a sua língua de fogo, ela, a mulher, continha a custo seu
irreprimível uivo de loba. O cheiro forte e dominante do homem se exalava dele
e ela sentia-o, sorvia tudo sem pressa, e sentia que ia explodir por dentro,
que não perderia definitivamente sua natureza humana e seria para sempre apenas
serpente e loba. Quando ele a atravessou e ela o sentiu como posse própria,
quis retê-lo para gozá-lo enquanto aquela eternidade pudesse durar. Então tudo
escureceu de repente e ela sentiu-se rodar no carrossel dos anéis de Saturno. Aí
soltou a mesma gargalhada altiva e espessa que ouvira e que denunciava que o
amor a bafejara com a sua dádiva.
Quando
acabaram, pensaram que o guarda civil poderia vir e surpreendê-los, então com a
pressa natural do risco de vexame ela vestiu-se e ele olhou-a como um menino
ingênuo. Pôs a bermuda e com cautela abriu o ferrolho libertando-a, depois saiu
do banheiro onde a deixou recompondo-se.
Sozinha
ela voltou à carga e deu nova gargalhada de bêbeda. Posso eu? Nem pensou mais
nisso, terminou de recompor-se, apanhou a sacola que trouxera para as compras,
saiu também do banheiro, comprou o que viera comprar. Saiu para a rua. Tomou o
ônibus. Era tarde, mas ainda teria tempo de preparar o jantar. Os filhos só
estariam em casa às cinco horas e Otávio não voltaria até as seis. Dentro do
ônibus mulheres, crianças e velhos calados. Só ela tinha vontade de dançar. Era
tudo tão simples. Via as pessoas que passavam nas ruas, meninos com uniformes
de colegiais, ainda era cedo, mas ela se atrasara bastante. Tinha tido direito
a este atraso. Agora com o sol descendo no horizonte via que o santuário dos franciscanos
repousava na tarde silente. Um mundo frio de pedra e cal! Temeu ter dito isto
de forma audível, mas olhando em volta percebeu que ninguém a olhava. Apertou a
sacola com as compras contra o corpo. Logo a casa estaria bem provida.
Voltou
a sentir o cheiro das frutas maduras, a próxima parada era a dela. Teria que
descer. Atrasara-se merecidamente. Quando o ônibus atravessou os trilhos ela
preparou-se para sair. Então caminhou para a porta, agradeceu ao condutor o
favor de transportá-la de volta a casa de desceu. Caminhou um quarteirão. Em
frente à casa parou. Voltou-se para a rua. Poderia decidir-se não entrar.
Impossível, era tarde de mais. Abriu o portão. A terra do jardinzinho
revolvida, um dia pensara plantar rosas ali, tivera uma mudas até. Abriu a
porta, entrou, largou as comprar no chão, sentou-se numa cadeira sob a janela,
escancarou as gelosias, o sol iluminou-a toda.
Olhou
para fora, reviu seu jardinzinho com a terra removida, pensou em plantar rosas
ali, para quê? Então estendendo-se na cadeira levantou o vestido deixando as
coxas a mostra, abriu as pernas e deixou o sol chegar até lá, afinal era livre
até mesmo para amar. Pensava, quando é que poderia outra vez rodar no carrossel
dos anéis de Saturno?
Carlos Souza
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