Feliz aniversário
SÁBADO
OU DOMINGO
Estava com o pai. Então ele entrara na casa como sempre
o fizera há tempos. Ele entrara na casa como um menino que volta do quintal
onde estivera durante toda a manhã com as galinhas e o gato trepado no muro e
ouviria a voz da mãe avisando-o que a casa estava limpa.
O que
era verdade. Como ele soubesse depois de tudo não havia outra forma de
continuar com a mesma inocência de antes. A verdade fora vislumbrada por ele
como uma coisa exata e transparente e a mãe agora era uma realidade móvel, uma
imagem retida para sempre na memória, e a sua voz era apenas uma lembrança, uma
impressão guardada nos seus cinco sentidos. A verdade da dor era apenas
suportável.
Mas o
pai sentava-se na cadeira ao lado da mesa quando ele entrou pela porta como
quem tem a posse da chave. A chave estava na sua mão. Como esquecer o dia em
que precisou deixar para sempre a chave sobre a mesa? Agora ele tinha outra
chave. Olhou para dentro da casa. Tudo estava muito limpo. E agora que a mãe
era uma ausente outras a limpavam. Os móveis parados na sala, a cozinha
entrevista através do portal. Cheiro de fruta madura no aparador, mas seria
isso palpável?
Ilusão
de quem pensa na mãe.
O pai
não o olhou logo. Não precisava. Reconhecia-o sem precisar olhá-lo. O menino
que ele pusera nos braços. O menino que ele vestira e alimentara durante longos
anos. O menino que ele ajudara a fazer um homem. Antes nada disso tivesse
acontecido.
Os
dois não sabia quem havia pensado nisso.
Depois o pai o olhou e ele sentiu que
se o olhasse também haveria um confronto. Mas como ele agora era um homem
limitou-se apenas retribuir ao pai a lisonja de sabê-lo em casa e bem disposto.
Os
filhos nunca estão definitivamente livres de seus pais até que esses estejam
mortos e não lhe caiba mais do que a obrigação de lembrá-los como pessoas boas
que viveram um dia na terra.
A mãe
não estava mais ali entre eles, sábado ou domingo à tarde, o sol era um farol
boiando no crepúsculo. A mãe fora aos poucos ficando transparente e de repente
ela não a viu mais. Não a viu na cozinha acertando o sal do almoço, nem sentada
à mesa com o prato frio e nem a viu nunca mais no quarto diante do espelho com
os cabelos longamente soltos.
Depois
de quase um ano inteiro ele voltava ali para compreender toda a verdade do que
acontecera com a mãe. Morrera para sempre. A solidão do pai agora seria bem
maior do que antes.
Como
se tivesse um acordo entre ambos, o filho pôs a chave da porta diante do pai,
caminhou até a cozinha onde serviu-se de um copo d’água do qual só tomou
metade. Velho hábito do menino antigo. O que faria ele ali? Veio cedo de mais?
Se tivesse vindo à noite, sob a luz artificial das lâmpadas elétricas não teria
tanta necessidade de fazer gestos largos para fingir que era confiante.
Diante
do pai precisava ser o homem no qual o menino transformara-se. Colocou o copo
sobre o balcão da cozinha e voltou para a sala, decidido a sair logo dali. Mas
isso não era uma coisa tão simples assim. Havia muito em jogo naquela visita.
Ele não queria que se soubesse o quanto sua fraqueza de menino o fizera um
homem covarde para essas coisas que exigem prontas providências.
Foi
então postar-se do outro lado da sala com a intenção de sentar-se no lugar mais
cômodo possível de onde pudesse ser ouvido sem ser olhado de frente pelo pai.
Não pode sentar-se logo, no entanto. Para sua surpresa estava diante de um
remoto retrato de sua mãe. Era um retrato que estava há muito tempo na parede.
A mãe o olhava de dentro da moldura com os olhos frios dos retratos estudados.
Chegou
então a pensar que aquela fotografia seria a sua salvação e do pai. Seria mesmo
surpreendente se os dois pudessem compreender tudo sem que nenhuma palavra
tivesse que ser dita. Foi só aí que ele olhou para o pai e o surpreendeu como
ele, olhando para o retrato. Chegou a suspeitar que fosse já desnecessário
permanecer ali.
Mas
ele sabia que era ilusão.
Sentou-se
e resolveu esperar. Como o homem que se tornara deveria agir? Pensou então no
menino de antigamente que correria pela sala e buscaria dropes de hortelã nos
bolsos do pai. Verdadeiros tesouros de açúcar e menta estavam escondidos ali. E
agora como continuar? Ele e o pai sofreram a morte da mãe. Consumida pela
doença até o limite do martírio. Os dois eram homens e como tal não podiam
comunicar o sofrimento nem o amor que sentissem.
Há
coisas que só se permite aos meninos: caça aos dropes de hortelã nos bolsos das
calças, desejo de fruta madura, liberdade pelas ruas e quintais, chorar quando
sentir dor e amar pela primeira vez. Depois que o homem substitui o menino tudo
isso sucumbe às outras exigências.
Agora
precisava concentrar forças para falar ou sair dali. Agora precisava de outra
chave para abrir novas portas. Arrependeu-se então de não ter trazido o filho consigo.
O menino correria pela casa e ele logo teria o que dizer, explicando que era
uma criança inquieta, que só seguia o que a mãe determinava. Mas como não havia
se lembrado de trazer o filho estava agora sucumbido diante do pai e com todo
aquele afeto para ele.
De
repente decidiu que não poderia mais esperar. Viera como um homem livre e
entrara pela porta com sua própria chave. Chegara incumbido pela necessidade de
estar ali com o pai. Viera, não viera? Então não se intimidasse, porque o medo
já não é uma qualidade dos heróis, hoje ele não poderia mais correr e
esconder-se no quintal ou nas outras ruas, até que houvesse calma em casa.
Então se decidiu logo. Falaria ao pai.
Mas antes distraiu-se com uma aranha no trapézio. Era uma aranha branca,
num fio invisível, pairando sobre o abismo.
Mas
como era tempo, não esperou o final do espetáculo, levantou-se do sofá em que
sentara-se para esperar e olhando para dentro, para o corredor dos quartos onde
a sombra era mais espessa procurou a palavra que deveria inicialmente dizer,
mas nem teve tempo para isso, o pai sem o olhar exatamente já encontrara o
caminho e ele apenas respondeu.
___ Bem. Está bem. Cresceu. Qualquer dia trago
ele aqui. E vim na verdade...
___...
___Faço
questão. Feliz aniversário.
Cumprimentou-o,
voltou-se para a porta e saiu sem a chave.
Um comentário:
O pai e o filho estão sozinhos diante do outro, duas esfinges indecifráveis...
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