terça-feira, 12 de novembro de 2019

CONTO: Feliz aniversário

Feliz aniversário
                                                                                                                     SÁBADO OU DOMINGO
Estava com o pai. Então ele entrara na casa como sempre o fizera há tempos. Ele entrara na casa como um menino que volta do quintal onde estivera durante toda a manhã com as galinhas e o gato trepado no muro e ouviria a voz da mãe avisando-o que a casa estava limpa.
            O que era verdade. Como ele soubesse depois de tudo não havia outra forma de continuar com a mesma inocência de antes. A verdade fora vislumbrada por ele como uma coisa exata e transparente e a mãe agora era uma realidade móvel, uma imagem retida para sempre na memória, e a sua voz era apenas uma lembrança, uma impressão guardada nos seus cinco sentidos. A verdade da dor era apenas suportável.
            Mas o pai sentava-se na cadeira ao lado da mesa quando ele entrou pela porta como quem tem a posse da chave. A chave estava na sua mão. Como esquecer o dia em que precisou deixar para sempre a chave sobre a mesa? Agora ele tinha outra chave. Olhou para dentro da casa. Tudo estava muito limpo. E agora que a mãe era uma ausente outras a limpavam. Os móveis parados na sala, a cozinha entrevista através do portal. Cheiro de fruta madura no aparador, mas seria isso palpável?
            Ilusão de quem pensa na mãe.
            O pai não o olhou logo. Não precisava. Reconhecia-o sem precisar olhá-lo. O menino que ele pusera nos braços. O menino que ele vestira e alimentara durante longos anos. O menino que ele ajudara a fazer um homem. Antes nada disso tivesse acontecido.
            Os dois não sabia quem havia pensado nisso.
            Depois o pai o olhou e ele sentiu que se o olhasse também haveria um confronto. Mas como ele agora era um homem limitou-se apenas retribuir ao pai a lisonja de sabê-lo em casa e bem disposto.
            Os filhos nunca estão definitivamente livres de seus pais até que esses estejam mortos e não lhe caiba mais do que a obrigação de lembrá-los como pessoas boas que viveram um dia na terra.
            A mãe não estava mais ali entre eles, sábado ou domingo à tarde, o sol era um farol boiando no crepúsculo. A mãe fora aos poucos ficando transparente e de repente ela não a viu mais. Não a viu na cozinha acertando o sal do almoço, nem sentada à mesa com o prato frio e nem a viu nunca mais no quarto diante do espelho com os cabelos longamente soltos.
            Depois de quase um ano inteiro ele voltava ali para compreender toda a verdade do que acontecera com a mãe. Morrera para sempre. A solidão do pai agora seria bem maior do que antes.
            Como se tivesse um acordo entre ambos, o filho pôs a chave da porta diante do pai, caminhou até a cozinha onde serviu-se de um copo d’água do qual só tomou metade. Velho hábito do menino antigo. O que faria ele ali? Veio cedo de mais? Se tivesse vindo à noite, sob a luz artificial das lâmpadas elétricas não teria tanta necessidade de fazer gestos largos para fingir que era confiante.
            Diante do pai precisava ser o homem no qual o menino transformara-se. Colocou o copo sobre o balcão da cozinha e voltou para a sala, decidido a sair logo dali. Mas isso não era uma coisa tão simples assim. Havia muito em jogo naquela visita. Ele não queria que se soubesse o quanto sua fraqueza de menino o fizera um homem covarde para essas coisas que exigem prontas providências.
            Foi então postar-se do outro lado da sala com a intenção de sentar-se no lugar mais cômodo possível de onde pudesse ser ouvido sem ser olhado de frente pelo pai. Não pode sentar-se logo, no entanto. Para sua surpresa estava diante de um remoto retrato de sua mãe. Era um retrato que estava há muito tempo na parede. A mãe o olhava de dentro da moldura com os olhos frios dos retratos estudados.
            Chegou então a pensar que aquela fotografia seria a sua salvação e do pai. Seria mesmo surpreendente se os dois pudessem compreender tudo sem que nenhuma palavra tivesse que ser dita. Foi só aí que ele olhou para o pai e o surpreendeu como ele, olhando para o retrato. Chegou a suspeitar que fosse já desnecessário permanecer ali.
            Mas ele sabia que era ilusão.
            Sentou-se e resolveu esperar. Como o homem que se tornara deveria agir? Pensou então no menino de antigamente que correria pela sala e buscaria dropes de hortelã nos bolsos do pai. Verdadeiros tesouros de açúcar e menta estavam escondidos ali. E agora como continuar? Ele e o pai sofreram a morte da mãe. Consumida pela doença até o limite do martírio. Os dois eram homens e como tal não podiam comunicar o sofrimento nem o amor que sentissem.
            Há coisas que só se permite aos meninos: caça aos dropes de hortelã nos bolsos das calças, desejo de fruta madura, liberdade pelas ruas e quintais, chorar quando sentir dor e amar pela primeira vez. Depois que o homem substitui o menino tudo isso sucumbe às outras exigências.
            Agora precisava concentrar forças para falar ou sair dali. Agora precisava de outra chave para abrir novas portas. Arrependeu-se então de não ter trazido o filho consigo. O menino correria pela casa e ele logo teria o que dizer, explicando que era uma criança inquieta, que só seguia o que a mãe determinava. Mas como não havia se lembrado de trazer o filho estava agora sucumbido diante do pai e com todo aquele afeto para ele.
            De repente decidiu que não poderia mais esperar. Viera como um homem livre e entrara pela porta com sua própria chave. Chegara incumbido pela necessidade de estar ali com o pai. Viera, não viera? Então não se intimidasse, porque o medo já não é uma qualidade dos heróis, hoje ele não poderia mais correr e esconder-se no quintal ou nas outras ruas, até que houvesse calma em casa. Então se decidiu logo. Falaria ao pai.  Mas antes distraiu-se com uma aranha no trapézio. Era uma aranha branca, num fio invisível, pairando sobre o abismo.
            Mas como era tempo, não esperou o final do espetáculo, levantou-se do sofá em que sentara-se para esperar e olhando para dentro, para o corredor dos quartos onde a sombra era mais espessa procurou a palavra que deveria inicialmente dizer, mas nem teve tempo para isso, o pai sem o olhar exatamente já encontrara o caminho e ele apenas respondeu.
             ___ Bem. Está bem. Cresceu. Qualquer dia trago ele aqui. E vim na verdade...
            ___...
            ___Faço questão. Feliz aniversário.
            Cumprimentou-o, voltou-se para a porta e saiu sem a chave.

Um comentário:

ILUMIARA disse...

O pai e o filho estão sozinhos diante do outro, duas esfinges indecifráveis...