Mãos
vazias
MARIANA
OLHOU O RELÓGIO grande na parede da cozinha e surpreendeu-se com a hora
avançada. Ainda que não houvesse se distraído durante toda a manhã tinha a
impressão de que perdera um tempo enorme e sabia que havia sério risco de não
estar com o almoço pronto quando Rodrigo chegasse em casa.
Ouviu
se os meninos continuavam no quintal e como eles lá estavam decidiu mandá-los
logo para o banho. Eram seus filhos, mas estavam crescendo, o amor que ela lhes
tinha alimentava-os todos os dias e como uma boa mãe contentava-se em vê-los
crescendo.
Depois
que tudo isto tivesse acontecido o que seria dela?
Não
pensou mais nisso porque não valia a pena pensar numa coisa que aconteceria sem
nenhuma explicação. Ela era apenas uma mãe e um dia não seria mais nem isso
para os meninos. De uma coisa ela tinha certeza: sempre haveria Rodrigo.
Logo,
estava salva.
Pôs
a frigideira no fogo, separou três tiras de espesso bife de vaca. Era por isso
que cresciam tão rápido. A carne e antes da carne seu leite de turina. E a
mágica vinha se fazendo todos os dias. Pôs os bifes no óleo bem quente, deixou
a vaca fritando e enquanto isso foi ao quintal.
Não
precisou procurá-los, estavam sob a mangueira. Eram dois meninos. Quando foi
que nasceram? Podia jurar que tinha sido ontem. Mas os longos braços de Murilo
e a independência de Paulinho impunha-lhe a certeza de que já fora a bom tempo
que eles tinham saído dela e agora calcavam com os próprios pés a terra do
mundo inteiro.
Ainda
era a mãe. Ela riu. Mas não foi o riso do gozo. Sentiu somente o prazer de
estar diante dos filhos, de poder vê-los e logo servi-los com seu arroz, seu
purê e seus bifes.
Chamou-os.
Olharam-na com a curiosidade natural dos meninos. Ela era a mãe e eles sabiam
disso. Como estavam cansados de brincar resolveram atendê-la logo. Correram até
ela e puseram-se em atenção. Ouviram quando Mariana os instruiu ao banho e sem
recusar nada se recolheram a casa tranquilamente.
Mariana
voltou ao fogão e verificou os bifes. Como não tinham chegado ainda foi
terminar o purê. Ouviu o barulho do chuveiro e as vozes dos meninos. Sentiu o
corpo enregelar-se. Não era nada. Mexeu o creme de leite. Não era nada. Mesmo
assim serviu-se de um copo d’água fria. A água era vivificante e ela precisava
sempre de mais vida.
Terminou
o almoço antes que ficasse muito sufocada.
Rodrigo
era funcionário público. Um publicano. Vinha da repartição almoçar em casa.
Dizia que ninguém sabia cozinhar como ela. Comia com maus modos o que a
incomodava, mas não a ponto de recriminá-lo. Os meninos comiam como ele.
Mariana procurava disciplinar as suas maneiras de comer quando o serviço se
acumulava tanto que o marido não tinha tempo de vir pra casa. Então se sentava
à mesa com as crianças e comia com elas.
Então
ela pôs a comida na mesa. Arroz, os bifes, o purê e uma salada de alfaces com
azeite. Serviram-se todos. Ela comeria depois. Eles comiam com pressa. Rodrigo
voltaria à repartição e os meninos iriam ao colégio. Funcionário de carreira
Rodrigo chegaria a chefe da secretaria. Do jeito que o governo cobra impostos
não faltaria nunca trabalho pra ele. Não entendia como ainda tinha tempo de vir
almoçar em casa.
Comia
em silêncio e os meninos o imitavam. Tinha a impressão que eles o estavam
imitando em tudo. Retirou-se da cozinha onde eles comiam e foi secar o
banheiro. Sabia que as crianças o haviam encharcado. Era consciente de tudo. A mulher
que cruza pontes e encontra-se com a sua sombra no fundo da água transparente.
Às vezes pensava nos peixes que nadam no aquário e batem contra o vidro quando
a luz atravessa a água.
Era
nessas ocasiões que tinha vontade de chorar. Como uma mulher que é fraca e
dócil não tinha coragem para voos. Sentou-se numa cadeira vazia. Raras sãos as cadeiras
vazias desse mundo. O quarto dos meninos cheirava a amaciante. Lembrou-se que
era da roupa lavada que deixara sobre o beliche. Era dia de passar roupa. Faria
tudo isto durante a tarde quando tivesse mais tempo livre.
Na
cozinha tinham terminado o almoço. Apressou-se para atendê-los. Rodrigo queria
apenas um café. Os meninos precisavam ficar prontos para o colégio. Solicitou
que fossem vestir os uniformes e guardar os materiais. Preparou o café. O cheiro
do café cresceu no ar abafado da cozinha. O marido abriu as mãos espalmadas
sobre a toalha da mesa. Ela o viu contar as manchas de gordura que respingavam
o pano. Precisava lavar aquilo de uma vez.
Mas
o café estava pronto. Serviu-lhe uma xícara. O café era como um homem. Dominava
toda a casa. Sentia-se seu odor em todos os cômodos. Só quando não se pensava
mais nele é que não se notava mais a sua presença.
Rodrigo
bebeu todo o café inclinando-se para frente na cadeira. Ela estava tranquila
diante de tudo. Acostumara-se mesmo com esse momento que vinha repetindo-se,
repetindo-se, repetindo-se. Ela não sabia dizer se podia ser diferente ou se lá
nas estrelas tudo já estava bem escrito para ser assim mesmo.
Mariana
não era a mulher certa para pensar e compreender sozinha os mistérios das
coisas que aconteciam todos os dias de modo tão igual e constante. Ela não só
imaginava que existissem outras mulheres nas casas da rua e que essas mesmas
mulheres eram como ela, tinham filhos, marido e cuidavam da casa. Ficavam
inquietas e podiam até chorar. Mas eram fortes por dentro, porque afinal de
contas não havia mesmo saída dessa gaiola.
Arrependeu-se
da expressão e teve medo de ter falado alto, mas olhou para Rodrigo e como ele
bebia o último gole de café com os olhos no fundo da xícara não fora ouvida.
Como poderia ter sido se também não se fizera audível?
Respirou
fundo e apertou os dedos com a outra mão. Do outro lado da mesa Rodrigo
levantava-se e ela o acompanhou até a sala. Tinha as costas largas e musculosas.
Dorso de um touro. As pernas sustentavam todo o corpo. Rijo, forte, tronco de
duzentos metros.
Viu-o
dirigir-se ao banheiro, ouviu-o lavar-se na pia. Voltou para a sala onde daí a
pouco ele também apareceu. Precisava volta ao trabalho. Ela compreendeu que
assim devia ser e acompanhou-o a até a porta. Quando o carro desceu a rua
fechou a porta por dentro e foi ver se os filhos já estavam vestidos.
Apenas
um não conseguira calçar as meias. Ajudou-o e os levou fora, para a rua. Quando
os meninos partiram ela entrou na casa. Voltou a fechar a porta por dentro e
teve uma sensação de travessia. Não tinha tempo para isto. Precisava terminar
todo o serviço. A tarde seria pouca para ela que tinha muito que fazer.
Foi
ao quarto e tomou nos braços a pilha de roupa lavada. O cheiro feminino do
amaciante comoveu-a e teve vontade de chorar. Estava impossível hoje. Parecia
condenada a ser mulher até a náusea nesse dia. Decidiu não impor a si essa
condição. Não podia contar com ninguém enquanto ela sonhava apanhar flores num
jardim de nuvens. Levou as roupas até a cozinha. Faria o serviço sobre a mesa
do almoço.
Antes
de começar o trabalho sentou-se outra vez sobre uma cadeira vazia. O dia de
hoje estava cheio de cadeiras vazias e ela tinha muita sorte de encontrá-las
pelo caminho. Respirou compassadamente sentindo o ar entrar nos seus pulmões.
Mas aí teve medo. Podia morrer sufocada. Incomodava-a sentir-se tão pronta para
levitar. Não tinha asas para isso e afinal de contas quem era ela para pensar
em pássaros e voos quando estava jungida pelas pernas? Não, não, não. Não
preciso disso, os frutos mais altos, esses que não chegam às mãos não são para
nós.
Levantou-se
e deu uma volta completa em torno da mesa. Parou diante da pilha de roupas
lavadas e pousou as mãos sobre elas. Tomou de uma camisa de Rodrigo. Era branca
e bem lavada. Cheirava a água limpa. Era um trabalho meticuloso e esforçado.
Trabalhava como uma operária e sua colmeia ia prosperando.
Como
chegara até ali?
Voltou-se
para a porta do quintal. Lá fora o sol brilhava sobre o mundo inteiro. Viu que
a cadeira continuava vazia. Quis sentar-se outra vez, mas não deu nenhum passo
para isto. Caminhou para fora. Achou que não chegaria nunca e começou a correr.
Correu até o meio do quintal. Olhou o céu. Era tudo azul. Uma imensa abóbada
azul, mas o sol iluminava com uma força irresistível.
O ar
estava quente e queimava os pulmões. Sentiu prazer nisto. Sorveu então um
grosso rolo de ar e foi como se começasse um incêndio dentro dela. Mas o que era
isso? Então quis resistir porque tinha a impressão que estava desmoronando. Se ela
tinha medo precisava voltar para dentro e continuar no seu trapézio devido.
Sempre achou que era um risco caminhar sobre pedras soltas. Agora tinha
acontecido e o perigo estava espreitando-a.
“Voltarei”.
Caminhou
para dentro, mas antes de atravessar a porta parou subitamente como quem
encontra um sapo na soleira. Tinha visto diante de si um súbito relâmpago.
Antes de entrar aproveitou que trouxera a camisa de Rodrigo nas mãos e rasgou-a
em tiras. Primeiro tentou com as mãos, como o tecido restisse abriu a costura
com dentes. Rasgou o primeiro pedaço, depois continuou rasgando-a com os dentes
e as mãos. Quando concluiu o serviço jogou tudo no quintal e dando uma longa
gargalhada sumiu-se para dentro de casa.
Quando
todos voltaram encontraram-na sozinha no escuro. Tinha preferido não acender as
luzes. Mas afinal de contas alguém achou melhor iluminar a casa e ela teve de
ceder também a isto. Estava muito calma e olhou os meninos bem de perto para
não esquecê-los quando já não fosse mais a mãe deles.
Então
os viu comer o seu jantar. Teve raiva disto. Comiam como cães. Eram em verdade
muitos cães. Ela os alimentava. Velha cadela que procurava restos para viver e
dar a vida. Se não tivesse peitos quem teria vivido até ali naquela casa?
Sempre fora a mãe irrestritamente. As órbitas dos olhos queimavam e ela achou
que tinha febre.
Caminhava
pela cozinha procurando quebrar algum objeto para impor um fim aquela
monotonia. Detestava todas essas mastigações e um princípio de ódio e muito
rancor começava a vicejar no coração dela. Bebeu água. Não podia ser
intransigente consigo mesmo? Um dia aquelas duas flores que ela tinha plantado
dentro dela olhariam para trás e não se lembrariam de mais nada do que fora um
dia a mãe.
Se
pudesse estava disposta a agir como louca. Ainda assim não se permitiria mais
trair-se. Como ninguém percebeu que a pilha de roupa fora deixada
propositalmente sobre uma cadeira na cozinha ela deu a volta na mesa e apoiou
as mãos sobre o espaldar da cadeira de Rodrigo. Ele acabava de comer. Todo
mundo tinha jantado. Agora ela via caras alegres e alimentadas diante dela.
Em
silêncio Mariana caminhou pela casa. Estava insone. Se o telefone chamasse ela
teria alguma coisa para fazer aquela hora. Mas não tinha mais nada a fazer.
Caminhou para o quarto. Poderia dormir agora? Antes de chegar à porta voltou
pelo corredor para a cozinha e tomou mais água. Abriu a gaveta e viu o metal
glabro da faca. Algumas peças de roupa tinham caído no chão. Riu-se disso, não
havia mais nenhuma necessidade de replantio nesse jardim. Riu com mais força.
Precisavam saber que ela não dormia nem dormiria nunca mais depois dessa noite
maravilhosa.
Rodrigo
a amara em silêncio. E ela gostava do corpo limpo do marido, a sua condição de
mulher sentia prazer com Rodrigo. Nunca
se permitira não desfrutar desse amor. Os dois amantes que se amavam. Quando os
dois se deitaram juntos pela primeira vez ela ainda era uma virgem. Ele gostou
que ela ainda fosse uma virgem. Nesse dia ela não sentiu nenhum prazer.
Depois
precisaram casar-se e ela se refugiou nele e nunca mais deixou de amá-lo.
Mariana anotava num caderno os dias em que Rodrigo a procurava, depois lia tudo
sozinha e se excitava com isto. Fazia então o amor das solitárias. Não era
triste amar assim, mas a felicidade que encontrara impusera-lhe determinadas
restrições.
Amava
porque era mulher e tinha muito direito ao amor. Rodrigo era o que ela possuía
e nunca seria livre enquanto ele estivesse ali. Tudo no mundo tem uma
contradição. Agora Mariana estava suficientemente instruída para nunca mais
voltar atrás.
Voltou
ao quarto. Atravessou à sala, a lua tinha nascido lá fora. Quarto minguante viu
pelas frinchas da janela, mas não deu muita atenção a isto, atravessou o
corredor e empurrou a porta do quarto sem fazer barulho. Rodrigo dormia preso
nas amarras de algum sonho. Seu cheiro trescalava pelo cômodo inteiro. Ouviu
sua respiração grossa. Durante o amor haviam suado e seus corpos tinham molhado
os lençóis. Ela permitira-se a isto porque o amava.
Caminhou
para a cama. Iria deitar-se ao seu lado. Mas já agora sabia que nunca seria
livre por causa do amor. Rodrigo a bebera. Era isto então o amor eterno que
sempre sonhavam encontrar. Como fora parar em suas mãos? Ela não sabia, mas
compreendia que de fato insistira para que isto acontecesse com ela. Trabalhara
muito com as peças do bastidor para chegar afinal a tão bom resultado. Agora
que tinha tanto em suas mãos nem sabia o que fazer com esses frutos que
apanhara sozinha. Precisava largar alguns deles para voltar a ser livre pra
voar.
Caminhou
para a cama e na penumbra espessa do quarto viu-se o claro metal da faca que
trouxera faiscar na límpida claridade que vinha do corredor da casa. Mariana ajoelhou-se
aos pés da cama ao lado de Rodrigo, sentiu pela última vez sua respiração
quente aquecer-lhe o rosto e ainda com a mão incerta desfechou três golpes no
lençol.
O
sangue de Rodrigo escorreu quente e úmido, mas inútil. Na treva indecisa do
quarto, Mariana não o viu morrer, nem precisava disto. Agora não tinha mais
nada para fazer. Antes de amanhecer arrastou o corpo para o quintal, abriu a
tampa da cisterna e o depôs lá dentro. Agora o amava incondicionalmente, pois
dera a própria vida para que ela enfim pudesse distender as asas e pela
primeira vez pensar quem sabe?
Em
não estar oscilando num trapézio.
Carlos Souza
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