sexta-feira, 15 de novembro de 2019

CONTO: Mãos Vazias


Mãos vazias

        MARIANA OLHOU O RELÓGIO grande na parede da cozinha e surpreendeu-se com a hora avançada. Ainda que não houvesse se distraído durante toda a manhã tinha a impressão de que perdera um tempo enorme e sabia que havia sério risco de não estar com o almoço pronto quando Rodrigo chegasse em casa.
         Ouviu se os meninos continuavam no quintal e como eles lá estavam decidiu mandá-los logo para o banho. Eram seus filhos, mas estavam crescendo, o amor que ela lhes tinha alimentava-os todos os dias e como uma boa mãe contentava-se em vê-los crescendo.
         Depois que tudo isto tivesse acontecido o que seria dela?
         Não pensou mais nisso porque não valia a pena pensar numa coisa que aconteceria sem nenhuma explicação. Ela era apenas uma mãe e um dia não seria mais nem isso para os meninos. De uma coisa ela tinha certeza: sempre haveria Rodrigo.
         Logo, estava salva.
         Pôs a frigideira no fogo, separou três tiras de espesso bife de vaca. Era por isso que cresciam tão rápido. A carne e antes da carne seu leite de turina. E a mágica vinha se fazendo todos os dias. Pôs os bifes no óleo bem quente, deixou a vaca fritando e enquanto isso foi ao quintal.
         Não precisou procurá-los, estavam sob a mangueira. Eram dois meninos. Quando foi que nasceram? Podia jurar que tinha sido ontem. Mas os longos braços de Murilo e a independência de Paulinho impunha-lhe a certeza de que já fora a bom tempo que eles tinham saído dela e agora calcavam com os próprios pés a terra do mundo inteiro.
         Ainda era a mãe. Ela riu. Mas não foi o riso do gozo. Sentiu somente o prazer de estar diante dos filhos, de poder vê-los e logo servi-los com seu arroz, seu purê e seus bifes.
         Chamou-os. Olharam-na com a curiosidade natural dos meninos. Ela era a mãe e eles sabiam disso. Como estavam cansados de brincar resolveram atendê-la logo. Correram até ela e puseram-se em atenção. Ouviram quando Mariana os instruiu ao banho e sem recusar nada se recolheram a casa tranquilamente.
         Mariana voltou ao fogão e verificou os bifes. Como não tinham chegado ainda foi terminar o purê. Ouviu o barulho do chuveiro e as vozes dos meninos. Sentiu o corpo enregelar-se. Não era nada. Mexeu o creme de leite. Não era nada. Mesmo assim serviu-se de um copo d’água fria. A água era vivificante e ela precisava sempre de mais vida.
         Terminou o almoço antes que ficasse muito sufocada.
         Rodrigo era funcionário público. Um publicano. Vinha da repartição almoçar em casa. Dizia que ninguém sabia cozinhar como ela. Comia com maus modos o que a incomodava, mas não a ponto de recriminá-lo. Os meninos comiam como ele. Mariana procurava disciplinar as suas maneiras de comer quando o serviço se acumulava tanto que o marido não tinha tempo de vir pra casa. Então se sentava à mesa com as crianças e comia com elas.
         Então ela pôs a comida na mesa. Arroz, os bifes, o purê e uma salada de alfaces com azeite. Serviram-se todos. Ela comeria depois. Eles comiam com pressa. Rodrigo voltaria à repartição e os meninos iriam ao colégio. Funcionário de carreira Rodrigo chegaria a chefe da secretaria. Do jeito que o governo cobra impostos não faltaria nunca trabalho pra ele. Não entendia como ainda tinha tempo de vir almoçar em casa.
         Comia em silêncio e os meninos o imitavam. Tinha a impressão que eles o estavam imitando em tudo. Retirou-se da cozinha onde eles comiam e foi secar o banheiro. Sabia que as crianças o haviam encharcado. Era consciente de tudo. A mulher que cruza pontes e encontra-se com a sua sombra no fundo da água transparente. Às vezes pensava nos peixes que nadam no aquário e batem contra o vidro quando a luz atravessa a água.
         Era nessas ocasiões que tinha vontade de chorar. Como uma mulher que é fraca e dócil não tinha coragem para voos. Sentou-se numa cadeira vazia. Raras sãos as cadeiras vazias desse mundo. O quarto dos meninos cheirava a amaciante. Lembrou-se que era da roupa lavada que deixara sobre o beliche. Era dia de passar roupa. Faria tudo isto durante a tarde quando tivesse mais tempo livre.


         Na cozinha tinham terminado o almoço. Apressou-se para atendê-los. Rodrigo queria apenas um café. Os meninos precisavam ficar prontos para o colégio. Solicitou que fossem vestir os uniformes e guardar os materiais. Preparou o café. O cheiro do café cresceu no ar abafado da cozinha. O marido abriu as mãos espalmadas sobre a toalha da mesa. Ela o viu contar as manchas de gordura que respingavam o pano. Precisava lavar aquilo de uma vez.
         Mas o café estava pronto. Serviu-lhe uma xícara. O café era como um homem. Dominava toda a casa. Sentia-se seu odor em todos os cômodos. Só quando não se pensava mais nele é que não se notava mais a sua presença.
         Rodrigo bebeu todo o café inclinando-se para frente na cadeira. Ela estava tranquila diante de tudo. Acostumara-se mesmo com esse momento que vinha repetindo-se, repetindo-se, repetindo-se. Ela não sabia dizer se podia ser diferente ou se lá nas estrelas tudo já estava bem escrito para ser assim mesmo.
         Mariana não era a mulher certa para pensar e compreender sozinha os mistérios das coisas que aconteciam todos os dias de modo tão igual e constante. Ela não só imaginava que existissem outras mulheres nas casas da rua e que essas mesmas mulheres eram como ela, tinham filhos, marido e cuidavam da casa. Ficavam inquietas e podiam até chorar. Mas eram fortes por dentro, porque afinal de contas não havia mesmo saída dessa gaiola.
         Arrependeu-se da expressão e teve medo de ter falado alto, mas olhou para Rodrigo e como ele bebia o último gole de café com os olhos no fundo da xícara não fora ouvida. Como poderia ter sido se também não se fizera audível?
         Respirou fundo e apertou os dedos com a outra mão. Do outro lado da mesa Rodrigo levantava-se e ela o acompanhou até a sala. Tinha as costas largas e musculosas. Dorso de um touro. As pernas sustentavam todo o corpo. Rijo, forte, tronco de duzentos metros.
         Viu-o dirigir-se ao banheiro, ouviu-o lavar-se na pia. Voltou para a sala onde daí a pouco ele também apareceu. Precisava volta ao trabalho. Ela compreendeu que assim devia ser e acompanhou-o a até a porta. Quando o carro desceu a rua fechou a porta por dentro e foi ver se os filhos já estavam vestidos.
         Apenas um não conseguira calçar as meias. Ajudou-o e os levou fora, para a rua. Quando os meninos partiram ela entrou na casa. Voltou a fechar a porta por dentro e teve uma sensação de travessia. Não tinha tempo para isto. Precisava terminar todo o serviço. A tarde seria pouca para ela que tinha muito que fazer.
         Foi ao quarto e tomou nos braços a pilha de roupa lavada. O cheiro feminino do amaciante comoveu-a e teve vontade de chorar. Estava impossível hoje. Parecia condenada a ser mulher até a náusea nesse dia. Decidiu não impor a si essa condição. Não podia contar com ninguém enquanto ela sonhava apanhar flores num jardim de nuvens. Levou as roupas até a cozinha. Faria o serviço sobre a mesa do almoço.
         Antes de começar o trabalho sentou-se outra vez sobre uma cadeira vazia. O dia de hoje estava cheio de cadeiras vazias e ela tinha muita sorte de encontrá-las pelo caminho. Respirou compassadamente sentindo o ar entrar nos seus pulmões. Mas aí teve medo. Podia morrer sufocada. Incomodava-a sentir-se tão pronta para levitar. Não tinha asas para isso e afinal de contas quem era ela para pensar em pássaros e voos quando estava jungida pelas pernas? Não, não, não. Não preciso disso, os frutos mais altos, esses que não chegam às mãos não são para nós.
         Levantou-se e deu uma volta completa em torno da mesa. Parou diante da pilha de roupas lavadas e pousou as mãos sobre elas. Tomou de uma camisa de Rodrigo. Era branca e bem lavada. Cheirava a água limpa. Era um trabalho meticuloso e esforçado. Trabalhava como uma operária e sua colmeia ia prosperando.
         Como chegara até ali?
         Voltou-se para a porta do quintal. Lá fora o sol brilhava sobre o mundo inteiro. Viu que a cadeira continuava vazia. Quis sentar-se outra vez, mas não deu nenhum passo para isto. Caminhou para fora. Achou que não chegaria nunca e começou a correr. Correu até o meio do quintal. Olhou o céu. Era tudo azul. Uma imensa abóbada azul, mas o sol iluminava com uma força irresistível.
         O ar estava quente e queimava os pulmões. Sentiu prazer nisto. Sorveu então um grosso rolo de ar e foi como se começasse um incêndio dentro dela. Mas o que era isso? Então quis resistir porque tinha a impressão que estava desmoronando. Se ela tinha medo precisava voltar para dentro e continuar no seu trapézio devido. Sempre achou que era um risco caminhar sobre pedras soltas. Agora tinha acontecido e o perigo estava espreitando-a.
         “Voltarei”.
         Caminhou para dentro, mas antes de atravessar a porta parou subitamente como quem encontra um sapo na soleira. Tinha visto diante de si um súbito relâmpago. Antes de entrar aproveitou que trouxera a camisa de Rodrigo nas mãos e rasgou-a em tiras. Primeiro tentou com as mãos, como o tecido restisse abriu a costura com dentes. Rasgou o primeiro pedaço, depois continuou rasgando-a com os dentes e as mãos. Quando concluiu o serviço jogou tudo no quintal e dando uma longa gargalhada sumiu-se para dentro de casa.



         Quando todos voltaram encontraram-na sozinha no escuro. Tinha preferido não acender as luzes. Mas afinal de contas alguém achou melhor iluminar a casa e ela teve de ceder também a isto. Estava muito calma e olhou os meninos bem de perto para não esquecê-los quando já não fosse mais a mãe deles.
         Então os viu comer o seu jantar. Teve raiva disto. Comiam como cães. Eram em verdade muitos cães. Ela os alimentava. Velha cadela que procurava restos para viver e dar a vida. Se não tivesse peitos quem teria vivido até ali naquela casa? Sempre fora a mãe irrestritamente. As órbitas dos olhos queimavam e ela achou que tinha febre.
         Caminhava pela cozinha procurando quebrar algum objeto para impor um fim aquela monotonia. Detestava todas essas mastigações e um princípio de ódio e muito rancor começava a vicejar no coração dela. Bebeu água. Não podia ser intransigente consigo mesmo? Um dia aquelas duas flores que ela tinha plantado dentro dela olhariam para trás e não se lembrariam de mais nada do que fora um dia a mãe.
         Se pudesse estava disposta a agir como louca. Ainda assim não se permitiria mais trair-se. Como ninguém percebeu que a pilha de roupa fora deixada propositalmente sobre uma cadeira na cozinha ela deu a volta na mesa e apoiou as mãos sobre o espaldar da cadeira de Rodrigo. Ele acabava de comer. Todo mundo tinha jantado. Agora ela via caras alegres e alimentadas diante dela.
         Em silêncio Mariana caminhou pela casa. Estava insone. Se o telefone chamasse ela teria alguma coisa para fazer aquela hora. Mas não tinha mais nada a fazer. Caminhou para o quarto. Poderia dormir agora? Antes de chegar à porta voltou pelo corredor para a cozinha e tomou mais água. Abriu a gaveta e viu o metal glabro da faca. Algumas peças de roupa tinham caído no chão. Riu-se disso, não havia mais nenhuma necessidade de replantio nesse jardim. Riu com mais força. Precisavam saber que ela não dormia nem dormiria nunca mais depois dessa noite maravilhosa.
         Rodrigo a amara em silêncio. E ela gostava do corpo limpo do marido, a sua condição de mulher sentia prazer com Rodrigo.  Nunca se permitira não desfrutar desse amor. Os dois amantes que se amavam. Quando os dois se deitaram juntos pela primeira vez ela ainda era uma virgem. Ele gostou que ela ainda fosse uma virgem. Nesse dia ela não sentiu nenhum prazer.
         Depois precisaram casar-se e ela se refugiou nele e nunca mais deixou de amá-lo. Mariana anotava num caderno os dias em que Rodrigo a procurava, depois lia tudo sozinha e se excitava com isto. Fazia então o amor das solitárias. Não era triste amar assim, mas a felicidade que encontrara impusera-lhe determinadas restrições.
         Amava porque era mulher e tinha muito direito ao amor. Rodrigo era o que ela possuía e nunca seria livre enquanto ele estivesse ali. Tudo no mundo tem uma contradição. Agora Mariana estava suficientemente instruída para nunca mais voltar atrás.
         Voltou ao quarto. Atravessou à sala, a lua tinha nascido lá fora. Quarto minguante viu pelas frinchas da janela, mas não deu muita atenção a isto, atravessou o corredor e empurrou a porta do quarto sem fazer barulho. Rodrigo dormia preso nas amarras de algum sonho. Seu cheiro trescalava pelo cômodo inteiro. Ouviu sua respiração grossa. Durante o amor haviam suado e seus corpos tinham molhado os lençóis. Ela permitira-se a isto porque o amava.
         Caminhou para a cama. Iria deitar-se ao seu lado. Mas já agora sabia que nunca seria livre por causa do amor. Rodrigo a bebera. Era isto então o amor eterno que sempre sonhavam encontrar. Como fora parar em suas mãos? Ela não sabia, mas compreendia que de fato insistira para que isto acontecesse com ela. Trabalhara muito com as peças do bastidor para chegar afinal a tão bom resultado. Agora que tinha tanto em suas mãos nem sabia o que fazer com esses frutos que apanhara sozinha. Precisava largar alguns deles para voltar a ser livre pra voar.

         Caminhou para a cama e na penumbra espessa do quarto viu-se o claro metal da faca que trouxera faiscar na límpida claridade que vinha do corredor da casa. Mariana ajoelhou-se aos pés da cama ao lado de Rodrigo, sentiu pela última vez sua respiração quente aquecer-lhe o rosto e ainda com a mão incerta desfechou três golpes no lençol.
         O sangue de Rodrigo escorreu quente e úmido, mas inútil. Na treva indecisa do quarto, Mariana não o viu morrer, nem precisava disto. Agora não tinha mais nada para fazer. Antes de amanhecer arrastou o corpo para o quintal, abriu a tampa da cisterna e o depôs lá dentro. Agora o amava incondicionalmente, pois dera a própria vida para que ela enfim pudesse distender as asas e pela primeira vez pensar quem sabe?
         Em não estar oscilando num trapézio.
Carlos Souza

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