quarta-feira, 13 de novembro de 2019

CONTO: Homem feito


Homem feito
                                                                   ELA PENSOU QUE ELE a estreitava nos braços enquanto ela inclinava-se para perto dele e as bocas se encontravam no caminho para o primeiro beijo de mil outros que viriam depois e longas carícias de muitos dedos e ardentes línguas de fogo que os queimariam por dentro calcinando-os com todo o amor com o qual podiam amar-se, por que afinal estavam apenas no princípio de tudo.
         Ele olhou-a sem compreender o fogo que a transia por dentro, sem se dar pelas chispas que fulguravam nas órbitas dela e apenas conjeturou que ela, mulher, chorava. Ele era como quem pensava que as mulheres sempre estão à beira de um vale de lágrimas. Não se ocuparia muito com isso e tinha certeza de que logo ela voltaria estar com ele. Limitou-se a apertar as mãos dela e para mostrar-lhe maior acolhimento diante do sofrimento dela ele cingiu-lhe a cintura com o braço esquerdo.
         Ela não achou nada conveniente à atitude dele, mas assim mesmo fingiu que estava tudo bem e de tanto fingir acabou convencida de que se não estava mesmo bem, era preciso não requisitar tanto dele, um menino que um dia seria um homem. E assim continuaram em paz, ocupando seus devidos lugares no banco da pracinha ao entardecer.
         Era o namoro. Ele era o menino e ela era a mulher. Quando os dois tinham começado aquela aventura de amar? Ela não sabia explicar como foi que chegaram até ali, mas conhecia a circunstância do começo de tudo. Como ele era um dos garotos que ela achava mais bonito da escola, e depois como os dois se encontraram lendo o mesmo livro de poesia da biblioteca da escola e finalmente o dia em que eles retiveram as mãos entrelaçadas por algum tempo e finalmente souberam que era alguma forma de amar.
         Com o amor vieram também as outras atribulações: estar sempre juntos em toda parte onde estivessem os dois, a conivência que os constrangia a buscar no olhar do outro uma constante aquiescência, ser bobinho nas ocasiões próprias, e evidentemente o ciúme. Ela queria bailar sobre tudo isto, principalmente porque não era romântica e nem se preocupava com excessos de amor. Mas onde encontrar forças que a pudesse conjurar contra todos esses estatutos do amor? Ele compreenderia que sua namorada fizesse tantas concessões antirromânticas?
         Ela descansou as mãos sobre o colo e seus dedos inquietos começaram a brincar com a barra do vestido. Mas, impaciente ela tomou-lhe uma das mãos e contou pausadamente para não errar na conta, cinco dedos naquela mão. Na outra também deve haver cinco dedos supõe-se. Voltou a contar cada dedo das mãos dele, demorando-se para certificar-se corretamente da fabulosa soma.
         Eram longos os dedos dele. Era branca e molhada a palma da mão dele, mas então quis saber tudo sobre a mão. Cheiro, gosto e toda a extensão dela. Virou-a para cima e a olhou através da luz do sol. Era uma grossa mão de garoto preto, escura, que continuava no antebraço, no braço, e finalmente era todo o corpo dele. Longos dedos nodosos, veias salientes que faziam a vida circular. Cobriu-a com a sua mão que era branca e como ela sabia cheirava a detergente.
         Ele apertou-a no lado e ela sentiu sua força masculina revigorar-se num instante para arrebatá-la, dispôs-se a deixar-se ir sem resistência, o corpo dela enlanguesceu e ela curvou-se para o lado permitindo-o avançar. Os cabelos dela eram longos e o vento que passava agora entrava neles como nas folhas das árvores.
         Ele enovelou dois dedos nas mexas que caiam ao longo das espáduas dela. Seus dedos eram longos e suas mãos podiam colher todos os fios.
         Ele aventurou-se naquele espesso horizonte. Era uma descoberta que tinha feito. Quando é que tinha chegado até ali ele não sabia explicar, mas podia concluir que tinha sido desde o começo. Ela era a garota que ele olhava e como um dia os dois haviam se encontrado depois do futebol, grande foi a sua surpresa quando ela devolveu-lhe a bola. Então uma vez seus dedos percorreram toda a extensão dos longuíssimos cabelos dela e ele sentiu prazer com isto.
         Mas agora havia um impasse entre eles. Ela retinha a mão dele entre as suas e ele enovelara todos os dedos da outra mão nos cabelos dela. Impasse que ele esperou que fosse desfeito por ela que logo largaria sua mão e então livre, ele poderia trazê-la para mais perto dele.
         Numa tarde onde um menino ama uma menina podem até mesmo os passarinhos cantarem escondidos na folhagem. Foi o que pensou, mas não pensou com tanta pretensão. Era um garoto e gostava de uma garota. Mas ele também pensava naquele momento que adoraria voltar para casa, por um calção, pegar seus tênis, ir para o futebol com os outros.
         Ela poderia ir com ele. Sentaria na arquibancada da quadra enquanto ele marcaria alguns gois para ela. Sendo possível seria muito bom que isso acontecesse de verdade. Então ele tentou forçar sua mão para retirá-la da dela, mas não quis insistir nisso, pois teve a impressão que ela quis mantê-lo preso.
         Era bom estar com ele e ela gostava que os dois ficassem juntos em algum lugar onde pudessem ser exclusivos para si mesmos. Nessa tarde quando ela chegou a casa dele achou que o encontraria vestido para o futebol, mas o encontrou livre, logo concluiu que poderiam caminhar juntos, sentar lado a lado na pracinha e ver o que aconteceria depois. Eram coisas tão pequenas, mas eram muito legais de fazer e ela gostava muito desses pequenos gestos dele.
         Foi então que ela largou-lhe a mão, virou-se para ele e enlaçou-lhe o pescoço com seus braços, ele inclinou a cabeça para ela, ia beijá-la, mas resistiu a tempo. Não pode beijar logo sua garota, pois viu que ela ria fácil para ele, e era o riso da menina que ela gostava e ele achou-a linda demais. Os dois tinham começado o amor na escola e agora o traziam para o meio da rua. Ele sorriu para ela e os dois compreenderam que eram cúmplices de algum mistério que pairava sobre aquele final de tarde em Joaseiro.
         Dentro dela o sangue corria com força, assim de frente para o menino que ela gostava era muito bom. E o rosto dele todo iluminado pelo sorriso que ele derramava e os olhos que olhavam através dela e os pontos das espinhas irrompendo espaçadamente na face negra, ela também possuía espinhas que pontilhavam sua pele branca, mas nele ela gostava, no rosto dela já não estava disposta assim.
         Sorriu-lhe acolhedora, ele retribuiu-lhe o sorriso, decidiu que beijaria longamente tão grossos lábios, que teria grande prazer em ser marcada pelos alvíssimos dentes dele, que ficaria sem sentidos quando ele a apertasse com força nos braços.
         Ela tinha certeza que ficaria louca, louquinha como uma menina má enquanto o amor deles crescesse como uma flor dentro de cada um. Sabia que o garoto que ela escolhera gostar fora uma sorte, de tantos meninos tinha conseguido exatamente aquele que ela achava mais bonito era sem dúvida muito sortuda.
         Inclinou-se para ele e o viu retesar o corpo, inclinou-se mais e ele a amparou com as duas mãos. Tinha forças para segurá-la, trouxe-a para perto dele, sentiu então o calor do seu corpo, era a menina que ele gostava, beijou-a. Então sentiu-lhe a língua na boca, ela era doce. Ela também o procurou no beijo, encontrou-o primeiro nos beiços vastos, depois na saliva quente e finalmente na sua língua longa e invasiva. Consumiram-se. Era homem feito ele sentiu. Ele era homem feito ela soube disto entre os dedos.
         Insistiram. Não havia mundo, não havia lugar público. Sumiram-se as vozes da rua, o sol parou, o vento suspendeu suas asas, voavam na velocidade de cavalo louco.
         Quando acabaram ela aquietou-se sobre seu peito. Ele voltou aos seus cabelos com longuíssimos dedos. O vento passava varrendo as folhas do chão e levando os últimos indícios da tarde. 

Carlos Souza

Um comentário:

Anônimo disse...

excelente