domingo, 24 de novembro de 2019

CONTO: Iniciação do Pássaro



Iniciação do Pássaro


         Ele era um menino e como todos os meninos do mundo, perseguia as galinhas pelo quintal. As galinhas particularmente eram bichos engraçados. Eram animais bem bobos que não voavam, mas que gostavam de subir na cerca do quintal ou no beiral do telhado e se lançar de lá ao chão. Isso nunca dava bons resultados, mas não impedia que outras galinhas executassem o feito ou que a mesma galinha voltasse a insistir no dia seguinte. Era coisa que cansava logo e ele passava imediatamente a outras brincadeiras.
         Então, enquanto as galinhas ciscavam no molhado ele, o menino, brincava com as formigas. Também era divertido pegar moscas e privando-as das asas servi-las para as formigas. Primeiro havia uma formiga que achava a mosca, depois essa formiga encontrava outra formiga e mais formigas vinham e rodeavam a mosca, depois uma pegava no pé da mosca e muitas outras avançavam. A mosca corria pela trilha e logo dezenas de formigas iam atrás dela. Havia uma tentativa de resistência, mas as formigas logo venciam. A mosca que não podia mais voar virava as patas para cima e as formigas providenciavam seu transporte até o formigueiro.
         O menino acompanhava toda a operação e o trajeto das formigas. Às vezes procurava complicar a vida delas colocando algum obstáculo na trilha. Um seixo, um graveto, uma folha. Mas tudo elas superavam. Cansou-se também dessa brincadeira e passou à outra.
         Subiu na mangueira e voou no trapézio dos galhos mais altos. Sentiu então o característico frio na barriga, mas a mãe não queria aquilo, então ela veio lá de dentro, prontamente alertada por Nina e o impediu de continuar. Saltou para os galhos mais baixos onde não dava para fazer trapézio. Deitou-se no mais grosso e ficou em silêncio escutando o vento nas folhas e a agitação das galinhas lá embaixo na sombra.
         Foi então que o menino viu que o urubu que voava sobre as casas da rua veio e pousou na cerca do quintal. Primeiro teve uma sensação de desconforto natural diante da ave aziaga. Via-a, mas ela também o via. Eram dois seres, ele era um menino e ela era uma ave. Foi então que ele considerou que o urubu era na verdade uma grande ave preta.
         Agora só havia nele o desconforto da cabeça mal voltada. Decidiu então. Saltou do galho com muito cuidado para não causar comoção nas galinhas. Agachou-se atrás do tanque, viu-o inclinar a cabeça para a direita e para a esquerda. Seu coração ameaçava disparar. Precisou controlar-se para não por tudo a perder. Então teve medo que Nina viesse lá de dentro e estragasse tudo.
         Olhou para a porta da cozinha e ficou feliz ao perceber que Nina não estava lá. Sim , era um enorme pássaro escuro. Estava pousado sobre os dois pés na estaca mais alta da cerca. Podia dar a volta no tanque e aproximar-se mais, teve receio de perder tudo. Respirava com cuidado com medo do bicho ouvir até mesmo o ar escapando do seus pulmões.
         Então o menino se lembrou de que como os outros meninos ele teria que atirar pedras no urubu. Mas não teve nenhum ânimo para isto. Também não se podia matar um urubu. No mundo havia algumas aves vetadas à perseguição.
         As lavandeiras, porque tinham ajudado a lavar roupa do Menino Deus; os pardais também não era bom matar, não se podia fazer nada com um pardal morto, nem mesmo mostrar como prêmio de caça aos outros meninos. Pombos, nem pensar, eram aves muito puras, tão imaculadas que era até pecado pegá-las.
         Os urubus, esses nem os grandes caçadores queriam, pois dava muito azar matar um bicho daqueles. O que se podia fazer quando via-se um por perto era espantá-lo a pedradas. Mas o menino não se animou a isto e ficou satisfeito que não houvesse mais nenhum menino ali para obrigá-lo a por a ave em fuga. Ajoelhou-se atrás do tanque e preparou-se para contemplar em sigilo aquela importante descoberta que fizera.
         Olhou-a com mais intensidade. O sol iluminava-a implacavelmente. Cada pena preta brilhava como uma flor no meio tarde. E o menino viu quando a ave saltou de uma estaca para outra. Tinha os pés carunchosos de quem já caminhou muito e calcou muitas pedras. Eram pés firmes, e o menino não compreendia porque um ser aéreo precisava de pés tão firmes para habitar no meio das nuvens. Para não inquietar-se mais apoiou-se principalmente na vasta penugem negra da ave. Mas o urubu olhou-o e ele viu-lhe o enorme bico recurvo e a excrescente cabeça de velho.
         Foi então que tudo aconteceu.
         O sol iluminou o mundo inteiro e ele foi lançado para o abismo das alturas. Sentiu que não estava dentro dele. Compreendeu apenas que seus ossos se enchiam de ar e que o vento passava por ele deslocando-o. Precisou apoiar-se na borda do tanque para não ser levado, se não o fizesse teria tido a mesma sorte das folhas secas da mangueira ou das levíssimas borboletas que o vento levava para longe.

         Olhou com mais força o grande pássaro pousado, mas não pode muito, pois como antes pousara na cerca o urubu agora era apenas um ponto distante lá em cima no céu azul. Tudo. Tudo. Tudo perdido. Não podia sair dali. O vento o levaria para longe. Agora ele estava completamente perdido. Precisaria esperar o vento passar, a tarde voltar a sua calma natural. Pensou em chamar Nina. Mas não teve voz para isto.
         Mas como? Não podia falar.
         Teve a sensação de estar preso num sonho no meio da sesta da tarde. Mas logo convenceu-se de que não sonhava porque não dormira. Tinha estado sempre acordado. Se tudo isso fosse um sonho teria que estar sonhando muitos sonhos que coubessem uns dentro dos outros.  Como sonhar que estamos acordados sonhando que na verdade estamos dormindo?
         O que ele precisava era não ter medo. Com muito cuidado retirou uma das mãos da borda do tanque , seu corpo oscilou para um lado ao sabor do vento que passava, aprendeu então que se apoiasse firmemente os pés no chão poderia estabelecer um certo equilíbrio.
         Enterrou os pés na areia até sentir cada grão penetrar-lhe nos dedos. Quando teve certeza que pertencia a terra retirou a outra mão. Compreendeu então que todo o seu corpo estava submetido a um tenso equilíbrio entre a terra e o ar.
         Lá em cima, no céu as nuvens voavam.
         Mas ele era um menino e estava preso a terra.
         Fez um gesto no ar com as mãos e logo sentiu quando o vento bateu verticalmente nas suas asas. Distendeu-as e viu-as agitar-se. Poderia voar? Recolheu-as, teve medo. Ele podia ser apenas uma enorme galinha com asas e voaria caindo o que seria um grande desastre.
         Mas, quando o vento passou novamente levando folhas e pássaros não mais se conteve. Abriu suas asas de par em par. Distendeu-as longitudinalmente, deu o impulso necessário ao corpo, equilibrou-se completamente no vento e desprendendo-se da terra, aprendeu a voar.

Carlos Souza

        

domingo, 17 de novembro de 2019

POESIA: CAVALINHO DE PAU




CAVALINHO DE PAU


Corre, corre rua acima,
Corre, corre rua abaixo.
Guincha, empina as patas da frente,
Pula a cerca,
Vara mundo,
Pisa pedra, esmaga relva,
O vento bate no cabelo,
Agita a crina do corcel.

É o menino no cavalinho de pau.

Mas se cansa, deita-se na sombra,
Os olhos abertos fitando o céu.
Passam aves lá no azul
E o menino vai com elas,
Vai nas asas,
Vai no vento,
Vai no sonho
Vai no cavalo alado.

Pois é menino, livre - pode voar!

Carlos Souza
 
Ricardo Ferrari



sábado, 16 de novembro de 2019

PRIMEIRA CRÔNICA: Herói nacional



 Herói nacional

         O filho chega do colégio com uma missão na mochila, está escrita no caderno com a sua caligrafia vacilante: Pesquisar sobre um herói nacional.
         A mãe diz que o pai poderá ajudar no assunto, era o melhor aluno em história da sua classe. O menino resolve então esperar que o pai volte do trabalho para ajudá-lo na lição de casa.
         O pai chega cansado. Trabalhou todo o dia e absolutamente não entende como a mãe que passa o dia inteiro em casa não pode nem mesmo ajudar o filho com uma simples atividade da escola.
         De cara amarrada assim mesmo vai ajudar o menino.
         Devidamente provido com um volume da coleção Panteão da Pátria se exibe logo, perguntando ao filho se ele sabe quem foi Duque de Caxias.
         O pirralho não sabe quem foi o tal duque, e o pai impressionado com a baixa qualidade do ensino nos dias de hoje providencialmente explica ao garoto que o tal Caxias foi um grande herói nacional. Só na guerra do Maranhão contra os escravos matou mais de mil pessoas e mandou enforcar os líderes da revolta.
         Numa outra guerra que teve no Rio Grande do Sul o duque que era muito valente perseguiu e matou muito mais que mil pessoas que tinham se revoltado contra o governo e queriam que tudo no sul virasse uma república. Mas onde o Duque de Caxias fez mais sucesso foi no Paraguai. Triunfante o pai informou ao filho que o Luís Alves de Lima e Silva...
__Que Luís Alves é esse, não era um tal de Duque pai?
__Esse era o nome verdadeiro do grande herói!
__Ah! Saquei, uma espécie de identidade secreta lá dele?
__Não exatamente, um codinome, o nome de batismo, compreende?
__...
         Não, o menino não entendia, mas era melhor deixar o pai falar desse herói que foi pra guerra.
         Então o pai enumerou as batalhas que o duque tinha vencido na guerra contra o tirano lá do Paraguai e das muitas mortes de inimigos que ele tinha causado no campo de batalha, das cidades que tinha conquistado com sua bravura e falou que no final da guerra o grande herói não quis mais lutar para poupar o povo lá daquele país de mais sofrimentos, voltando cheio de honras ao Brasil.

         Mostrou a página do livro onde tudo isto estava escrito e disse ao menino que era só copiar o que vinha ali, tiraria um dez garantido.
__Não é um grande heróis esse Caxias?
__É pai, é o Capitão América do Brasil.
         Carlos Souza