Iniciação do Pássaro
Ele
era um menino e como todos os meninos do mundo, perseguia as galinhas pelo
quintal. As galinhas particularmente eram bichos engraçados. Eram animais bem
bobos que não voavam, mas que gostavam de subir na cerca do quintal ou no
beiral do telhado e se lançar de lá ao chão. Isso nunca dava bons resultados,
mas não impedia que outras galinhas executassem o feito ou que a mesma galinha
voltasse a insistir no dia seguinte. Era coisa que cansava logo e ele passava
imediatamente a outras brincadeiras.
Então,
enquanto as galinhas ciscavam no molhado ele, o menino, brincava
com as formigas. Também era divertido pegar moscas e privando-as das asas
servi-las para as formigas. Primeiro havia uma formiga que achava a mosca,
depois essa formiga encontrava outra formiga e mais formigas vinham e rodeavam
a mosca, depois uma pegava no pé da mosca e muitas outras avançavam. A mosca
corria pela trilha e logo dezenas de formigas iam atrás dela. Havia uma
tentativa de resistência, mas as formigas logo venciam. A mosca que não podia mais
voar virava as patas para cima e as formigas providenciavam seu transporte até
o formigueiro.
O menino
acompanhava toda a operação e o trajeto das formigas. Às vezes procurava
complicar a vida delas colocando algum obstáculo na trilha. Um seixo, um
graveto, uma folha. Mas tudo elas superavam. Cansou-se também dessa brincadeira
e passou à outra.
Subiu
na mangueira e voou no trapézio dos galhos mais altos. Sentiu então o característico
frio na barriga, mas a mãe não queria aquilo, então ela veio lá de dentro, prontamente
alertada por Nina e o impediu de continuar. Saltou para os galhos mais baixos
onde não dava para fazer trapézio. Deitou-se no mais grosso e ficou em silêncio
escutando o vento nas folhas e a agitação das galinhas lá embaixo na sombra.
Foi então
que o menino viu que o urubu que voava sobre as casas da rua veio e pousou na
cerca do quintal. Primeiro teve uma sensação de desconforto natural diante da
ave aziaga. Via-a, mas ela também o via. Eram dois seres, ele era um menino e
ela era uma ave. Foi então que ele considerou que o urubu era na verdade uma
grande ave preta.
Agora
só havia nele o desconforto da cabeça mal voltada. Decidiu então. Saltou do
galho com muito cuidado para não causar comoção nas galinhas. Agachou-se atrás
do tanque, viu-o inclinar a cabeça para a direita e para a esquerda. Seu coração
ameaçava disparar. Precisou controlar-se para não por tudo a perder. Então teve
medo que Nina viesse lá de dentro e estragasse tudo.
Olhou
para a porta da cozinha e ficou feliz ao perceber que Nina não estava lá.
Sim , era um enorme pássaro escuro. Estava pousado sobre os dois pés na estaca
mais alta da cerca. Podia dar a volta no tanque e aproximar-se mais, teve
receio de perder tudo. Respirava com cuidado com medo do bicho ouvir até mesmo o
ar escapando do seus pulmões.
Então
o menino se lembrou de que como os outros meninos ele teria que atirar pedras
no urubu. Mas não teve nenhum ânimo para isto. Também não se podia matar um
urubu. No mundo havia algumas aves vetadas à perseguição.
As lavandeiras, porque tinham ajudado a lavar roupa do Menino Deus; os pardais também não
era bom matar, não se podia fazer nada com um pardal morto, nem mesmo mostrar
como prêmio de caça aos outros meninos. Pombos, nem pensar, eram aves muito
puras, tão imaculadas que era até pecado pegá-las.
Os urubus,
esses nem os grandes caçadores queriam, pois dava muito azar matar um
bicho daqueles. O que se podia fazer quando via-se um por perto era espantá-lo
a pedradas. Mas o menino não se animou a isto e ficou satisfeito que não
houvesse mais nenhum menino ali para obrigá-lo a por a ave em fuga. Ajoelhou-se
atrás do tanque e preparou-se para contemplar em sigilo aquela importante
descoberta que fizera.
Olhou-a
com mais intensidade. O sol iluminava-a implacavelmente. Cada pena preta
brilhava como uma flor no meio tarde. E o menino viu quando a ave saltou de uma
estaca para outra. Tinha os pés carunchosos de quem já caminhou muito e calcou
muitas pedras. Eram pés firmes, e o menino não compreendia porque um ser aéreo
precisava de pés tão firmes para habitar no meio das nuvens. Para não
inquietar-se mais apoiou-se principalmente na vasta penugem negra da ave. Mas o
urubu olhou-o e ele viu-lhe o enorme bico recurvo e a excrescente cabeça de
velho.
Foi então
que tudo aconteceu.
O sol
iluminou o mundo inteiro e ele foi lançado para o abismo das alturas. Sentiu
que não estava dentro dele. Compreendeu apenas que seus ossos se enchiam de ar
e que o vento passava por ele deslocando-o. Precisou apoiar-se na borda do
tanque para não ser levado, se não o fizesse teria tido a mesma sorte das
folhas secas da mangueira ou das levíssimas borboletas que o vento levava para
longe.
Olhou
com mais força o grande pássaro pousado, mas não pode muito, pois como antes pousara
na cerca o urubu agora era apenas um ponto distante lá em cima no céu azul. Tudo.
Tudo. Tudo perdido. Não podia sair dali. O vento o levaria para longe. Agora ele
estava completamente perdido. Precisaria esperar o vento passar, a tarde voltar
a sua calma natural. Pensou em chamar Nina. Mas não teve voz para isto.
Mas como?
Não podia falar.
Teve
a sensação de estar preso num sonho no meio da sesta da tarde. Mas logo
convenceu-se de que não sonhava porque não dormira. Tinha estado sempre
acordado. Se tudo isso fosse um sonho teria que estar sonhando muitos sonhos
que coubessem uns dentro dos outros. Como
sonhar que estamos acordados sonhando que na verdade estamos dormindo?
O que
ele precisava era não ter medo. Com muito cuidado retirou uma das mãos da borda
do tanque , seu corpo oscilou para um lado ao sabor do vento que passava,
aprendeu então que se apoiasse firmemente os pés no chão poderia estabelecer um
certo equilíbrio.
Enterrou os pés na areia até sentir cada
grão penetrar-lhe nos dedos. Quando teve certeza que pertencia a terra retirou
a outra mão. Compreendeu então que todo o seu corpo estava submetido a um tenso
equilíbrio entre a terra e o ar.
Lá em
cima, no céu as nuvens voavam.
Mas ele
era um menino e estava preso a terra.
Fez
um gesto no ar com as mãos e logo sentiu quando o vento bateu verticalmente nas
suas asas. Distendeu-as e viu-as agitar-se. Poderia voar? Recolheu-as, teve
medo. Ele podia ser apenas uma enorme galinha com asas e voaria caindo o que
seria um grande desastre.
Mas,
quando o vento passou novamente levando folhas e pássaros não mais se conteve. Abriu
suas asas de par em par. Distendeu-as longitudinalmente, deu o impulso necessário
ao corpo, equilibrou-se completamente no vento e desprendendo-se da terra, aprendeu
a voar.
Carlos Souza