Maria dos meninos
__Sou
o rei da brincadeira, eu que mando, eu que decido, então vai ser assim, sim.
Os
outros o olharam com rancor e expectativa. Ninguém tinha inventado a
brincadeira, de repente eles tinham começado a brincar e tinham gostado e então
mesmo ninguém se lembrava de quem é que tinha apontado e dito – vamos brincar
disto aqui, porque é melhor brincar assim. Mas João era quem se impunha. E era
impondo-se que fazia-se o rei da brincadeira e os outros que o seguissem como
súditos muito leais e reconhecidos.
Então
quando vieram os dissidentes João logo providenciou que seus cortesãos os
pusesse na outra margem. Como a outra margem era o exílio e no exílio não havia
a mesma diversão que crescia nos pátios e jardins do rei da brincadeira os
mesmos dissidentes foram desertando e voltando a malta dos meninos que eram
toda a corte de João.
Os
meninos reconheceram o direito dos desertores de voltar e submeter-se a João e
houve paz sob a fronde do castanheiro onde reinava João. Era um jogo de
bolinhas de gude de três buracos e perseguição ao adversário. Os contendores
apostavam fubecas e cascudos. A perda das bilas era acrescida pela dor da
injustiça carpida por alguns ao perceberem que os cocres que João lhes aplicava
pareciam-lhes mais veementes numas cabeças do que em outras. João que se
impusera respectivamente como rei e carrasco da brincadeira não acatava habeas corpus nem liminares.
Revoltas,
dissidências, exílios, deserções e reincorporações eram toda a dinâmica da
política daquele reino de João. Sem ser o mais velho, João mandava. Era ladino
e trazia as ideias sempre em ordem. Submetia os meninos da rua e reinava
despoticamente. Preto, forte e troante. Musculoso. Comandava. Marechal. Mas João
pensou que podia estar cansado de brincar e ainda não tinha mesmo o que fazer
depois que se cansasse de brincar, então adiou o momento seguinte da sua
decisão. Parou e ficou olhando a bilosca de André que oscilava na entrada do
búrias. Pensou que ela ia cair, mas não caiu, havia dessas sortes. Pôs as mãos
no bolso do calção e acariciou a bolinha mais azul que ele tinha ganhado.
Pensou também que se André perdesse aquela que estava na berlinda ele lhe daria
esta.
Mas
por que então André? Não que ele não soubesse, principalmente porque ele tinha
uma vontade de cuidar dele. Tinha pai e tinha mãe, mas João gostava dele e
quando gostava impossível. Sentou-se na pedra para esperar o que pudesse ainda
acontecer. João se aborrecia e não tinha nenhuma vontade de brincar mais. Tomou
um pedaço de pau nas mãos e fustigou o caminho das formigas que passavam
providas e constantes.
Viu-as
atrapalharem-se e perder todo o sentido. Se não têm caminho para seguir e não
carregam folhas para o formigueiro não são formigas e estão sujeitas a todo
tipo de acidentes.
Pisou
muitas formigas. E elas morriam surpresas de não terem adivinhado que morreriam
sob seus pés. Pisou-as mais, pisou muitas, muitas, muitas e quando se cansou de
ser tão superior as formigas decidiu logo que estava cansado de brincar o
propôs aos meninos que o seguissem, pois não deviam se cansar tanto obrigando-se
a brincar duma só coisa.
E
como seguiram João os meninos viram ele entrar no quintal da casa. Entraram com
ele e sentaram com ele em baixo da mangueira, sentido o odor doce e fresco do
molhado da terra. Havia também bananeiras e entre as bananeiras, galinhas e as
galinhas revolviam a terra com os pés e a terra revirada pelos pés das galinhas
ficava mais cheirosa e morna. Os meninos não entendiam isto das galinhas revolverem
a terra com os pés, o que havia eram aqueles que pensavam que as galinhas
procuravam pedras lisinhas para comer.
Quem
não pensava em nada apenas recolhera-se sob a sombra da mangueira. E como era
de tarde e ninguém se importava com meninos no fundo do quintal então eles eram
livres como as galinhas. Alguém pensou que eles poderiam caçar lagartixas que a
esta hora reverberavam na luz do sol pregadas as paredes das casas. Mas ninguém
quis pensar que era uma boa ideia porque João estava riscando um desenho na
terra. Aproximaram e viram.
__Quem
sabe o que é?
__...
__Tudo
cabaço, nunca viram um não.
__Parece
uma aranha de patas abertas né?
__Com
um olho no meio?
__Não
é uma aranha João?
__...
__Não
é não Carlinhos.
__Uma
galinha deitada no ninho.
__Eu
já vi em revistinha suja.
__Tudo
lorota, mostro pra vocês montes de bronha.
__Que
é João?
__É
a bucetinha de Maria Preta.
Lá
longe na parede do muro caiado passou uma lagartixa e Daniel pensou que seria
uma glória de captura, mas ninguém se interessava pelas lagartixas, atentos no
novo trabalho de João. O que João fazia com o canivetinho era um orifício
côncavo no caule da bananeira. Trabalho meticuloso. Os outros meninos esperavam
não adivinhando nada ou adivinhando alguma coisa. Alagou-o, limpou-o,
verificou. Voltou a alargá-lo, limpá-lo. Aprofundou-o. Limpou-o. Imaginou então
o conforto da circunferência. Soprou dentro. Era o que queria. Sua dama. Então
os meninos viram que João tinha criado a mulher. E João riou e coabitou com ela.
Dentro dela João sentiu o molhado da umidade viscosa e viu que isto era confortável
e bom. Apoiou-se nas pernas e impôs-lhe sua força sobre-humana.
__Vou
pôr tudinho.
Abriu
as pernas e segurou-se no caule para submetê-la rendida e completa, toda a sua
energia investida sobre o corpo da dama. Quem entendeu logo, tomou a sua. Outros
que foram entendendo depois imitaram o rei e os outros que o seguiram. E quando
todo mundo tinha compreendido as galinhas fugiram assustadas e as castíssimas
bananeiras e os meninos perderam-se nas suas fornicações gozosas. Agarrados,
extáticos, gemendo, os meninos se emulavam para ver quem conseguia
mais vezes obter o prazer.
E assim foi a manhã e a tarde daquele dia.
E o
vento passou e outras manhãs começaram dentro dos quintais. E as galinhas que foi
quem nasceu sem memória esqueceram os meninos e suas fornicações. Mas os
meninos que eram livres como o vento voltaram sempre a coabitar com as
bananeiras, mas também cansaram-se desse amor. E quando João compreendeu que
poderia abrir-se num outro voo, convocou-os. E ninguém se opôs porque era João
quem tinha inventado a brincadeira que começava como quem escava a terra e
encontra um seixo e um caco de vidro juntos e depois se põe o seixo na pele e é
frio e redondo e depois se corta a pele com o caco de vidro e é doce e quente
quando derrama todo o líquido.
__Ninguém
conta nada.
__...
__Se
contar nunca mais.
Quando
chegaram do outro lado estavam no fundo do quintal de Maria Preta. João entrou
antes. Os outros não entraram logo. Pedro desfez a chaminé de um formigueiro
com a ponta dos pés e pensou que quando voltasse no outro dia encontraria a
construção outra vez terminada. Olhou as mãos, contou que tinha cinco dedos e
isto era bom porque ele precisava somente destes. Onde João? Daniel pensou que
se não seguisse João ainda teria uma lagartixa capturada e a guardaria numa
caixa para ver como as lagartixas brilhavam no escuro. Jonas olhou entre as
varas da cerca. João lá dentro do quintal. Maria com ele. Colheu um
melão-de-são-caetano e abriu-o.
Esmigalhou as sementes na palma da mão. Era viscoso e frio. João não se
lembrava mais deles. Seguiram-no. Era efetivamente
o quintal de Maria.
André
não viu João. Viu que Maria era uma lavadeira e que lavava roupa numa tábua.
Não viu Maria completa. Fixou-se nas coxas. Os meninos pararam e olharam.
Alguém pensou que não conhecia aquela brincadeira. A roupa branca parada no
sol. O vento passou, mas Carlos pensou que não era o vento, mas o voo de uma
garça que ia para o lado do charco.
__Olhem
só, franguinhos. Mãezinha do céu! Maria falava nenhum menino mesmo ouvia.
__Mundo
perdido, até os anjinhos do céu no inferno. Riu-se Maria e recolheu a saia para
cobrir as coxas.
__Nunca
viram Mirinha, querem ver como é.
__E
você quer que eu mostre pra eles Joãozinho?
__Vamos
pagar olha.
Duas
notas na mão. João olhou pra dentro de casa. Quem cuida da menina? Que menina?
Maria com uma filhinha. Uma filhinha que ninguém tinha visto dormindo dentro da
cesta. Era de Maria? Era a filhinha de Maria senão por que tinha saído da zona?
Agora lavadeira de roupa. O pai nunca que assumisse, não tinha filho com puta.
Casado, tinha família e tudo. Maria que fizesse o aborto. Sem aborto, Maria
precisou renunciar a vida. Mais descansada? Nunca que isso fosse possível. A
menina até doentinha. Mais de um ano sofrendo. Agora melhorzinha. Maria lavava
roupa lá de longe. Lá longe onde ninguém sabia da sua vida. Ia sofrendo. Mas
ela mesma acreditava que não tinha como pensar que um dia ela lançaria as
sementes na terra e sendo a terra boa e acolhedora veria os grãos serem muitos
grãos dentro de um fruto maduro que ela colheria feliz e realizada. Não havia
mesmo nenhum privilégio para ela nessa messe. Nem lhe dariam ainda os últimos
grãos que se misturassem com as pedras. Assim ela se acomodara a estar pousada
sobre a terra sendo apenas uma mulher que olhava o dia como quem contempla o
vento nas nuvens mais altas.
__Impossível
com todos Joãozinho. Vem primeiro se você quer. Depois você sai e entra outro.
Não vai todo mundo não. Os anjinhos ficam aí imaginando. Com tudinho não posso.
Eu mostro e eles podem ver só isso que dar.
__Trouxe
todo mundo e eles me seguiram.
__Fico
esfolada. Não é como antes. Trabalho muito agora anjos.
__Eu
vou eles ficam. Cuidando da menina.
__Já
com dois. Fiz, mais o amigo não era pra mim era pra ele. Foi antes. Não posso
muito, estou velha. Olhem as varizes.
O
que os meninos viram foi o deslumbre. Flor aberta em gumes e seiva. Reconheciam
o que era porque o fruto da grande árvore que cresce no meio do jardim é sempre
reconhecível. Então Pedro pensou que já tinha visto um fruto igual, mas que
quando tinha visto não exigia dedos para afastar a erva e tocar a cor. Daniel
concluiu que era uma grande formiga exposta ao sol, mas estava parada no corpo
de Maria e não teve medo. João guardou as notas no bolso. André sentiu o sol
arder na sua pele escura e então compreendeu que também tinha frio. E o frio
vinha de dentro e o separava dos outros meninos que olhavam a exibição da flor.
João pensou que era muito tarde e que a mãe poderia chamá-lo e aí tudo estaria
perdido. Carlos compreendeu que suas mãos estavam abandonadas e que tinha se esquecido
de apanhar algumas pedras pelo caminho. João bateu com o pé no chão e marcou o
ritmo da sua impaciência. Maria abria as coxas e os meninos viam que o fruto
era bivalve e côncavo, que o fruto era de carne e o sol não dourava sua casca.
João pensou que se tivesse vindo sozinho. Daniel sentiu a saliva áspera
acumulando-se na boca e Jonas picou os olhos, a luz ácida do sol perfurando sua
retina. Maria baixou a saia e a claridade velou a flor. Quando os meninos
voltaram, viram foi João entrando com Maria na casa. Nunca o perdão para João.
A
casa era escura, mas a luz entrava pelas frestas do teto. João ficou nu e Maria
viu que era uma penugem de anjo e arame. Hoje com menino, na zona até com
velhinho acabadinho. A nota vibrando no côncavo da mão. Agradecida. Pagavam
melhor os velhos. Ruim mesmo com caminhoneiro e descarregador. Doía muito
quando ela ainda se lembrava da casa e pensava no pai. Depois ela esqueceu tudo
e nunca mais doeu. Foi trabalhando. Veio o doutor e ela quis ir até o fim com
ele. Aí o doutor era um homem sério, casado e com filhos e ela não teve coragem
pro aborto. Bebeu conhaque com o dinheiro e disse a ele que não mataria um filho.
Lavadeira de roupa e nunca mais o doutor. Desertou da zona. Sua vida ninguém
com isso. Deitou na cama e Joãozinho por cima. Segunda vez do menino ali. Na
primeira vez não foi. Sentou-o na borda da cama e o fez espumar. Agora o
homenzinho experiente. Deixou-o ir. Mas como ele não acertava logo ajudou-o com
a mão –Ponha aqui. Sentiu-o dentro. Pronto para
começar. Prestava essa caridade. Eles eram todos meninos. Ela limpinha. Nunca
tivera uma doença da zona. Se guardava. Nenhum anjo com pingadeira. João se
atrapalhava – Deixa dentro. De olhos
abertos Maria pensava na claridade rasa do quarto, João acomodava-se dentro
dela. Pela primeira vez sentiu-o. Lá estava ele. Lança trêmula, mas aguda.
Conchegou-a aceitando-a completa. Ponha
mais. Então João conheceu que tinha aprendido como era que se fazia e
fechou os olhos para ver se organizava tudo junto. O corpo de Maria era quente
e lavado. Tinha cheiro de sabão e da água da torneira. João compreendeu que
poderia cair mais longe dentro daquela rosa, mas veio o enjoo e o espasmo e ele
não estava mais na terra. Tu já? Olhinho
revirado de João, pingo de suor na fronte do negrinho.
__Hoje
tu foi um homem Joãozinho.
__...
__Chama
teu amiguinho, o mais anjinho, quero com ele também.
João
saiu André entrou – Vem que eu te ensino anjo. Dois olhos de André
cravados nos peitos de Maria. A fome voraz. Ele se disse que já tivera nas mãos
gomos tão grossos como aqueles e que da primeira vez precisara sugá-los para
preencher a fome por dentro – Quantos
anos anjinho? Penso que nem consegue ainda nada. Melhor mesmo, fico
descansando. Deita na caminha, te dou na boquinha. Hoje só pra começar. Depois
você vem com Joãozinho. Deita, vou ser tua mãezinha – 13, 14? Bem que vi. Lá fora ainda muitos. Nem posso com todos. Vão
me acabar. Uns bem hominhos já. Vou com você – Só ficar deitado? Recebi dinheiro para ouvir um cliente falar mal
da mulher e da filha, mas que gostava do chefe como gostava do pai – Você diferente de João. Cheiro de menino
ainda. João com fartum de homem. 16, 17? João perde vocês todos. Cuidado no
fogo do inferno. Não diga nada ao padre, se ele sabe, pode querer. Segredinho
dos hominhos e de Maria Velha. Depois que sair diga que não recebo mais.
Terminar a roupa. Mais um entra e é o último. Moreninho você anjo. Tem aquele
branco loiro. Deixa que ele. Tem pintinhas no corpo. Até a penugem é loira. Acabou? Volte sem o João. Amanhã não.
Entrego a roupa. Não assim. Ponha toda
anjo – você Jonas? O vesgo que
veio... ah! vocês 15? Largaram tudo.
Gaiolas com passarinhos, fruta madura no pé, caco de vidro na mão, bolinha de
gude. Faço com você depois não tem mais. Vinde
a mim os meninos, eu sou Maria.