quinta-feira, 30 de abril de 2020

CRÔNICA -MARIA DOS MENINOS



Maria dos meninos


         __Sou o rei da brincadeira, eu que mando, eu que decido, então vai ser assim, sim.
         Os outros o olharam com rancor e expectativa. Ninguém tinha inventado a brincadeira, de repente eles tinham começado a brincar e tinham gostado e então mesmo ninguém se lembrava de quem é que tinha apontado e dito – vamos brincar disto aqui, porque é melhor brincar assim. Mas João era quem se impunha. E era impondo-se que fazia-se o rei da brincadeira e os outros que o seguissem como súditos muito leais e reconhecidos.
         Então quando vieram os dissidentes João logo providenciou que seus cortesãos os pusesse na outra margem. Como a outra margem era o exílio e no exílio não havia a mesma diversão que crescia nos pátios e jardins do rei da brincadeira os mesmos dissidentes foram desertando e voltando a malta dos meninos que eram toda a corte de João.
         Os meninos reconheceram o direito dos desertores de voltar e submeter-se a João e houve paz sob a fronde do castanheiro onde reinava João. Era um jogo de bolinhas de gude de três buracos e perseguição ao adversário. Os contendores apostavam fubecas e cascudos. A perda das bilas era acrescida pela dor da injustiça carpida por alguns ao perceberem que os cocres que João lhes aplicava pareciam-lhes mais veementes numas cabeças do que em outras. João que se impusera respectivamente como rei e carrasco da brincadeira não acatava habeas corpus nem liminares.
         Revoltas, dissidências, exílios, deserções e reincorporações eram toda a dinâmica da política daquele reino de João. Sem ser o mais velho, João mandava. Era ladino e trazia as ideias sempre em ordem. Submetia os meninos da rua e reinava despoticamente. Preto, forte e troante. Musculoso. Comandava. Marechal. Mas João pensou que podia estar cansado de brincar e ainda não tinha mesmo o que fazer depois que se cansasse de brincar, então adiou o momento seguinte da sua decisão. Parou e ficou olhando a bilosca de André que oscilava na entrada do búrias. Pensou que ela ia cair, mas não caiu, havia dessas sortes. Pôs as mãos no bolso do calção e acariciou a bolinha mais azul que ele tinha ganhado. Pensou também que se André perdesse aquela que estava na berlinda ele lhe daria esta.
         Mas por que então André? Não que ele não soubesse, principalmente porque ele tinha uma vontade de cuidar dele. Tinha pai e tinha mãe, mas João gostava dele e quando gostava impossível. Sentou-se na pedra para esperar o que pudesse ainda acontecer. João se aborrecia e não tinha nenhuma vontade de brincar mais. Tomou um pedaço de pau nas mãos e fustigou o caminho das formigas que passavam providas e constantes.
         Viu-as atrapalharem-se e perder todo o sentido. Se não têm caminho para seguir e não carregam folhas para o formigueiro não são formigas e estão sujeitas a todo tipo de acidentes.
         Pisou muitas formigas. E elas morriam surpresas de não terem adivinhado que morreriam sob seus pés. Pisou-as mais, pisou muitas, muitas, muitas e quando se cansou de ser tão superior as formigas decidiu logo que estava cansado de brincar o propôs aos meninos que o seguissem, pois não deviam se cansar tanto obrigando-se a brincar duma só coisa.
         E como seguiram João os meninos viram ele entrar no quintal da casa. Entraram com ele e sentaram com ele em baixo da mangueira, sentido o odor doce e fresco do molhado da terra. Havia também bananeiras e entre as bananeiras, galinhas e as galinhas revolviam a terra com os pés e a terra revirada pelos pés das galinhas ficava mais cheirosa e morna. Os meninos não entendiam isto das galinhas revolverem a terra com os pés, o que havia eram aqueles que pensavam que as galinhas procuravam pedras lisinhas para comer.
         Quem não pensava em nada apenas recolhera-se sob a sombra da mangueira. E como era de tarde e ninguém se importava com meninos no fundo do quintal então eles eram livres como as galinhas. Alguém pensou que eles poderiam caçar lagartixas que a esta hora reverberavam na luz do sol pregadas as paredes das casas. Mas ninguém quis pensar que era uma boa ideia porque João estava riscando um desenho na terra. Aproximaram e viram.
         __Quem sabe o que é?
         __...
         __Tudo cabaço, nunca viram um não.
         __Parece uma aranha de patas abertas né?
         __Com um olho no meio?
         __Não é uma aranha João?
         __...
         __Não é não Carlinhos.
         __Uma galinha deitada no ninho.
         __Eu já vi em revistinha suja.
         __Tudo lorota, mostro pra vocês montes de bronha.
         __Que é João?
         __É a bucetinha de Maria Preta.


         Lá longe na parede do muro caiado passou uma lagartixa e Daniel pensou que seria uma glória de captura, mas ninguém se interessava pelas lagartixas, atentos no novo trabalho de João. O que João fazia com o canivetinho era um orifício côncavo no caule da bananeira. Trabalho meticuloso. Os outros meninos esperavam não adivinhando nada ou adivinhando alguma coisa. Alagou-o, limpou-o, verificou. Voltou a alargá-lo, limpá-lo. Aprofundou-o. Limpou-o. Imaginou então o conforto da circunferência. Soprou dentro. Era o que queria. Sua dama. Então os meninos viram que João tinha criado a mulher. E João riou e coabitou com ela. Dentro dela João sentiu o molhado da umidade viscosa e viu que isto era confortável e bom. Apoiou-se nas pernas e impôs-lhe sua força sobre-humana.
         __Vou pôr tudinho.
         Abriu as pernas e segurou-se no caule para submetê-la rendida e completa, toda a sua energia investida sobre o corpo da dama. Quem entendeu logo, tomou a sua. Outros que foram entendendo depois imitaram o rei e os outros que o seguiram. E quando todo mundo tinha compreendido as galinhas fugiram assustadas e as castíssimas bananeiras e os meninos perderam-se nas suas fornicações gozosas. Agarrados, extáticos, gemendo, os meninos se emulavam para ver quem conseguia mais vezes obter o prazer.
          E assim foi a manhã e a tarde daquele dia.
         E o vento passou e outras manhãs começaram dentro dos quintais. E as galinhas que foi quem nasceu sem memória esqueceram os meninos e suas fornicações. Mas os meninos que eram livres como o vento voltaram sempre a coabitar com as bananeiras, mas também cansaram-se desse amor. E quando João compreendeu que poderia abrir-se num outro voo, convocou-os. E ninguém se opôs porque era João quem tinha inventado a brincadeira que começava como quem escava a terra e encontra um seixo e um caco de vidro juntos e depois se põe o seixo na pele e é frio e redondo e depois se corta a pele com o caco de vidro e é doce e quente quando derrama todo o líquido.
         __Ninguém conta nada.
         __...
         __Se contar nunca mais.
         Quando chegaram do outro lado estavam no fundo do quintal de Maria Preta. João entrou antes. Os outros não entraram logo. Pedro desfez a chaminé de um formigueiro com a ponta dos pés e pensou que quando voltasse no outro dia encontraria a construção outra vez terminada. Olhou as mãos, contou que tinha cinco dedos e isto era bom porque ele precisava somente destes. Onde João? Daniel pensou que se não seguisse João ainda teria uma lagartixa capturada e a guardaria numa caixa para ver como as lagartixas brilhavam no escuro. Jonas olhou entre as varas da cerca. João lá dentro do quintal. Maria com ele. Colheu um melão-de-são-caetano e       abriu-o. Esmigalhou as sementes na palma da mão. Era viscoso e frio. João não se lembrava mais deles. Seguiram-no. Era  efetivamente o quintal de Maria.
         André não viu João. Viu que Maria era uma lavadeira e que lavava roupa numa tábua. Não viu Maria completa. Fixou-se nas coxas. Os meninos pararam e olharam. Alguém pensou que não conhecia aquela brincadeira. A roupa branca parada no sol. O vento passou, mas Carlos pensou que não era o vento, mas o voo de uma garça que ia para o lado do charco.
         __Olhem só, franguinhos. Mãezinha do céu! Maria falava nenhum menino mesmo ouvia.
         __Mundo perdido, até os anjinhos do céu no inferno. Riu-se Maria e recolheu a saia para cobrir as coxas.
         __Nunca viram Mirinha, querem ver como é.
         __E você quer que eu mostre pra eles Joãozinho?
         __Vamos pagar olha.
         Duas notas na mão. João olhou pra dentro de casa. Quem cuida da menina? Que menina? Maria com uma filhinha. Uma filhinha que ninguém tinha visto dormindo dentro da cesta. Era de Maria? Era a filhinha de Maria senão por que tinha saído da zona? Agora lavadeira de roupa. O pai nunca que assumisse, não tinha filho com puta. Casado, tinha família e tudo. Maria que fizesse o aborto. Sem aborto, Maria precisou renunciar a vida. Mais descansada? Nunca que isso fosse possível. A menina até doentinha. Mais de um ano sofrendo. Agora melhorzinha. Maria lavava roupa lá de longe. Lá longe onde ninguém sabia da sua vida. Ia sofrendo. Mas ela mesma acreditava que não tinha como pensar que um dia ela lançaria as sementes na terra e sendo a terra boa e acolhedora veria os grãos serem muitos grãos dentro de um fruto maduro que ela colheria feliz e realizada. Não havia mesmo nenhum privilégio para ela nessa messe. Nem lhe dariam ainda os últimos grãos que se misturassem com as pedras. Assim ela se acomodara a estar pousada sobre a terra sendo apenas uma mulher que olhava o dia como quem contempla o vento nas nuvens mais altas.
         __Impossível com todos Joãozinho. Vem primeiro se você quer. Depois você sai e entra outro. Não vai todo mundo não. Os anjinhos ficam aí imaginando. Com tudinho não posso. Eu mostro e eles podem ver só isso que dar.
         __Trouxe todo mundo e eles me seguiram.
         __Fico esfolada. Não é como antes. Trabalho muito agora anjos.
         __Eu vou eles ficam. Cuidando da menina.
         __Já com dois. Fiz, mais o amigo não era pra mim era pra ele. Foi antes. Não posso muito, estou velha. Olhem as varizes.
         O que os meninos viram foi o deslumbre. Flor aberta em gumes e seiva. Reconheciam o que era porque o fruto da grande árvore que cresce no meio do jardim é sempre reconhecível. Então Pedro pensou que já tinha visto um fruto igual, mas que quando tinha visto não exigia dedos para afastar a erva e tocar a cor. Daniel concluiu que era uma grande formiga exposta ao sol, mas estava parada no corpo de Maria e não teve medo. João guardou as notas no bolso. André sentiu o sol arder na sua pele escura e então compreendeu que também tinha frio. E o frio vinha de dentro e o separava dos outros meninos que olhavam a exibição da flor. João pensou que era muito tarde e que a mãe poderia chamá-lo e aí tudo estaria perdido. Carlos compreendeu que suas mãos estavam abandonadas e que tinha se esquecido de apanhar algumas pedras pelo caminho. João bateu com o pé no chão e marcou o ritmo da sua impaciência. Maria abria as coxas e os meninos viam que o fruto era bivalve e côncavo, que o fruto era de carne e o sol não dourava sua casca. João pensou que se tivesse vindo sozinho. Daniel sentiu a saliva áspera acumulando-se na boca e Jonas picou os olhos, a luz ácida do sol perfurando sua retina. Maria baixou a saia e a claridade velou a flor. Quando os meninos voltaram, viram foi João entrando com Maria na casa. Nunca o perdão para João.
         A casa era escura, mas a luz entrava pelas frestas do teto. João ficou nu e Maria viu que era uma penugem de anjo e arame. Hoje com menino, na zona até com velhinho acabadinho. A nota vibrando no côncavo da mão. Agradecida. Pagavam melhor os velhos. Ruim mesmo com caminhoneiro e descarregador. Doía muito quando ela ainda se lembrava da casa e pensava no pai. Depois ela esqueceu tudo e nunca mais doeu. Foi trabalhando. Veio o doutor e ela quis ir até o fim com ele. Aí o doutor era um homem sério, casado e com filhos e ela não teve coragem pro aborto. Bebeu conhaque com o dinheiro e disse a ele que não mataria um filho. Lavadeira de roupa e nunca mais o doutor. Desertou da zona. Sua vida ninguém com isso. Deitou na cama e Joãozinho por cima. Segunda vez do menino ali. Na primeira vez não foi. Sentou-o na borda da cama e o fez espumar. Agora o homenzinho experiente. Deixou-o ir. Mas como ele não acertava logo ajudou-o com a mão –Ponha  aqui. Sentiu-o dentro. Pronto para começar. Prestava essa caridade. Eles eram todos meninos. Ela limpinha. Nunca tivera uma doença da zona. Se guardava. Nenhum anjo com pingadeira. João se atrapalhava – Deixa dentro. De olhos abertos Maria pensava na claridade rasa do quarto, João acomodava-se dentro dela. Pela primeira vez sentiu-o. Lá estava ele. Lança trêmula, mas aguda. Conchegou-a aceitando-a completa. Ponha mais. Então João conheceu que tinha aprendido como era que se fazia e fechou os olhos para ver se organizava tudo junto. O corpo de Maria era quente e lavado. Tinha cheiro de sabão e da água da torneira. João compreendeu que poderia cair mais longe dentro daquela rosa, mas veio o enjoo e o espasmo e ele não estava mais na terra. Tu já? Olhinho revirado de João, pingo de suor na fronte do negrinho.
          __Hoje tu foi um homem Joãozinho.
         __...
         __Chama teu amiguinho, o mais anjinho, quero com ele também.
         João saiu André entrou – Vem que eu te ensino anjo. Dois olhos de André cravados nos peitos de Maria. A fome voraz. Ele se disse que já tivera nas mãos gomos tão grossos como aqueles e que da primeira vez precisara sugá-los para preencher a fome por dentro – Quantos anos anjinho? Penso que nem consegue ainda nada. Melhor mesmo, fico descansando. Deita na caminha, te dou na boquinha. Hoje só pra começar. Depois você vem com Joãozinho. Deita, vou ser tua mãezinha – 13, 14? Bem que vi. Lá fora ainda muitos. Nem posso com todos. Vão me acabar. Uns bem hominhos já. Vou com você – Só ficar deitado? Recebi dinheiro para ouvir um cliente falar mal da mulher e da filha, mas que gostava do chefe como gostava do pai – Você diferente de João. Cheiro de menino ainda. João com fartum de homem. 16, 17? João perde vocês todos. Cuidado no fogo do inferno. Não diga nada ao padre, se ele sabe, pode querer. Segredinho dos hominhos e de Maria Velha. Depois que sair diga que não recebo mais. Terminar a roupa. Mais um entra e é o último. Moreninho você anjo. Tem aquele branco loiro. Deixa que ele. Tem pintinhas no corpo. Até a penugem é loira. Acabou? Volte sem o João. Amanhã não. Entrego a roupa. Não assim. Ponha toda anjo – você   Jonas? O vesgo que veio... ah! vocês 15? Largaram tudo. Gaiolas com passarinhos, fruta madura no pé, caco de vidro na mão, bolinha de gude. Faço com você depois não tem mais. Vinde a mim os meninos, eu sou Maria.



sexta-feira, 24 de abril de 2020

CRÔNICA - ABISMO DE ROSAS



Abismo de rosas


         A mãe. A mãe. A mãe. Sim, ela era a mãe. A mãe que tinha direitos sobre o filho. E como mãe não se podia impedir afinal. Mas quem a obrigaria mesmo? Não havia nem como constrangê-la porque assumira todos os trabalhos e finalmente podia constatar sem surpresa que triunfara. E que a glória enfim se estendia inumerável diante de seus olhos. Ela era uma heroína legendária.
         E ela tinha as mãos limpas e poderia ainda anunciar que fizera tudo imaculadamente. Fora tão meticulosa que não duvidava ter sido mesmo trabalho de suas mãos toda aquela propícia messe. Mas não estava nem um pouco cansada. E se agora sentara-se numa cadeira foi apenas porque precisava olhar o vale e perguntar-se – Para onde agora?
         Olhou-se no espelho, conhecia aquele rosto, aquela face, aquela montanha. Viu a fotografia sobre a penteadeira, ah! era ele. Mas os olhos que ele trazia eram tão límpidos. Ela observou-o fixamente. Os cabelos crescidos, os lábios oblongos, as mãos paradas.
         Assim ela podia constatar que um dia ele fora aquele menino. E que ele tinha sido mesmo um menino ruivo e infantil e isto a fizera consciente de seu trabalho e do seu dever. Estendeu a mão para tocar o retrato, mas recuou logo, pois ela sabia que as sombras não se dispersariam mesmo que ela as afastasse com os dedos.
         Voltou à posição original na cadeira e voltou a olhar-se no espelho. Não podia duvidar-se nunca. Estava perigosa e compreendia que mesmo se não fosse uma enorme aranha com sua teia tecida e estendida, ainda assim estaria apta a pegar muitas moscas.
         Esqueceu as mãos sobre o colo e só com o pensamento acariciou o rosto frio e nodoso. Sem nenhuma surpresa encontrou uma ruga transversal erguendo-se sobre sua tez. Olhou-se mais profundamente e viu-se murchando num jardim de muitas flores esparsas.
         Mas como era a mãe não temia nenhuma daquelas flores. O vento as tiraria do halo e ela ficaria feliz de vê-las mortas caídas no chão. E mesmo se não fosse uma aranha seus palpos ainda o atrairiam para seu íntimo. Daniel olharia para ela e a chamaria uma vez de mãe, mas quando a fixasse abstrato e irrestrito ele mesmo perguntaria – “Que tenho eu contigo mulher?” Então ela o olharia sem mácula e compreenderia sua frase como uma travessia.
         O menino que ele fora não tinha permanecido. E agora mesmo que não fosse uma aranha recolheria seus ovos e os guardaria num saco de teia. Daniel estava um homem. No entanto não era exatamente este o nível da sua compreensão. O que ela compreendia era que um homem vinha substituindo o menino e Daniel era esse homem.
         E o espelho ardia na sua transparência lisa, mas ela estava cálida como uma pedra no meio do campo. Depois viria o sol que aqueceria a rocha e a chuva que lavaria a rocha e o vento que despentearia a rocha. Mas nenhuma dessas intempéries a distrairia da sua imperturbabilidade quieta. Foi então que lembrou-se de friccionar uma unha na outra.
         Ah! afinal tinha garras de fêmea. Era uma grande ave de rapina caçando do alto das nuvens de onde poderia vislumbrar todos os répteis que rastejam indefesos na terra. E ela era a única fera que acolheria Daniel ao seio. Ofereceria seus peitos para que o rapaz os sugasse com avidez e impudicícia. Ah! mas ela não se importava com isto. Abateria com suas setas todas as aves que sobrevoasse o seu jardim.
         Apertou as unhas no pulso esquerdo. Desta carne manará leite e mel que te alimentará no deserto enquanto o habitares quarenta dias e quarenta noites. E ela era ainda o grande fruto suspenso preso entre as folhagens. Mas o sol vinha e atravessava a sombra e via-se a aparência loura desse fruto maduro que Daniel colheria com as mãos trêmulas.
         Nunca que ela se desvencilharia desse amor. Ela seria uma mulher de cem braços para colher essa flor que afinal tinha medrado em vasos que ela mesma modelara com suas mãos. Se não quisesse esta flor para si não a teria cultivado tão cuidadosamente. Se tivesse cultivado uma flor para o vento não teria tido tanta atenção quando o sol a ameaçara crestar e quando a chuva a queria levar. Agora que ela abria-se e sua corola oferecia o mais doce mel das estrelas ela teria também o privilégio de prová-lo puro dentro de fulgurante taça.
         Ela testemunhara como abrira-se aquela flor. Num dia em que a viu entre nuvens escuras de penugens plúmbeas. Ninho de pombinha agreste. Basta folhagem ruiva revelando fruto púbere. Agora que o tempo era propício vinham muitas mãos que se estendiam para a colheita? Nunca que ela permitisse. Mesmo que não fosse uma aranha suas pinças o imobilizariam inevitavelmente retido nela.


         Afrouxou o pulso e sem olhar o estrago que fizera na própria carne sentiu que ela pulsava ardente. Quem era que ousaria? Procurou reconfortar-se dentro de si mesmo olhando em volta e tateando um ponto onde pudesse amparar-se para não sentir-se sozinha. Mas a verdade é que ela poderia estar sozinha e abandonada naquele exato momento. Seria verdade?
         Pensou que Daniel era seu filho e a acolheria. Sim, primeiro a acolheria como a mãe. E quando isto acontecesse o primeiro passo já estaria dado e como todo primeiro passo significa sempre estar com os dois pés dentro de algum espaço, ela concluía muito tranquilamente que estava bem à frente daquelas que haviam começado depois dela.
         Sobretudo não enganava-se com Daniel, pois ele era seu filho e ela o conhecera desde sempre. Seus dedos tinham formado a carne de Daniel e suas mãos haviam modelado na argila da sua pele o que ele em verdade viera a fazer-se. Também fora ela que, enquanto sendo a mãe sazonara o seu impróprio fruto. Não duvidava que ela tivesse privilégios. Quem negaria isso? Nunca ele que era seu filho.
         Assumiu nova posição diante do espelho. Precisava atribuir-se uma atitude muito digna. No entanto ela não sorriu. Mexeu uma das mãos entendendo-a para diante. Observou que poderia abrir uma gaveta da penteadeira e tomar o carretel de linha para amarrar uma ponta na entrada e continuar desenrolando o resto à medida que caminhasse.
         Riu-se dessa conjectura tão transparente, mas decidiu prosseguir com o intuito. Quando encontrasse o bêbedo do marido dentro daquele vórtice ela estaria segura e voltaria pelo mesmo caminho. Agora ele só é feliz bebendo tanto, tanto, tanto que não se tem mais em pé sem a necessidade de uma coluna de apoio. Daniel olhava o pai e ela não se inquietava com a percepção clara de que ele o fazia com um sarcasmo escamando-se em gumes prateados. Deixara de respeitar o pai para convencer-se apenas de que afinal poderia restringir-se apenas a amá-lo sem mágoas, pois assim não precisaria pensar muito nele e conformar-se de que pensar era não ter o pai no pensamento.
         Ela não se inquietava com isto. A realidade tragava todos os entes para dentro dessa vaga voraz. A casa dormia em paz e ela não podia deixar de estar ainda que impudicamente, satisfeita com isto. Agora cada um com a sua vida. Dentro do labirinto o pai. Ela conhecia o mistério e tinha a chave e assim estava fora das paredes contemplado a luz que brilhava perpendicularmente do alto.
         Então Daniel vinha. Muito ruivo e improcedente, mas estendia-se como um grande navio, nu e coroado de ouriços nas pedras lavadas pela salsugem marinha. Ela o via, mas como ele vinha coberto de intempéries e sargaços, olhava-o e sorria-lhe compreendendo a desventura que sobreviera-lhe naqueles jardins de delícias. Afinal ele sempre estaria de volta àquele mesmo seguro porto.
         Assumiu posição indefectível na cadeira. Era a mãe. Assumira esse atributo. E tinha minerado com as próprias mãos esse fruto que ora revelava-se ao mundo perene e púbere. E ela que agora era um ser álgido e saberia enfrentar com lucidez e clarividência inaudita o revelador eclipse que encobriria seu luminoso astro. Mas quando enfim ela pudesse vislumbrar sua luz irradiando-se em outras estrelas poderia assumir duas atitudes prováveis. Negar-lhes o direito de receber aqueles raios de luz fulgente, soprar-lhes a chama volúvel e fazê-las perder-se para sempre no meio das trevas.
         Assim, mesmo que ela não fosse uma aranha teceria uma vastíssima teia, ficaria no centro muito atenta esperando que algum réptil, alguma folha, um orvalho, um raio caído do sol e mesmo o vento que passa despertasse seus sentidos e a fizesse caminhar até lá, onde ocorrera o estremecimento, e envolver o fenômeno com sua dúctil habilidade de tecedeira voraz.




domingo, 19 de abril de 2020

CRÔNICA - ELA QUE ERA A OUTRA



Ela que era a outra


         Procurou-se refletida no espelho da penteadeira e quem encontrou? Uma flor que se abria ao sol e ardia na claridade do quarto. Eis como não ser sombra. Tinha os olhos abertos e as mãos transfiguradas. Espalmou-as sobre o seio tremente e sentiu-os arfar como se ela estivesse imóvel prendendo a respiração.
         Agora ela atravessaria o mundo mesmo que sozinha e quem a olhasse com curiosidade saberia que ela era uma mulher que estava segura dentro do seu corpo.
         Estendeu os braços para diante, para tocar com as pontas dos dedos a corola da flor que se abria na superfície transparente do espelho. Estava magra como uma vara. Observou-se com acuidade vaporosa. Seus braços eram duas raízes escuras emergindo do chão. Mas ela seria uma negra muita amada. Quem a olhasse pensaria, é uma preta, uma escurinha feliz.
         Permitiria-se a felicidade que Deus negou à sua mãe e as outras mulheres da família. Mas isto não era toda a verdade. Então ela se lembrou de como ela era criança e a mãe fazia duas tranças nos seus bastos cabelos crespos. Mas olhando-se depois do espelho não era a menina de tranças escuras que a observava.
         Agora ela poderia encerrar o minuto de contemplação, mas recusava-se a estar sozinha sem nenhuma imposição de pensamentos que a desculpasse desses limites.
         Quando se tornara assim, uma mulher? Ah! foi no dia que ficara morna, as pernas moles, uma lassidão penetrara-a e ela fora perfurada por mil lanças quentes em todos os poros da sua pele. Tentara dormir para acordar tranquila e descansada, mas não pudera nunca conciliar o sono e o desejo de arder. Quanto tempo sofrera assim? Bebera tanta, tanta, tanta água que afinal sucumbira líquida e irrestrita.
         Depois regulara-se e esperava sempre a lua nova com a calma natural das flores que esperam o sol do meio da manhã para se abrir impúberes e frescas requestadas na totalidade da luz. Olhou-se mais uma vez no espelho e viu-se, corola de lírio.
         Riu-se, mas compreendia que dentro estava fria e vaga. Em verdade cansava-se. Tinha então dezessete anos e se impunha a necessidade de entediar-se ouvindo o professor falar dos platelmintos e do sistema digestório dos anelídeos. Um tubo só, desde a boca até o ânus. Os nutrientes vão ficando pelo corpo do animal. Eram os invertebrados.
         Ela não era um invertebrado, mas também não era uma ave, nem uma lesma, nem uma pedra, nem uma semente. Ela não era nem mesmo a água límpida escorrendo fresca e cálida entre as gretas do chão. Tudo o que era, era artificial e sumarento. Mas ela se entediaria na escola até que a libertassem para a rua, para a luz amarela das lâmpadas que faziam da noite uma realidade fria e oscilante, para a contemplação das mariposas cegas que voavam em torno das lâmpadas dos postes da iluminação pública.
         Quando voltasse para casa dormiria ouvindo a avó vencida, habitando num rumoroso sono na cama ao lado. Antes de dormir ela pensaria mais uma vez na mãe que trabalhava para que ela e as irmãs comessem. Viria também a lembrança do pai, mas ela não se demoraria muito nisto, porque o pai era uma coisa em que se não deve pensar muito cuidadosamente.
         Insensível recuou do espelho, deu-se as costas. Vestiu-se com a blusa da escola. Antes de pôr-se a caminho ainda quis sentar-se e desculpar-se afirmando que estava tão cansada para sair de casa que ela recusava-se. Mas também não tinha ânimo para ficar. Como sobreviveria se ficasse?
         A mãe cansada. Muito cansada mesmo, e de um cansaço muito atroz. E a avó que acompanharia o capítulo da telenovela. Ouviria as conversas na casa. Ouviria as vozes na rua. Tinha sempre os meninos que brincavam na rua também. Os vizinhos que se informavam nas calçadas. Depois o silêncio de quem se recolhe para a intimidade da casa. E finalmente um grande e súbito torpor se abateria sobre tudo isto que se acomodaria na sua concha até que viesse outra manhã com outro dia preso nas asas.
         Abandonou-se livre e resolvida a aquiescer com a sua limitada vida. Sobretudo ela compreendia a dor que se carpia enquanto vivia como uma mulherzinha fácil e líquida. Afirmou conscientemente que não se impediria a nada porque sempre havia o risco de cair do alto da escada e tropeçar no vazio que estava entre os espaços que ela percorria e os lugares onde ela ficara muitas vezes muda e parada.
         Havia outra pessoa que a olhava atenta e a espreita de dentro de um vasto espelho claro e liso. Mas ela tinha dúvidas, e até mesmo sobre Deus não sabia como afirmar peremptoriamente algo. Atravessou a sala e organizou os pensamentos antes que a avó com a sua ânsia de amar pudesse vê-la sair.
         Na rua teve o primeiro tremor da claridade, mas pôde recompor-se logo enquanto sentia que pisava nas pedras da rua e se dispunha a caminhar sem se opor a sua decisão irrevogável. Não olhou para trás, pois não tinha nenhuma intenção de ver como as sombras se inclinavam para verificar seus passos.
         O sol não existia mais no céu e iluminava apenas as nuvens muito altas que se acumulavam douradas no recanto do ocaso. Era um fim de tarde com um princípio irresoluta de noite.
         Sozinha ela atravessaria muitas estradas, muitos caminhos, percorreria inumeráveis países e caminharia sobre muitos mares encrespados. Mas isto era uma saída difícil. Contentar-se-ia em abrir uma porta e sentar-se calma e resoluta sobre uma cadeira a sua disposição.
         E havia sempre a suspeita do amor que a esperava chegar. Muitos ela poderia amar. Mas nenhum que ela necessitasse. Um dia que lhe perguntassem – mas quem, Lídia? Ela poderia olhar em volta e pensar antes de responder que não estava disposta a revelar-se como uma rosa num jardim.


         Era imprescindível calar-se, porque silenciosa e breve ela estaria trabalhando para preservar-se enquanto se elucidava por dentro. Terminou de percorrer o bairro e estava na hora de atravessar os trilhos do trem para chegar na rua da escola.
         Ouviu o silêncio da travessia e cruzou os trilhos caminhando por eles sem ocupar-se em pisar no cascalho. O capim nascia entre as gretas das pedras quebrando a verdade das palavras da parábola. Verdade é que ela não sabia mais se o semeador lançava as sementes na areia, na pedra e nos espinhos, ou na água salgada, no fogo e no caminho. Muito tempo se tinha passado desde que ela recebera aquele aprendizado para repeti-lo como uma fórmula. Agora o que tinha nas mãos nem eram lírios, nem rosas, nem sementes. O que trazia nas mãos eram pedras, longas pedras frias que ela poria na boca para pensar claro.
         Viu-o logo e ele era um menino bonito e a pretendia. Mas ela não lhe concederia nada. Desde quando se impõe que uma flor natural não morra depois de um dia de beleza?
         Olhou-o encostado ao muro da escola. Sim, ela teria que passar por ali até chegar ao portão e atravessar. Ele um moreninho alongado, era um homem que começava e tinha formas que cresciam. Ergueu os olhos para vê-la e para que ela o visse. Mas Lídia já tinha decidido tudo. E era sábia porque não se esforçaria mais para nenhuma escolha. Sem olhá-lo fixamente caminhou pela calçada e foi postar-se na outra ponta.
          Se afinal não viesse logo ela precisará entrar na escola e resistir aos professores e as aulas até verter-se de raiva e sucumbir numa letargia silente e vaga. Ouviu o sinal, convocava os alunos noturnos para o início da aula. Ela iria? Entraria? Viu que Pedro, (ele era Pedro) entrara com os outros meninos. Ficou assim mais tranquila e encostou-se ao muro, resolvida mesmo a dar-lhe uma chance.
         Mas ela, Lídia, tão cheia desse táctil orgulho feminino conceder-lhe-ia o sulco da espera? Desvencilhou-se do muro e caminhou para o portão arrastada pelo despeito. Se visse Pedro lá dentro lhe daria algum privilégio. Antes de chegar ao portão parou e olhou toda a extensão da rua procurando divisá-lo em alguma esquina ou vendo se o divisava dentro de algum carro que passava. Compreendeu que não apareceria daquela vez e um grosso sorvo de ar a sufocou. Entrou.
         Teve vontade de chorar, porque afinal nem essa desculpa para ser feliz poderia dar-se. Entrou para ser imolada sem nenhuma possibilidade de redenção ou de mão que a pudesse ajudar na via dolorosa.
         Só quando acabou a aula e pode vir para a rua sem ter que ficar olhando o jardim pela seteira, viu-o em pé do outro lado da rua encostado ao carro. O coração sem freios saltou dentro dela. Resolveu que o odiaria e procurou alguém que em quem pudesse apoiar-se e seguir para casa sem culpa de ter fugido e não tê-lo visto.
         Mas isso era impossível. Não pensaria mais em nada e quando chegasse a casa ela sabia que choraria louca de raiva e odiaria mais a si mesma do que a ele.
         Assim atravessou a rua para poder abordá-lo de perto:
         __Não sei por você veio.
         Ele, maduro, sorriu:
         __Vim por você.
         __Acredito.
         __Pois eu afirmo que vim e até juro.
         __Você jura.
         __Podemos sair daqui?
         __Você pode, eu volto pra casa.
         __Impossível que eu deixe.
         __Não sou sua mulher nem sua filha.
         __...
         __Não ficou de vir mais cedo?
         __Fiquei.
         __Ficou.
         __Podemos sair daqui?
         Ela o viu impacientar-se. Poderia impor-se como uma menina ou como uma mulher com muitas arestas diante dele, mas antes de rebelar-se completamente viu-o abrir a porta do carro e então ela entrou rápido. Arrancou com o automóvel para outra rua onde pudessem conversar sem implicações. O carro andava e ela silenciosa remexia no fundo da bolsa fingindo procurar algo que nunca pusera lá dentro. Precisava disfarçar-se, ainda que parcialmente estivesse convicta de que não poderia render-se como qualquer mulherzinha fácil. Mas como permanecer imóvel diante de tão vasto campo?
         Ele a olhou sem virar o rosto para ela. Compreendia assim que ela não resistiria a nada. Sucumbiria como uma flor colhida diante dele. Ungiria seus pés com perfume e os enxugaria com seus cabelos. Submetê-la-ia quando ela parasse de remexer na bolsa. Parou o carro propositalmente numa rua sem saída. Esperou que ela se desesperasse de procurar na bolsa.
         __Afinal encontrou?
         __O quê? Ela parou oblíqua, com a pergunta.
         __Você me esperou muito?
         __Esqueceu que eu tinha aula?
         __Ah! você tinha aula.
         __Por que não veio mais cedo?
         __Trabalho. Mulher. Casa.
         __E filhos naturalmente.
         __Que você quer? Sou casado, trabalho, tenho filhos, uma família constituída.
         __Ainda bem que você me disse isto agora. Então eu posso te largar, por que você é um homem casado afinal.
         __Filhinha olha, vamos por uma pedra. Deu um problemão lá em casa. Minha filha. Coisa de Filha que um pai tem que resolver. Um pai tem que falar com autoridade para uma filha não se perder de todo. Você sabe, nem sempre a mãe.
         __...
         __Agora eu vim. Lá mais calmo. A menina aprendeu uma lição. A mãe que deixa a borboleta solta. Depois o pai é quem. Você sabe. A menina está na fase. Você também, quase a mesma idade vocês duas. Mas é de você que eu gosto. Vim e fico com você. Lá em casa só tormento.
         __...
         __Você é minha?
         Ela que nunca deixara de ser dele olhou-o compreendendo-o. Que poderia mais querer? Aceitara desde o princípio sua condição de ser ela, a outra que ele amava. Nunca se enganara com ele, porque nunca estivera ignorantona de nada do que ele era. Casado, com mulher e filhos, e trabalhava tanto, tanto, muito, constrangendo-se diante do chefe, obrigando-se a ganhar pouco e trabalhando até tarde. Ela escolhera aquele amor estratificado, e com essa pedra levantaria sua casa, o que não sabia era em que terreno do vasto campo.
         Roberto a beijou e a trouxe para si. Ela veio e ele a acolheu. Era a sua mulherzinha de volta. Beijou-a mais. Beijou-a com todos os beijos da sua boca para tê-la súplice e integral. Era para ela que ele convergia quando acabava o expediente. Em casa quem era ele? O tutor da esposa e o pai dos seus filhos. Em casa, uma noite incerta para o amor. Com ela o amor modelando-se na argila avara. E ele que a conquistara quando estava quase convencido de que afinal precisava render-se a casa, à mulher e aos filhos e fazer-se leão de zoológico. Afinal era ainda o glorioso caçador de virgens. E virgem a tivera. Sim que ele segurara a virgindade dela nos seus dedos. Com quarenta e seis anos nem se imaginara mais uma fera pujante e viciosa. E pensava na promoção que era certa nas palavras do chefe. Então uma casinha pra ela? Uma casinha onde ele pudesse amá-la. Quem na oposição? Não a mãe dela, muito ocupada em por comida em casa para as outras filhas. Não o pai, muito longe e bêbado, separado da mãe. Uma casinha onde pudesse amá-la uma, duas vezes por semana. Quem na oposição? Não sua mulher. Porque nenhuma intenção de largá-la, nem podia com os filhos que tem com ela. Nenhuma possibilidade de escolher entre duas. Quem das duas sem ele? Abraçou-a e sentindo-a disposta e entregue, pôs as mãos sobre suas coxas, ela deixou. Ficaram calados. A respiração dela quente e úmida acordou-o e o pôs preparado para a noite, tumulto sentidos; ofegante ele impulsionou-se para trás, bebeu um grosso volume de ar e suspendeu-se sobre o banco do carro.
         __Vamos pra outro lugar?
         Era a fala dele e ela compreendeu sem susto a grande revelação do desejo dele preso nesta pergunta. Calou-se consentindo-se e ele deu a partida no carro que rodou em marcha à ré nas pedras da rua. O barulho do motor esquentou seus pensamentos. Saíram para uma avenida larga e despovoada. As rodas do carro impondo o movimento e ela resvalando entre as pedras do rochedo liso. Lá embaixo as águas paradas e o silêncio enovelando-se no fundo. Havia uma torpeza íngreme e indigesta dentro do amor. Mas ela permaneceria imperturbável mesmo diante da clarividência desta verdade. Não se imporia o mistério de pensar sobre isto. Viveria apenas como uma folha, na superfície dessas águas e impulsionada pelo vento.  E enquanto ele guiava o carro calado percorrendo a avenida ela olhava para fora observando os últimos cães notívagos, os postes da iluminação pública, os muros extensos que escondiam as casas felizes cobertos de trepadeiras. Lá no céu límpido e escuro viu uma estrela muito fria que brilhava transparente e muda.