quinta-feira, 30 de janeiro de 2020

CAUIM - POESIAS




CAUIM.....................................................................................................................5

O homem que cai; Cascalhos; Poema; A música de Cego Oliveira; O poema; Barrela; Para o Zé; Stultifera navis; Poesia; Formas em exegese; Bandinha de pífanos; O nó do enforcado; Solilóquio; Poema estrutural; Bordado e Cerzura; O boi de canga; Almanaque; João Cabral de Melo Neto; Ideia Fixa; Joaseiro Revisited.




O HOMEM QUE CAI
Meus irmãos eu vos anuncio que caio e que morro,
Morro dessa morte inquieta,
Suspenso no vento
Mas com minhas duas asas quebradas.

Mãos vazias,
Não vos trago sementes,
Lancei-as na margem do caminho,
Caíram entre as sarças,
Calcinaram no meio das pedras,
Medraram esta flor ingênua.

E agora que estou morto
E caminho nesta manhã irreparável
Que começa dentro dos quintais,
Que amadurece nas frutas,
Que acorda no sono das crianças,
Meus pés resvalam e volto cair,
E caindo estou sozinho,
E sozinho estou insepulto,
Insepulto sou o repasto do verme
O verme que consome a vida
E traz a velhice galvânica,
Esta velhice que aos trinta e sete anos
Antegozo e gozo como um bêbado caído.

Se eu tivesse sonhos não os guardava,
Não traria a utopia no bolso da calça,
Não estaria no escuro de olhos abertos dentro da treva,
Espessa treva silenciosa,
Silenciosa e fria que me queima a retina.
E agora estou cego,
Os olhos parados presos na luz,
E erro na vasta claridade e caio outra vez,
Estou voando, estou caindo, resvalando para baixo,
A morte é o supremíssimo cansaso anunciado
pelo poeta nunca existido.

Caminho na rua sem mistério aparente
Entre meio dia e duas horas da tarde,
Olhos voltados para o chão
Onde me escondo e espero nascer a flor fatal e imune.
Caio ainda,
Mas não grito,
Não tenho medo,
Aprendi a cair e a morrer sem sustos,
Voo livre,
Calado e impávido pássaro adiado.


CASCALHOS
Entre as roseiras ela colhia espinhos,
Olhava sem curiosidade
E depois largava pelo caminho,
Nasciam desertos sob seus pés
E ela aceitava o silêncio na paisagem insone.

No rádio diziam o nome de Helena,
Mas a noite trazia as estrelas frias
E a lua que principiava no céu entre nuvens.
Helena era apenas um nome não escrito,
Era apenas uma sombra sob céu claro,
Era apenas o vento dentro da meia noite.

Então as pedras caíam das nuvens de Deus,
E cada homem jazia morto dentro do seu automóvel.
Os anjos vieram como pássaros queimando
E o enxofre do céu caldeou os sonhos,
Mas um outro anjo de asas enormes
soprou a luz que estava parada na treva.
Eu acordei,
A minha boca quente de palavras,
Minha voz esquecida,
Meu gesto parado.

Na minha mão direita os bulbos de um lírio.


         
POEMA
Teu corpo abria-se em corola
Para acolher minha língua bífida,
Para ser invadida por minha força
de homem e fera renhida.

Teu corpo era carne estuante
Para saciar minha sede lasciva,
Para aceitar minhas mãos em concha
sobre teus peitos de mulher vencida.

Teu corpo tinha o calor da flor imprópria
Para receber no cálix meu amor intumescido,
Para sucumbir à voragem de todos os beijos
com que beijei tua boca, teus seios, teu sexo.




A MÚSICA DE CEGO OLIVEIRA
A música é o braço, a mão.
A música é o barro, a lavra.
A música é a chuva, a terra molhada.
A música é a faca, o facão.
A música é a enxada, o leirão.
A música é a safra de cana, a usina.
A música é o trigo é o pão.
A música é o cobre, o vintém.
A música é a cachaça, é o prato de feijão.

Dentro da música tinha tudo:
Tinha a pedra, tinha o cante,
Água da chuva na biqueira.
Tinha o boi, tinha o arado,
E o sertão enluarado.
Dentro da música tinha tudo:
Tinha o alísio, tinha o poema,
E estação das chuvas em abril.
Dentro da música tinha tudo:
Tinha o sal, tinha o fumo,
E pedra de breu e querosene.

O descante era a música,
E a música era pedrenta, e era solúvel
Dentro da memória espessa.
A música estava fechada na rabeca, no arco,
Mas vinha do chão, diapasão do teu canto,
Glabra e visível na claridade imóvel.


       
 
O POEMA
O poema não fede,
O poema não cheira,
O poema é eunuco,
O poema semeia a messe,
O poema sodomiza,
O poema concebe.

Do poema vêm as palavras,
Do poema caem anjos do céu,
Do poema chove das nuvens,
Do poema nascem cabelos,
Do poema corre o rio,
Do poema ressuscita o morto.

No poema o amor morre,
No poema o amor vive,
No poema acaba o mundo,
No poema Deus escreve,
No poema o nada eterno,
No poema a matéria inerte.

O ovo no poema,
O punhal no poema,
O suicídio no poema,
O jornal no poema,
O bêbado no poema,
O escárnio no poema.

No poema tudo:
A guerra, um nome,
Teu nome, Laura, Marília,
Beatriz, Oriana, Rimbaud.


  
BARRELA
Ele tinha dois mil anos no tempo,
E eu não sabia nada de metafísica.
Chamo por vós, clamo por nós,
Seu gesto passava chamando.

Começava a cavalgada escrita,
O céu plúmbeo escurecia,
A música varria a terra,
E acabava-se o mundo.

Dentro da espiral vinham os santos,
Nos barcos iluminados os assassinos,
E eu não acreditava e morria,
Depois acordava no seio da terra,
Meus olhos abertos na morte eterna.


          
EPIGRAMA PARA O ZÉ
O Zé tange a guitarra
e ajunta bois
e ajunta pedras
e colhe flores
e calca os lírios.

O canto do Zé
sobe a montanha
desce a serra
segue pelo rio
abre a porteira
entra na cidade,
pega o trem,
bate o ponto,
almoça prego,
volta pra casa,
bebe a cachaça,
deita na cama
e dorme cansado.

O Zé é pegureiro
lá em Minas,
onde a vida é besta,
onde se lavra ouro,
atrás da montanha.

O Zé minera o cante,
lima o poema,
semeia nuvens,
Zé olha pra cima,
Hey Zé! Parado aí
Meu velho!
que cê tá fazendo Zé?
A vida, nós sabemos,
A vida não presta,
Mas existe a poesia,
No fundo da bateia,
Bilha Zé, é ouro de tolo,
É fruta madura,
É beijo de moça,
É língua no ouvido,
É o que sobra da vida,
Pedaço de nada,
Quinhão de tudo Zé.


STULTIFERA NAVIS
Esta coisa que sou
Esta coisa onde estou,
Meu corpo, minh’alma,
Miserável coisa,
Vontade de gritar,
Grito, grito, grito,
Mas eu não grito,
Oh não, não devia,
Porque tenho medo,
Miserável que sou,
Colho ventania,
Semeio borrasca,
Largo pelo deserto
punhados de sal.

E choro na lua cheia,
E desço da montanha,
Quebro minhas asas,
Vou levado no vento.

Mas nada vale voar,
Mas nada vale gritar,
A lua cheia como um balão
Transcendente no céu.
É a lua dos amantes,
É a lua dos bêbados,
É a nau dos loucos.
Vou com ela vogando,
Não sou amante,
Não sou trovador,
Louco de olhar macio,
Gravemente louco,
Animal feliz.

E entro no poço,
Com escafandro e tudo,
Opresso entre paredes,
Que é isto que vejo lá fora?
Não é Deus, eu juro!



POESIA
Meu amigo, os sonhos todos morreram,
Que é da utopia, que é da revolução?
É que ainda acreditamos nos santos,
É que ainda folheamos as páginas de um livro,
É que Deus ainda está nas igrejas,
Louco, feliz animal pregado na cruz.
Então sejamos convictos,
Atende meu gesto no horizonte,
Eu te chamo de dentro da tempestade,
Vem comigo e derrubemos o altar pagão,
Queimaremos a cruz e as cidades votivas,
Beberemos o vinho e o pão lançaremos na lama,
Ficaremos bêbados e xingaremos a virgem,
Diremos versos obscenos,
Cu, cloaca, vulva, fornicar, pai e mãe,
Depois cairemos de gozo na terra,
O amor intumescido fechado em nossa mão.





FORMAS EM EXEGESE
Aquela mulher que passava na rua sob o guarda-sol amarelo.
Olhavas para o céu iluminado de azul; quando cegaste;
havia um cão na esquina; um automóvel; uma janela; uma flor no                                                                                                     [asfalto
havia também um jardim público e um ipê em setembro. O homem
parado na porta da confeitaria era triste e calado.

Poderia renunciar ao amor, à metafísica, à esperança, e suicidar-me
                                                                                            [ na rua
poderia comprar jornal com notícia da minha morte, olhar a lua visível                                                                                                                [ao meio dia,
fornicar com Marcel, ir com os anjos de Deus castigar Gomorra.
Muitas escolhas; nenhum fruto maduro...
Caminho pela calçada mãos guardadas no bolso da calça.

O dia, estúpido e universal rodando suas engrenagens.



BANDINHA DE PÍFANOS
Ouvi a toada
No claro do vento,
Ouvi a toada
No raio da lua.
Frautas,
Tíbias,
Aulos,
Avenas.
Rodopio,
Corrupio,
Faca, facão,
Macaco caxingó.

Ruda música,
Defolhando em dó.





O NÓ DO ENFORCADO
Agora que eu morri e o relógio está parado,
Não temos mais compromisso e a vida enfim está perdida.
Podes casar e viajar, ouvir um blues, jogar-se da ponte,
Nada é mais importante que nossos corpos apodrecendo,
Nossos sexos secando e nossas mãos envelhecendo.
Ouvi que me chamavam, mas não era o amor,
Tinha um nome escrito,
Que nome era?
Estava embaixo e meus dedos não tocavam,
Então não pude colher esta flor.
Quando voltei os homens tinham naufragado
Ninguém compreendeu que era setembro
Que o sol amanhecia diante da aurora.
Eu estava morto
E olhei a rua sem curiosidade,
Não sei que figura faço,
Mas não tenho nenhum rancor,
Cumpro minha verdade envilecida, e basta!




SOLILÓQUIO
Não queria fazer um poema que fosse triste,
Principalmente não queria falar de mim,
Mas Carlos, este que sou e que sinto em mim dentro,
Este que fala-me e diz-me – não és de Minas
E podes enfim acreditar no amor,
Podes acreditar nos homens,
Até crer em Deus se quiseres,
Porque tu és Carlos, incontestável isto,
Insiste.
Mas o outro Carlos que sabia fazer poemas e que era triste,
Que guardou a pedra no bolso e seguiu a vida até 1987
Este Carlos que convoco em meu nome,
Obsedante,
Impróprio,
Impudico,
Não o recuso,
Está parado dentro da mim.



POEMA ESTRUTURAL
Veio o primeiro homem e disse:
─ Eu amo a guerra e creio em Deus,
Então veio a primeira mulher e consentiu:
─ Eu preparo o teu jantar e cuido dos teus filhos.
E esse foi o primeiro e o sexto dia da criação.
Depois não houve mais descanso e todo mundo teve que trabalhar.

Veio o santo chagado,
Ensinava a multiplicar o pão e os peixes,
Mas houve medo na multidão
Porque era só estender as mãos
                                    [e tomar.
Penduraram o pelotiqueiro na cruz
E voltaram a pescar.

Muito tempo depois apareceu um homem que fazia discursos e acreditava nos livros onde ele interpretava os sinais e este homem fez uma revolução, mas a revolução caiu em desuso e ninguém acreditou mais nos livros e nos homens e as pedras, as cadeiras, as galinhas, os automóveis, continuaram existindo.




BORDADO E CERZURA
Pano ordinário,
Alinhavos,
Plic plic
Segue segue,
Overloque.

Era uma vez uma mulher que costurava calças de homem e era virgem
                                                                                              [aos 50 anos,
Gostava de fumar cigarros Del Prado,
Gostava de beber licor vermelho,
E também conhecia o amor na ponta dos dedos.


                 
O BOI DE CANGA
A lua vai nascer e iluminar o viaduto onde a mulher que olha atrás da treva está caminhando para casa para alimentar seus filhos; ela não tem torre de leite, mas trabalha na casa rica e se cansa. É uma preta, eu vejo. Há quantos séculos as pretas como eu são amas-de-leite, lavadeiras, quitandeiras e concubinas que servem para foder? A memória disto está dentro de mim – meu sangue, meu povo, minha revolta. Eu poderia gritar, mas eu não grito, tenho os dentes cerrados e a boca enxuta. Estou calado e meus irmãos sofrem desde uma aurora a outra aurora. Alguém colhe girassóis no jardim público ou compra sonhos açucarados na confeitaria em frente, olho-o com a lucidez da minha consciência livre. É boca da noite, a lua vai nascer, pressinto. E esta liberdade meu deus? Estas duas mãos quentes? Pensei que fosse febre, pensei que fosse abril. Quantos homens nesta hora não estarão voltando para casa e pensando nas suas mulheres cansadas? Eu que sei disto? Volvo o olhar para o viaduto, meu Deus ela pulou! E a lua começava no céu, exata e fixa.



ALMANAQUE
(Variações sobre piada de Oswald de Andrade)

Na ilha de Cipango o sol nasce primeiro
E a lua nasce depois.
Lá tem um rei que também é imperador
E gosta de ouro,
Mas não deixa ninguém roubar este ouro
Para não andar a mendigar como nestes Reinos.



JOÃO CABRAL DE MELO NETO
Esquadro e prumo,
Paisagem e rio,
Poesia e Marianne Moore
Vida e faca
Cassaco e Sevilha,
Recife e lama,
Pedra e canavial,
Morte e leirão,
Mulher e usina
Capibaribe e não-Nordeste.
Tuas mesmas vinte palavras
E Graciliano Ramos
Verso antipoético.



IDEIA FIXA
Agora tenho medo meu pai,
Tua presença não física, mas palpável
Está presa dentro de mim,
Que fazer para libertá-lo?

Eu vivo em ti porque me concebeste
naquele dia fatal,
Teu sangue queima dentro de mim
Meu pai, tenho medo.

Quando estás, quando não estás,
Quando vens, quando não vens,
Quando sonho, quando não sonho,
Tenho medo e é de ti, meu pai.

Onde teu beijo me bubuiando,
Onde tua mão me pegando na mão,
Onde teu colo afável...
Onde tu meu pai?
Onde tu meu pai?
Onde tu meu pai?



JOASEIRO REVISITED
Pela ladeira em fora onde nos espera o santo,
Pelas igrejas, batistérios, beatérios, passos da paixão,
Este santo não tinha chagas, não gozou lepra,
Teimou de ser santo e foi assim que o chamaram quem o sucedeu.
Agora o santo jaz sob a lájea da igreja
E torna mais rica a cidade que ele encontrou de barro.

Mas na tarde que voa presa no calor de setembro
Não vejo mais o barro,
Tudo é tão claro na tarde que arde,
Comércio, andores de santo, comércio, cantos de megafone, comércio, romarias, batedores de carteira, erisipela, mulheres sem fama, elefantíases, beatos, mãos que pedem, mãos que cedem, mãos que negam, mãos que oferecem, mãos que recolhem, velas, procissões devotas, missas, missas, missas e rezas recolhidas, joelhos penitentes.

Esta negra retinta
Esposa mística de Deus,
Mulher chagada,
Gozosa, extática,
Derramou sangue de Cristo,
Segunda vez.
Lavou nossos pecados,
nossos desejos em chama,
nossas luxúrias, nossa lama.
Esta negra retinta
Não teve carro de glória,
Teve algoz e carrasco,
Fez fama de santa,
E morreu sem consolação.

Podemos subir ruas, descer ruas, becos, ladeiras, baixas, pontes,         
                                                                              [largos, viagem,
São João e o cordeirinho, São Francisco chagado, São Miguel e o e diabo num escárnio, São José com um feixe de lírios, a Mãe de Deus com o coração trespassado de urzes e espadas,
O Cristo crucificado para sempre pendente e o Cristo morto, mas muito mais morto que pensas deitado numa cama de pedra.

Bimbalhai sinos da matriz,
Bimbalhai sinos de bronze
Viemos de muito longe,
Alagoas, Pernambuco,
Minas Gerais e Goiás,
Viemos pelo santo,
Viemos pelo perdão.
Bimbalhai sino da igreja,
Bimbalhai sino da torre,
Cresce a tarde e a noite chega,
Vamos que ainda não é o juízo,
Temos cachaça e chouriço,
Temos banda de música
E enquanto não leem o grande
livro é tempo pra redenção.

Era uma vez o barro, era uma vez o pó, e do pó se fez o homem,
E o homem não tinha vontade de ser pó a vida inteira,
E o homem construiu a cidade e a cidade engoliu o homem.




FIM DE “CAUIM”.


sábado, 25 de janeiro de 2020

CONTO- A VOLTA DO GRANDE PEIXE AS ÁGUAS DO MUNDO



A volta do grande peixe as águas do mundo


         Sem saber por que, o Major acordou sobressaltado. Procurou as botas sob a rede, quando as encontrou, não compreendeu por que as tinha descalçado. Estava estremunhado da sesta, mas levantou a cabeça acima da janela.
Ninguém passava e naturalmente não passaria nunca. Acalmou-se aos poucos. Desde aquele dia exato quando nada aconteceu, ele sabia que tudo estava perdido. Mas afinal precisava calçar-se. Quando descalçara as botas? Era o que não compreendia, mas isso não teria importância nenhuma quando ele estivesse calçado e de pé olhando para a rua de dentro do quarto.
Fez o esforço de erguer-se da rede, mas não quis continuar e deixou-se abater, lânguido e vulnerável. Tinha a sensação que voltava com as mãos vazias. Efetivamente tinha suas duas mãos vazias. E era como se emergisse de um vasto sono onde ele estivera livre e de repente quedasse acordado, mas completamente vencido.
Fechou os olhos, mas abriu-os logo porque voltou a pensar naquele dia exato quando nada tinha acontecido. Não pensou que pudesse compreender com lucidez todo o fato. No entanto podia revelar-se porque estava sozinho e não havia espelho no quarto. Mas se tivesse ouvido com cuidado ele saberia que estava vivo e que não tinha o direito de chegar nesse dia interdito.
Assim muitos anos depois quando ele se lembrou daquele dia foi para descobrir que de manhã ainda ninguém acreditava que nunca não pudesse acontecer. A noite tinha sido sufocante e apesar do vento na folhagem muitos tinham dormido no alpendre das casas. Nessa noite como ficou para sempre, as crianças tinham dormido tão profundamente que as próprias mães não acreditaram quando elas lhe contaram que haviam sido visitadas por doces sonhos.
Simplesmente não acreditaram por que não era possível sonhar numa terra desgraçada como aquela. Agora que a Usina fora desmontada não haveria mais pretextos para os sonhos. Então as mães proibiram os filhos de lembrar-se do que tinham sonhado de noite e ninguém nunca mais sonhou no povoado.
Na manhã seguinte quando alguém se lembrou de falar foi para dizer que à tarde na hora da sesta e também durante toda a noite o administrador pusera os papéis nas caixas e decretara que tudo se acabava. Mas ninguém pode compreender logo isto e os homens foram para o bar do Lisandro jogar sinuca e as mulheres puseram o inhame no fogo.
Ao meio dia veio um menino e disse – a Usina está morta. Os homens se admiraram de ouvir estas palavras sinceras na boca de um menino, largaram os tacos e descendo a rua caminharam até lá. As mulheres entenderam tudo e puseram-se a chorar.
Assim quando os filhos vieram contar os seus sonhos elas já sabiam de tudo e não podiam crer na necessidade deles. Quando os homens voltavam e tinham constatado a evidência da verdade, ouviram o grande clamor das mulheres que se elevava desde a terra até o alto.
E o último homem que falou da Usina depois morreu. Era um índio muito velho que tinha atravessado tantas luas que a sua pele colara-se aos ossos. Não tinha nenhum compromisso porque falava livremente e era também um bêbado – Nunca esqueçam o que eu falo, a terra vai tremer e depois não vai ter mais terra e tudo ficará dentro d’água, até a chaminé da Usina e depois vem o grande peixe e engole todo o mundo.
Os homens voltaram para casa e ampararam as mulheres, naquela noite fizeram amor com elas e conceberam a prole que não conheceria nada daqueles fatos e quando acabaram de fazer o amor puseram a mesa para o bacará sob o castanheiro.
Estavam lá até hoje.
Restabelecido o Major se impediu de continuar avançando, fazia muito calor e ele queria pensar noutra coisa que não o trouxesse até ali. Mas estava cansado da sesta e sentou-se na rede para calçar-se sem rancor. Olhou dentro da bota, não havia nada lá dentro, no entanto era sempre preciso saber. Um homem pode ser enterrado por um escorpião.
Levantou-se completamente calçado com as botas nos pés e pôs-se a olhar para o meio da rua. O que fazer com todo esse calor? E o calor vinha no vento e ardia dentro das casas. Saiu do quarto para a bacia com água onde fez a ablução. Concluiu que pensava que estava sentindo o cheiro do café. Era efetivamente o café que Cordélia tinha feito. Foi bebê-lo na cozinha. Tomou uma xícara bem cheia e ficou finalmente acordado.
Desceu para o quintal da casa, observou que todo aquele sol não seria bom para o alecrim e a murta que estavam sedentos. Deu a volta na casa e foi instalar-se no alpendre onde tomou tabaco e fez um cigarro para gozar o resto dia. Não havia nenhum prenúncio visível e ele acreditou que tudo seria como sempre. Desde aquele dia exato, os dias tinham se fundindo num só dia eterno. Nada a fazer. Não, não tinha que chegar a isto outra vez. Foi a mulher quem salvou-o deste perigo vindo de dentro da casa com o bastidor.
Cordélia bordava pássaro, bordava flores. Desde quando não nasciam mais flores? E os pássaros todos presos nas gaiolas do Major. O marido prendera os pássaros. Não os havia mais livres. Toda a casa era uma grande gaiola onde nenhuma asa era livre. Ela olhou as gaiolas, mas bordava pássaros livres e bordava também flores viçosas.
Pensou que de repente poderia plantar açucenas, mas não tinha chovido e os lírios só acordam depois da chuva. Quanto tempo tinha que tudo aquilo acontecera? Havia transcorrido tanto tempo que ela mesma desejara que nunca tivesse pensado quando foi que aconteceu. O mundo se acabara e quem não tinha partido é porque tinha ficado e recusado-se a aceitar a ausência de invólucro das coisas.
Depois que ninguém tinha ficado é que de dentro das casas vieram para a rua aqueles que não podiam mais nada, nem mesmo partir. Ela era uma dos que não puderam ir embora. Não havia nenhuma surpresa nisto. O Major não indo ela também jamais.
Para onde os dois? Um dia vai acontecer outra vez. Agora não acontece nada e tudo é uma mentira inventada para parecer que a gente acredita. Para o marido que fumava olhando a rua. Ninguém vai passar. Esta verdade sumarenta a invadia e ela bordava mais um pássaro e mais uma flor. Onde plantar açucenas? Onde ser um pássaro livre? Depois ninguém pode mais sonhar. Os mesmos ventres das mulheres secaram e a erva nunca mais cresceu, o gado definhou e morreu e os homens ficaram presos no bacará.

Ela também olhou para o meio da rua sem esperança. Dentro de uma nuvem de pó dando a volta atrás da igreja era o médico que vinha vindo jogar com o Major. Não jogavam o bacará porque se envergonhavam de ser como os outros homens. Tinham algum orgulho da lucidez que conservaram.
Quando o doutor veio e chegou à frente da casa o Major tinha acabado o cigarro e o cumprimentou oferecendo-lhe a cadeira. Jorge não se decidiu a entrar logo e Cordélia o viu no umbral envolto no pó. Quando ele finalmente entrou no alpendre e sentou-se o Major voltava de dentro da casa trazendo o dominó. Cordélia bordou mais um lírio cheiroso e começou mais um pássaro, dessa vez principiou pelas asas.
Não havia nada a fazer e ninguém pensou que pudesse haver mesmo alguma coisa com tangibilidade suficiente que se impusesse contra aquele mal. Jorge não podia explicar por que não quisera ir com outros, e quando finalmente alguém disse que aquela terra não tinha futuro e ele acreditou realmente nisto, não teve nenhum ânimo para recusar-se ficar. Como foi ficando e depois ninguém mais precisou de um médico não havia nenhum outro dia que não passasse sentado na porta da casa. Pela manhã, até que a criada o chamava para almoçar, depois dormia a longa sesta da tarde e quando acabava de dormir saía para a rua e enfrentado a poeira ardente atravessava-a e vinha jogar com o Major.
Há quanto tempo acontecera tudo? Não podia afirmar com certeza que sabia, mas como ele estava olhando para Cordélia e o Major estava olhando para a rua, Jorge podia supor que o primeiro lírio bordado por Cordélia tinha sido no dia em que toda aquela demência principiara. Agora estava velho para seguir pela estrada. Mas se não estivesse velho não tinha certeza de que seguiria. Sempre seria um modo de viver aqui para sempre.
─ Foi o que ouvi que diziam, mas não me surpreende que seja assim.
Quem despertou primeiro foi Cordélia que não pode continuar bordando o pássaro que voava livre sem não prestar atenção no que o doutor falava sentado na cadeira. O Major veio vindo de longe e concluiu que o amigo falava com ele. Mas antes de saber o que era olhou-o fixamente para não equivocar-se e poder ver que eram palavras que saiam da boca do médico.
─ Então os mortos estão vivos?
─ Não estão vivos Major. Depois que ninguém mais morreu e foi a mãe de Miguel a última que foi sepultada lá em cima no cemitério. Você se lembra dessa morte Major?
─ ...
─ Quem não lembra. Foi depois que tudo aconteceu. Ela corria chorando pela rua como as outras mulheres e era um clamor tão grande que se assustou a manada de bois que comiam no morro e correndo pelas ruas pisoteou a pobre mulher.
─ É foi assim, mas e então?
─ Então que não tem nenhum morto que esteja vivo no barranco, mas o que eu afirmo é que os corpos estão incorruptíveis dentro daquela terra. É o salitre, Major, que conserva-os.
─ Probrezinhos dos mortos, nem apodrecer podem mais.
Era Cordélia quem falava e ninguém se surpreendeu que ela pensasse assim, depois não prestou mais atenção e voltou ao bastidor. A tarde acabava como tinham acabado todas as outras antes desta e outras mais que viriam também acabariam assim. Sobretudo ela não podia firmar em dia estavam e concluía naturalmente que todos os dias eram um só dia convergindo sempre para o tempo parado. Sabia que não se surpreenderia se viessem chamá-la agora para chorar.
Lembrou-se que poderia trazer café aos dois homens no alpendre, mas adiou propositalmente tal decisão tão acertada. Continuou bordando porque tinha terminado um pássaro e começava uma flor que ela pretendia bordar no meio dum jardim.
Enfim havia uma estrela no céu e os homens propuseram-se jogar a última partida. Fariam isto antes da janta. O Major tinha perdido todas, mas não se inquietou, pois sabia que o doutor era o melhor. Assim quando perdeu também a última, guardou as pedras no estojo e tomou tabaco para fazer um cigarro. Como o doutor não fumava ergueu-se da cadeira pôs-se de pé e foi de pé que falou:
─ Também falaram dos ciganos depois do Jaramataia.
O Major prestou atenção, mas o doutor não pode dizer mais nada porque sabia só isto dos ciganos. Desceu os degraus do alpendre preparando-se para ir embora. Parou no meio do terreiro e olhou para a lua que lá longe nascia.
Quando o doutor saiu Cordélia depôs o bastidor e entrou na casa. Preparou a sopa e chamou o Major para a janta. Que ele não sabia em que pensar, mas tinha certeza que pensava. Depois de tanto tempo sem pensamentos era a primeira vez que ele sabia que havia um prenúncio de ideia na sua razão. Não se antecipou e quando sentou-se a mesa tomou a sopa em silêncio. Mesmo quando Cordélia acendeu o lampião ele continuou sentado a mesa procurando por ordem nos pensamentos que vinham vindo e se acumulavam já em tumulto.
No outro dia ele ainda continuava pensando e não deixou de pensar durante muitos dias. Impressionava-o compreender que ele podia escapar da demência. Mas não comunicou nada a ninguém, se soubessem poderiam duvidar e ele seria um louco. Mesmo à mulher não revelou nada. Só quando vislumbrou a luz que iluminava o vasto espaço ocupado por sua mente foi que tranquilizou-se e entendeu tudo, não como uma claridade subitamente iluminada, mas como uma sombra que aos poucos vai dispersando-se na luz.
Guardou para si como um segredo e pode esperar tranquilamente quando a ocasião chegasse. E ela chegou um dia quando ele estava sentado no alpendre e ninguém tinha passado na rua e Cordélia bordava um lírio atrás de uma pedra.
─ Preciso ir aos ciganos.
Cordélia olhou-o sem surpresa. Tinha já adivinhado todos os pensamentos do marido e tão logo o ouviu depôs o bastidor sobre a cadeira e entrou na casa para preparar-lhe a viagem.
Ele ouvira tudo sobre os ciganos, mas não ouvira o bastante e por isto sabia tão pouco que era preciso conhecer mais. O que sabia? Que havia um prestidigitador lá. Que também havia um profeta. Ele lembrava-se ainda do pai que lhe falara do perigo dos ciganos, mas isto fazia tanto tempo que as palavras do pai não poderiam ser mesmo verdadeiras.
Assim quis viajar e acalentou este pensamento dentro dele durante todos aqueles dias e o guardou durante o sono da noite, durante o almoço, durante a sesta, a tarde não queria pensar nele para que não fosse conhecido, mas na janta quando sentava-se a mesa e ouvia a música do bar do Lisandro perdida no espaço, ele pensava com mais força até que rendeu-se e a ideia fez-se clara e distinta na sua consciência iluminada.
Foi assim que o Major decidiu ir aos ciganos.
Durante os dias que se sucederam a preparação da viagem, o Major não se descuidou um instante das notícias dos ciganos que podiam chegar no povoado. Quem trazia as notícias não sabia afirmar nada do que dizia, mas como tinha escutado no vento e pensava que era verdade o que vento trazia não se furtava nunca em chegar ao ouvido de alguém e dizer aquilo que entendia não saber com clareza, mas que não podia deixar de ser verdadeiro.
E o Major soube da mulher que olhava fixamente o céu e depois virava estrela, do leão que tinha engolido o domador e chorava. Tinha também o homem que era santo e pregava para os peixes, a moça que não tinha membros e se desdobrava por dentro deixando ver seu coração na boca. Mas o que ele mais queria saber era sobre o pelotiqueiro que desaparecia do mundo e depois reaparecia outra vez. Do profeta que ele queria ouvir falar, ninguém não falava tanto, soubera que ele vinha com os ciganos, mas não era um deles.
Logo a viagem do Major foi conhecida e muitos que tiveram vontade de ir, mas não chegaram a crer que pudessem fazê-lo esperaram ansiosamente o dia em que aquele bravo Major seguiria para fora do Cumbe em busca dos ciganos. Assim foi uma revelação para o povoado quando compreendeu-se que sempre havia alguém entre eles que não tinha escolhido morrer ali.
No dia em que o Major partiu era madrugada, as mulheres acenderam lampiões e os homens assim iluminados vieram para a janela das casas vê-lo descer a rua. As crianças não o viram porque estavam dormindo e não sabiam se podiam sonhar. O Major desceu a rua e ninguém mais o viu, mesmo quando a aurora iluminou o caminho e alguém se lembrou de subir o barranco para ainda vê-lo afastando-se do povoado.

Durante o resto da manhã o Major passou a trotar pela estrada. Não pensou mesmo em quem tinha ficado para trás. Mas também não tinha nenhuma certeza se haveria quem encontrar. Seguiria, e agora ele compreendia que não haveria nada melhor do que continuar seguindo. E se continuasse seguindo e não encontrasse? Mas quem disse que encontraria? Sempre nunca fora lhe dito que se procurasse encontraria, não tinha nenhuma esperança mesmo, mas isto não o impediria mais – Ainda que não encontre.
─ Mas pode encontrar meu Major.
─ Você que é uma mula inteligente e compreende a linguagem humana escutou mais alguma coisa vindo no vento?
─ Nada que eu possa afirmar que pode acontecer por que é inevitável, mas sempre alcançamos uma visão do que se anuncia, contudo ainda não é real.
─ Não entendo essa linguagem de cavalgadura, mas vou acreditar nas tuas palavras.
─ Eu te anuncio o Grande Peixe e seu ventre que engole tudo.
─ Não discuto minha burrinha e até poderia mesmo acreditar.
─ ...
E a mula abanou as orelhas como sinal de assentimento característico aos quadrúpedes e outros bichos mais humanos, o Major viu este sinal e seguiu a trote largo. Depois do meio dia veio a tarde e ele sabia que tudo agora era irreversível. Quando veio a noite não estava cansado ainda e cavalgou até a manhã seguinte, podendo ver finalmente diante dos olhos uma extensa planície que reverberava sob o sol que iluminava o dia.
Era tão clara e iluminada a pradaria que nunca não vendo não se acreditaria que era real. Mas ainda não era ali que ele encontraria o acampamento cigano e mesmo deslumbrado precisou seguir cavalgando. E como seguiu ainda viajando durante todo aquele dia e mais uma noite e um dia chegou sem surpresa na tenda cigana que tinham erguido nos morros e baixos da paisagem.
Os ciganos estavam por ali sentados e comiam. O Major sentou-se com eles e olharam-se sem surpresa. Um deles que parecia ser o líder ergueu-se e dispôs-se a mostrar tudo que ele quisesse ver. Levou-o a tenda do mártir que engolira o leão na arena, levou-o para conhecer a bailarina de seis braços e a mulher que era invisível. Ainda conduziu-o a jaula dos homens e a tenda do macaco quiromante que conhecia o passado e lia o futuro. Quando o Major tinha se cansado de ver todos aqueles prodígios foi que ele se lembrou de saber do mágico.
─ Fez um truque dentro de uma garrafa e desapareceu.
─ Quando é que volta?
─ Pode voltar quando quiser agora se escolher, não querendo não voltará nunca ou voltará se tiver vontade.
─ Vim de muito longe.
─ Veio. Pode esperar se quiser.
─ Eu posso sim, eu sei que não prometi nada.
O Major sentou-se nas gramíneas e respirou o ar grosso que se acumulava a sua volta. Mas de repente pensou numa coisa que ele mesmo tinha esquecido. Era o devaneador.
─ Onde o visionário?
─ Esse ensinando nos montes, nunca está onde o buscamos.
─ É sábio?
─ Quem não o conhece e o escuta pela primeira vez sempre acredita que é o homem mais sábio do mundo, depois as palavras pesam e não duvidamos de que já as tínhamos escutado melhores.
─ De modo que eu preciso ver o visionário.
─ Não é difícil, siga os sinais, ele estará no fim deles.
Não esperou mais e cavalgando a mula foi ao homem. Seguia os sinais como lhe tinha sido instruído e como os seguia era impossível que os não fossem encontrando, principalmente porque queria vê-los e sua atenção estava devotada a isto. Os sinais seriam seus guias até o profeta.
Não pode deixar de vê-los logo, porque eram muito evidentes. Havia por toda parte do caminho sinais distintos da presença indubitável do visionário. Ele podia acreditar se fosse possível, mas só o faria no fim quando tivesse com os olhos em cima do homem que informaram descansava em baixo de um pé de mamona.
Seguiu mais, todos os sinais eram visíveis, mesmo a mula acharia o caminho. Um desfilar de gente que voltava de ter ido ao visionário. Tinham caminhado pela estrada, mas agora regressavam, traziam no semblante marcas de satisfeita bem aventurança, mas eram ainda sobretudo mendigos pedindo pelo caminho. Então as mãos do profeta não se esvaziaram para todos os miseráveis? Ele não chegava a compreender profundamente estas coisas, mas não podia deixar de crer que fosse possível quando chegasse o momento. O que viera buscar não era certo – palavras de fogo que ele diria com a sua boca. Uma anunciação. Se ele anunciasse o Grande Peixe viajando pelo espaço, o Major voltaria ao Cumbe e repetiria as suas palavras, então ele acreditaria e não haveria quem não pensasse que ele, que partira de madrugada voltava para casa porque tinham acabado as provisões que levava no alfanje. Não se iludisse, contasse no povoado os prodígios que vira ninguém duvidaria que fosse verdade, mas nunca que se decidiriam pensar nisto o quanto fosse necessário. Mais adiante vinha uma multidão de aleijados, tinham queimado as muletas na fogueira e caminhavam trôpegos como crianças que aprendem a andar. Apoiavam-se, contudo na sua vontade extrema de caminhar. Desses o Major teve piedade, agora que podiam andar e povoariam as estradas e encontrariam muitas pedras, não seriam poucos os que tropeçariam e cairiam impossibilitados de continuar seu caminho.  Viu também que vinha um homem que se vendera e muitos outros que se mercara seguindo o exemplo deste, mas este que se vendera e seus seguidores vinham perdoados e eram livres. Outro havia que negara o seu mestre, conhecera-o, comera com ele no mesmo prato, beijara-lhe a face e jurara sobre seu sangue, mas veio a madrugada e antes da aurora negara o mestre, o sangue do mestre, pouco lhe importava isto, era pescador, vendia peixe na porta do intendente. E este vinha igualmente perdoado. Os leprosos caminhavam limpos e as mulheres de amor fácil vinham reabilitadas e um morto que morrera vinha ressuscitado e um cego que nunca vira a luz colhia flores que largava pelo caminho. O Major tinha a atenção voltada para todos estes portentos, e concluía que encontraria o formoso pé de mamona no fim deles. No entanto, de súbito, parou antes de subir a ladeira, indagou de quem passava.
─ Para onde vou?
Era um epiléptico que parara de ter ataques porque o demônio que o possuía se fora.
─ Vai encontrar, mas voltará sem ouro nem prata, em tuas mãos somente joio e sargaços.
Cumprimentou-o e passou. Debaixo do umbuzeiro não prosseguiu mais. A mula empacada. Ele não seguia. Olhava pra frente, voltava-se atrás. Para que seguir? Já viemos até aqui. Eu volto se tu ficas minha mulinha. Prosseguir não prossigo. Não precisamos isto. Rastros atrás!
Quando o Major entrou no arruado do Cumbe tinha começado a hora do calor e ninguém se ocupou com isto porque era a hora da sesta e não havia nenhuma importância neste fato. Ele atravessou a rua, o vento levantava o pó ardente que cobria as casas, que cobria o mundo. Quando dobrou para trás da igreja viu Cordélia sentada no alpendre, bastidor ao colo, ela bordava. A mulher olhou-o, interrompeu o bordado de um pássaro para continuá-lo loguinho. Esperou que ele chegasse mais perto para vê-lo melhor dentro da nuvem de pó. Na frente da casa o Major desceu da mula, parou no umbral antes de constatar que Cordélia havia bordado inumeráveis pássaros livres que pousavam nos galhos das árvores próximas e no telhado da casa. Foi então que ele viu a sua cadeira vazia e caminhou para lá. Sentou-se e Cordélia voltou ao bastidor enquanto sob seus pés a terra começava a tremer.