Pássaro fulminado
Pássaro fulminado |
Depois que sepultaram Aninha, André voltava para casa na caminhonete do tio. Ele vinha na carroceria, sentado entre os primos Pedro e Paulo que não falavam nada porque vinham tristes e vazios e André também estava vazio, pois ele vinha pensando como uma coisa daquela havia acontecido com eles todos e em como de repente estava todo mundo perplexo sem compreender a brutalidade daquele domingo.
Mas se de súbito alguém pensasse assim: – Aninha não morreu porque os patos continuam nadando no tanque e Aninha é quem leva farelos pros patos lá dela. Então era só se concentrar mais e vinha à lembrança – Aninha morta vestidinha de branco no caixão branco e dormindo entre flores brancas. Com pouco recordava-se também o cheiro espesso das flores que dormiam agora sob a terra. Aninha também estava no escuro sob a terra e quando ela abrisse os olhos ficaria imóvel contemplando o silêncio das flores morrendo em sua volta e os estalidos das tábuas do caixão cedendo ao peso da terra.
O tio de André guiava a caminhonete. Preferiu que os meninos não viajassem ao seu lado, decerto não os queria espreitando sua dor. André compreendeu e chamou Pedro e Paulo para viajar com ele na carroceria da caminhonete. Ninguém ainda tinha decidido começar a aceitar que Aninha morrera e que agora a casa ficara para sempre como um lugar difícil, e era o lugar onde Aninha tinha vivido até que não existisse mais.
André curvou-se para frente e concentrou-se na estrada. Logo se lembrava que já era de tarde, pois apesar da chuva ele sentia o cheiro quente das folhas na mata e era um cheiro que só vinha de dentro da mata quando o sol aquecia a umidade da folhagem. E também era de tarde porque eles tinham cruzado com Deolindo na estrada, vinha conduzindo os bezerros para o chiqueiro.
A caminhonete rodava na estrada de terra e alguém pensou e falou:
___ Amanhã o pai precisará trocar a suspensão – disse Pedro.
___ Não livrou um buraco até agora – falou André.
Calaram-se e o tio de André guiava o carro dentro de um charco que a chuva deixara no leito da estrada. Quando a caminhonete venceu o paul, André reclinou-se para trás e pensou – mas afinal a vida vai continuar depois, tio Afonso quem não se conforma, Maria Cora, esta logo consolará todos. E com os dias começaremos a pensar, Aninha tinha que morrer, era muito, muito boa mesmo para viver entre nós. André se disse – vou dizer isto assim aos primos.
Mas André não disse nada.
___ Aquele lá era Elias – perguntou Pedro.
___ Não deu pra ver, o pai passou muito rápido – falou Paulo.
___ Aquele negro – disse Pedro.
André recostou-se na grade da caminhonete e encolheu-se entre os irmãos. Olhou para a beira da estrada onde a mata tinha sido devastada e o capim crescia em grossos tufos e touceiras que ondeavam ao vento.
___ Não é verdade que Elias tem um shamo – perguntou Pedro.
___ É. E não é qualquer mutuca – falou André.
___ Aquele negro – disse Pedro.
André observava o milharal se estendendo pelos morros, procurava divisar as carreiras da plantação. Ali no meio era bom pra apanhar ovos de perdiz. Quando a caminhonete chegou ao alto da ladeira, André olhou para baixo e viu o rio parado no meio do brejo. Então ele pensou como seria bom não está acontecendo nada para que eles pudessem estar caçando frangos-d ’água.
___ O cascalho está solto aqui – falou Pedro.
___ O pai vai desengatado – disse Paulo.
A caminhonete desceu a ladeira, mas em ponto morto, entrou num trecho da estrada ladeado por uma mata fechada com árvores intrincadas. André fechou os olhos e sentiu-se tonto, ouviu então o próprio sangue pulsando nas artérias. Quando voltou a abri-los já se viam as casas do povoado.
___ Quando vai ter botada – perguntou Pedro.
___ Zaqueu quem chama – disse André.
___ Até três dias Zaqueu não abre – disse Paulo.
___ Não sei o porquê – falou Pedro.
___ Solidariedade seu idiota – disse Paulo.
___ Ahã – Pedro estirou as pernas – por causa de Aninha?
___ Mas é claro. Uma criança que morreu. Nossa irmã e a filha do pai – disse Paulo.
___ O velho Zaqueu respeita muito o pai, não é Paulo?
___ E não era pra respeitar – disse Paulo - o pai não pede renda pra ele.
A caminhonete entrou num areal, mas logo o venceu. Viajavam agora entre o bananal.
___ Não foi Zaqueu quem trouxe Aninha – perguntou Pedro.
___ Foi. O velho Zaqueu mergulhou no rio – respondeu Paulo.
___ Zaqueu não salvou ela – falou Pedro.
___ Entenda que Aninha já estava morta no fundo do rio – disse André.
___ Entendo – falou Pedro.
___ Você namora a filha dele – disse Paulo – André, você namora Dinorá?
___ A escurinha – perguntou Pedro.
___ Não fale assim – disse Paulo.
Pedro riu.
___ Se você ficar rindo conto pra Maria Cora o que você disse – falou Paulo – olhe pra você também.
___ Você namora Dinorá, André – perguntou Pedro.
___ Não.
___ Não é o que dizem – disse Paulo.
___ Dizem tantas coisas – falou André.
___ Inclusive que você visita Dinorá toda noite – disse Paulo.
___ Boato. – Sentado entre os dois primos, André sentiu-se feliz por terem provocado ele sobre Dinorá. – Não sei se ela é minha namorada. – Disse.
André olhou para a beira da estrada onde se estendia o curral. O tio de André tinha diminuído a marcha do carro. No pasto houve uma revoada de coleiros.
___ Aposto que é – disse Pedro. – Vocês não pescam juntos?
___Pedro não consegue namorada – disse Paulo. – Só toca bronha.
Pedro calou-se.
___ Pedro só tem aquela bananeirinha pra ele brincar de fazer – disse Paulo.
___ Não enche não, tá?
___ Podemos mudar de assunto – falou André.
___ André você pode ficar com Dinorá – disse Pedro. – Eu posso conseguir coisa melhor.
___ Olha quem fala. – disse Paulo.
___ Você não viu como eu cerquei Alice. – perguntou Pedro.
___ Não cheguei a ver como você fez com Alice porque eu estava ocupado ensinado umas coisas pra ela. – falou Paulo.
André curvou-se sobre as pernas e escondeu a cabeça entre os joelhos. Chegaram e todos desceram. Tio Afonso deu a volta na casa e Maria Cora apareceu na varanda. Ela ficou esperando os meninos subirem os degraus, mas Paulo entrou na vereda e caminhou para o lado do rio. Pedro entrou na casa e Maria Cora desceu os degraus. André esperou que ela chegasse ao terreiro e quando ela chegou André a viu de perto, era uma mulher dura e tranquila.
Maria Cora chegou. O sol apareceu e se escondeu. Ele Contemplou-a antes que ela falasse. Era escura e lustrosa. André pensou – um dia eu vi ela no rio, estava nua, ela também me viu, é toda preta.
Então ele teve vergonha de ainda estar ali parado com as mãos vazias, pendentes ao longo do corpo. Não sabia o que fazer com as mãos. Maria Cora parou o olhar nele. André abaixou-se para pegar um seixo que ele tinha chutado.
___ Preciso ir, mamãe – falou André apertando o seixo na palma da mão.
___ Não tem importância André, por que não entra e lava-se. – disse Maria Cora.
___ Vou pra casa, já está tudo acabado.
___ Vamos menino, Aninha sempre será feliz em qualquer lugar.
___ Mas tio Afonso.
___ Está triste agora, mas vai compreender tudo depois.
___ Adeus Maria Cora, mamãe...
___ Volte depois André, os meninos vão precisar de um amigo.
André atravessou a porteira e caminhou pela estrada. Quando desceu a ladeirinha entrou pela cerca e seguiu pelo pasto. Atravessou o capinzal e parou ao lado do sabugueiro em frente a sua casa. Ouviu o vento agitando a folhagem e as flores se desmanchando em flocos secos.
Pela porta aberta André viu o pai. Estava bêbado como ele já esperava. Para não ser visto André seguiu por trás da casa até o quintal. O portão estava aberto e André entrou, sentou-se no tanque e somente quando a mãe o viu sentado é que ele decidiu aproximar-se da casa.
___ Está com fome aposto. – perguntou a mãe.
___ Adivinhou. – disse André.
___ Fiz um prato pra você, está no guarda-comida.
André entrou na cozinha para comer. Ao lado mãe o observava comendo. André comia inclinado sobre o prato. Quando parou de comer ouviu os passos do pai lá na sala. Estava bêbado, mas hoje era domingo. A irmã de André estremunhou nos braços da mãe, André olhou à mãe. A mãe estava plácida e tinha uma expressão de tristeza fechada.
___ Como foi lá. – a mãe perguntou. – Ocorreu tudo bem?
___ Sim. Não houve problemas.
___ Como estão eles. – a mãe perguntou.
___ Tio Afonso. – André perguntou.
___ Sofre naturalmente, mas depois ele vai compreender tudo – disse a mãe. – Mas me preocupo mesmo é com os meninos, me preocupo mais com o Paulinho, o mais parecido com Lídia.
___ Maria Cora.
___ Vai ajudar muito meu filho, mas não é a mãe deles. Vai ser boa principalmente pra Afonso.
___ Papai podia.
___ Seu pai não pode nada. – Vamos ser solidários com eles, olha se Maria Cora precisar de mim diga pra ela que estou aqui. Minha irmã escolheu Maria Cora para os filhos dela. Penso que fez muito bem. Não é culpa de ninguém o que aconteceu. Aninha não obedecia. Era rebelde.
___ Paulinho pensa que.
___ Console ele André. Tire isto da cabeça dele. Olha, por que você não chama ele pra caçar?
___ Tio Afonso chorou.
___ Chorou? – Está bem. – Eu também chorei. – Maria Cora chorou. – Quem não chorou?
___...
___ Todo mundo chorou, pois Aninha era um anjo. Deus precisa de anjos dele não acha?
___ Sim.
___ Pois termine de comer meu filho.
A mãe aconchegou a irmã de André nos braços, levantou-se, depois seguiu pelo corredor em direção à sala. André acabou de comer e afastando o prato para longe curvou-se sobre a mesa. Sentia a cabeça pesada e seu pensamento instável. Lembrou-se de que poderia visitar Dinorá, mas ao mesmo tempo pensou um pouco se não estava cansado e com sono. Ouviu a voz do pai alterando-se lá na sala. Quando bebia falava aos gritos e era grosseiro com a mãe. André decidiu que era melhor não ficar ali enquanto o pai não dormisse.
Saiu pelo quintal e desceu para o rio pelo caminho da cacimba. Quando chegou à margem ouviu os lambaris rabiando na superfície da água. Observou o fundo escuro e lamacento do rio, lá entre a lama, folhas podres se misturavam as pedras e se transformavam em esterco de peixe. André cruzou o rio sobre a pinguela improvisada num tronco de ingá. Tomou a vereda e subiu em direção ao quintal da casa do velho Zaqueu.
Antes de ser visto lá de dentro da casa, André parou atrás da cisterna e ficou esperando. Logo Tobias apareceria no portal do pátio e o veria ali. Enquanto esperava André distraia-se lançando pedrinhas que viera ajuntando nos bolsos às galinhas. Estas eram doidas e pensavam que eram sementes o que ele lhes lançava.
Quando Tobias apareceu no portal do pátio viu André inclinado para dentro da cisterna e caminhou para lá.
___ Está pescando as tilápias de Nina com a mão – perguntou Tobias.
___ Com um toco de capim, mas elas não mordem, venha ver – disse André.
___ Não estão com fome – disse Tobias.
___ Aposto que não. – Falou André.
___ Está aqui pela Dina, não é. – Tobias perguntou.
___ E você, não estaria?
___ Vem comigo, ela segue a gente.
Entraram no bananal e só pararam de caminhar quando não era mais possível ver a casa. Sentaram sob a folhagem dum abacateiro escutando as galinhas pastando. Tobias foi o primeiro quem viu o pássaro voando entre os galhos. Concentrou-se nele. Não era um passarinho desses que ele conhecia e prendia no visgo.
___ Você está vendo o que eu estou vendo, André. – perguntou Tobias. – Estou vendo um passarinho que eu conheço.
___ Nem me interessa – disse André – nunca vi um domingo que não termina. Parece que o mundo parou e que sempre será domingo.
___ É porque choveu e o sol está se escondendo, André. – disse Tobias.
Escutaram passos vindos da direção da casa. Esperaram para ver se era Dinorá e viram que era Dinorá quem vinha seguindo-os. André começou a escavar um formigueiro com um pau.
___ Então você voltou com eles. – Dinorá disse sentando-se ao lado dele.
___ Eu não podia Dina, tenho mãe. – Disse André.
___ Só mãe – perguntou Dinorá.
André ficou em silêncio. Dinorá esticou as pernas e puxou o vestido para os joelhos.
___ Sabe Dina, nunca vi pessoas tão infelizes. – Disse André.
___ A sua família aposto. – falou Dinorá.
___ Aninha! Você não acha que foi assim de repente. – Perguntou André.
___ Não acho não. Olha, André, você tem uma família. – Falou Dinorá – não foi uma tia sua que sumiu – perguntou – sumiu não, evaporou, desapareceu assim no ar.
André olhou-a sem curiosidade, réstias de sol caíam sobre sua pele escura. Ele pensou então que o sol aparecia entre as nuvens para vir iluminar Dinorá enquanto ele torturava as formigas.
___ Aquela que foi apanhar coque nos trilhos do trem e sumiu. Ninguém nuca mais que nem soube dela, é como se de repente ela nunca tivesse nem existido – disse Dinorá – você sabe disso. Não foi assim?
___ Foi Dinorá.
___ Pois está aí. Não me admiraria nada se de repente Aninha aparecesse lá no casarão dizendo – dormi ontem e acordei hoje, engraçado é que quando acordei tinham me vestido com o vestidinho da primeira comunhão e me coberto de flores.
___ Você brinca com tudo Dinorá. – Disse André.
___ Vocês estão vendo o passarinho também – perguntou Tobias.
___ Tobias, você é um empata. – disse André.
___ Com licença, vou me esconder ali enquanto vocês fazem a porcaria de vocês. – Falou Tobias.
Tobias desapareceu numa carreira do bananal. Depois que já tinha se passado muito tempo, eles ergueram-se da terra e sentaram-se limpando a areia.
___ Você teria coragem de fazer um bebê comigo, André – Perguntou Dinorá – levantou a saia do vestido se limpando com folhas de salsa.
___ Não sei. – disse ele. – Os bebês crescem dentro das mulheres não é?
___ Crescem.
___ E não dói?
___ Parece que dói quando eles querem nascer.
___ Pois eu não sinto nada quando eles saem.
___ Mas você não pode ter bebê, André.
___ Eu sei.
___ Mas você pode fazer um bebê pra mim.
___ E se já fizemos – ele perguntou levantando-se e dando-lhe as costas para urinar no buraco de formiga.
___ Um dia a gente faz um de verdade, vamos dar um nome que você escolher, André.
Acabou de urinar, recompôs-se e voltou-se pra ela.
___ Ah! Então ele ficará sendo Aninha também.
___ Ih! Impossível esse nome já é dela.
___ Escolhe outro.
Enquanto ele escolhia outro nome ouviram os passos de Tobias chegando.
___ Aposto que já acabaram né, André. – Perguntou Tobias.
___ Pegou o pássaro. – Perguntou Dinorá.
___ Eu não precisei. De repente ele voou daqui, mas caiu mortinho no meio do voo – disse Tobias levantando a ave na altura dos olhos.
___ É uma lavandisca – perguntou André.
___ Não. – Respondeu Tobias. Mas olha, eu encontrei uma estrela no peito dele.
André |
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