Os nus
Os nus |
___ Não procurou demovê-las, é uma temeridade isto.
___ A fome escuta a razão? – respondi –, melhor protegermos elas havendo ataque.
Depois eu disse ao missionário que não tínhamos nada haver com as decisões delas. Mas eu disse que primeiro elas tinham deliberado sozinhas que se concentrariam na frente da prefeitura. Ainda aguardavam uma palavra que as impedisse. Só assumiriam uma nova postura se nada mais acontecesse naquele dia. Ele estava convicto de que nada realmente aconteceria, por isso não olhou-me diretamente e em silêncio escavou o chão com a ponta da botina. Quando voltou a nos encarar não foi para pedir que se interpuséssemos entre elas e o ato que pretendiam, mas que atuássemos pela segurança de algumas.
Não dissemos mais nada e ele entrou no quarto para fazer suas laudes. Ouvimos seus passos do lado de dentro e ouvimos também quando ele arrastou uma cadeira para a mesinha que ele usava para escrever cartas. Ainda acreditava que o atenderiam e removeriam a força da praça. Olhamo-nos e eu disse-lhes que ficássemos acompanhando da escadaria da matriz, seríamos testemunhas se a violência fosse extrema.
Você se lembra daquela manhã. As mulheres não tinham dormido com os filhos gritando nos braços. Havia um bando de aves pretas sobre o acampamento. Balduíno apareceu e pediu ordem, havia o direito à propriedade. Se quisessem seria intermediário. No fundo nós sabíamos que ele não intermediava nada e ele sabia que nós compreendíamos suas limitações perante a autoridade municipal. – Ainda que o bispo. - Mas nem o bispo! – Gritaram.
___ Minhas filhas – Disse Balduíno.
O pior, disse ela, eram as mulheres com as crianças famélicas. Quanta carga pesava sobre elas. O alimento faltava para muitas bocas e lhes cabia à repartição desse pão escasso. Quando os bebês morriam elas bendiziam, bendiziam a boca que não precisava mais tomar alimento. E eram horrendas estas mães. Deus as escolhera para sangrar, tomar-lhes os filhos em holocausto, flagelar-lhes as almas, entregar seus corpos ao repasto dos chacais. As crianças morriam muito. Deus vinha e as fulminava, morriam muito mesmo.
Eu fui ver como estava acontecendo com uma mãe e uma criança. O filho dessa mãe. Foi bem breve ele, nasceu e morreu sem viver. Começou chegando para pedir ajuda – e conseguiu – ela perguntou – não tinha ajuda nenhuma, o filho lá dela estava perdido. Perdido queria dizer que ela voltasse pra casa e esperasse pra ele morrer. – Doutor? – Hoje não atende mais, acho até que já saiu. – Volte pra casa, você é mãe, seu leite vai – Leite? – Ela não tem o que comer. – Só o leite da mãe. – Enfim morreu, tinha que morrer e então morreu.
___ Melhor assim, Deus escolheu mais esse. – Disse a mãe.
___ Deus escolhe muito seus filhos – eu perguntei.
___ Só os que morrem de fome – falou a mãe.
Quando o puseram no caixãozinho e o rodearam de flores eu não sabia dizer se era um anjinho como a mãe queria. Mas não quis dizer assim pra ela e isto a consolou. Ainda olhei fixamente um tempo para o cadaverzinho de olhos abertos no ataudezinho tosco. Olhinhos abertos para não errar no escuro. Então eu pensei que como jogariam terra sobre aqueles olhinhos abertos a terra os consumiria primeiro. Tinha um nome, mas não viveu para atender pelo nome. Era um homem, mas jamais alcançaria virilidade. Avara, a terra o tomava para si, como também tinha tomado para si a água do rio. Vulgívaga, a terra se abria ao deserto.
Alguns começaram a deixar o lugar. Conseguiram passagem para a capital do estado. Quando os caminhões começaram a rodar na estrada eu pensei que as autoridades estavam evacuando um lugar sob a ameaça de um ataque. Nas beiradas da rodovia nós víamos os animais mortos e acreditávamos que eles tinham matado seus muares e bois para poder migrar nos caminhões. Nós voltávamos para a estalagem e pensávamos quando o Deus acordaria.
Nenhum comentário:
Postar um comentário