sábado, 22 de janeiro de 2022

CRÔNICA- UM SONHO

 Um sonho

         Ele caminhou até a cama sem, contudo deitar-se logo no leito. Antes de se deitar demorou o olhar num canto do quarto e só então ele pensou que era bom estar sozinho. Havia uma cadeira vazia. Logo pensou também que se não chegara a ser completo durante todo aquele dia, entretanto não fora absolutamente um ser opaco e errático. Pássaro de voo curto. Mas ainda assim precisaria agarrar-se com mais força as pedras e partes fixas da paisagem para não deixar-se arrastar. Ele compunha-se basicamente de uma alma devotada a rendição, mas nem vencido se deixaria caído, sucumbiria, mas com certo esforço.

Um sonho

    Naquele dia se impressionara consigo, pois sempre se impusera a necessidade de ser brevemente feliz, não dessa felicidade sumarenta e totalitária, mas dessa felicidade que se sorve com a sede que se traz da travessia dum deserto. Os desertos tinham sido suas lavouras mais constantes e assim acostumara-se a ser feliz aos tragos, nunca jamais num jorro contínuo e fluido.

         No outro dia ele repetir-se-ia como um homem descontínuo que existia comprometendo-se para permanecer emerso. Entraria na sala e pararia expectante diante dos olhares deles, por um instante eles se abstrairiam perante sua chegada. Ele ouviria suas vozes suspendendo-se esperando que ele assumisse a palavra e se fizesse o senhor do ambiente. Indeciso ele pensaria num modo de falar e ser imediatamente atendido. Depois eles voltariam a si sem compreenderem como um homem se oferecia assim à sua aprendizagem.

         E então ele pensaria vagamente, longinquamente – sou um mestre, vim aqui trazer-vos o tesouro da juventude. – Depois, nada disto teria importância e eles e o mestre tacitamente pactuar-se-iam no altar da mediocridade. Era assim e como tinha que ser assim era bom que as coisas se acomodassem logo à sua substância. Caso pudessem... Mas não podiam nada disto e o melhor era mesmo impor-se um voo de galinha.

         Deitou-se e se disse – ah como estou cansado – pensou. – Depois puxou o lençol para si, mas não teve tempo de pensar: – ‘agora preciso dormir’ – teve a súbita sensação de que fizera-se um nadador bracejando em meio as ondas. Em verdade permanecera emerso? De repente sentiu-se não levado pela corrente, mas arrastado sem que ele pudesse agarrar-se as raízes da margem.

         Cruzou as mãos sobre o peito. Arfava. Cansava-se inutilmente. Esta luta era dessas que ele absolutamente já perdera. Mas por que ainda insistia em permanecer atento quando o mais fácil era fechar os olhos e deixar-se. Enquanto isto não acontecia vinham outros pensamentos e ele imaginava que compreendia. Afinal ele era um homem que não queria conduzir-se, ele era o homem que queria que o conduzissem.

         Descruzou as mãos e espalmou-as diante de si. Sob seu corpo sentiu o colchão. Superfície lisa e macia como deve ser um leito de Procusto. Então era mesmo isto. Encontrava outra vez esta verdade áspera e fria. Se o pudessem conduzir teria como defender-se afirmando sempre que caísse – mas afinal que queriam dele? – Caíra, mas é que o tinham conduzido até a queda.

         Mas assim como vivia, sempre teria medo, pois atravessava um deserto tentando refrigerar a sede e caindo, tropeçando e si mesmo quando afinal pensava que se havia encontrado. Um fruto? Um pássaro? Uma estrada amarela? Fatalmente curvar-se-ia sobre aquela água e com a sede que trazia a beberia aos tragos, tragos densamente vorazes que logo estaria saciado dela, quando pensasse – está tudo bem agora – seguiria com sede até a próxima fonte onde tudo se repetiria com a mesma ânsia e a mesma dor.

         Afinal que era ele senão um semeador que lançava as sementes na pedra, que lançava as sementes na margem do caminho, que esperava que as sementes goradas crescessem em plantas e flores e frutos?

         Vencido. Nunca vencedor. Pois jamais se oferecera para a luta. Fora sempre alguém a quem se impõe a vida. Mesmo que voltasse a sua infância, a sua memória o veria como um menino que sempre se deixava. Rolou na cama. Afastou o lençol de si. Por que ainda insistia-se naquele dia? Lembrou-se que não sabia a hora. Mas isto importava tão pouco. Quando finalmente dormisse as horas se escoariam brutalmente até que viria o outro dia com ele dentro de uma vasta manhã clara ou chuvosa, mas ainda assim um deserto onde ele existiria sem raízes e caminhando e pensando – eu me conduzo.

         Acomodou-se sobre seu lado direito. Puxou o lençol para si. Ouviu. Provavelmente ele ainda não dormira, mas os outros que também estavam cansados e não se ocupavam de si já tinham dormido o seu soninho justo. Como atravessaria aquela ponte? Não se lembrava absolutamente dela. Para chegar a casa não havia nenhuma ponte. Mas como estava diante de uma ponte e precisava chegar até a casa, atravessou-a. Limitou-se a seguir, pois não precisava compreender para caminhar. Caminhava sob o sol. Era quando? Importava isto? E quando soube de tudo tão subitamente estacou. Era mesmo a casa. Finalmente o haviam reconduzido para lá. Eu posso entrar? Ainda mais subitamente uma cadeira vazia. Contornou a casa. Nas gretas das paredes cresciam ovos brancos de enormes répteis brilhantes. De repente a mãe. A mãe era um ser imemorial parado ao lado da pedra. Iluminou-se. Caminhou para lá. A mãe vagamente olhando o poente. Por trás dos morros o sol a abandonara. Mas não era a mãe? Efetivamente era ela, uma mãe. Caminhou para lá. Nunca mesmo que chegasse. Estacou no umbral da porta. Aquela travessia jamais. Não se decidiu nunca e não entrou na casa. Contornou a casa por trás. Sentiu que uma presença crescia nas proximidades da casa. Num esforço quis compreender a essência daquela indubitável coisa, daquela crepitante presença. A mãe estava parada e ele caminhou para a mãe. Nem assim nunca chegou. A mãe sentada ao lado da pedra. Na paisagem havia uma cadeira vazia. Então outra vez veio-lhe a sensação da iminência duma presença. A casa compacta e ereta e ele parado diante da casa. A porta aberta. Lá dentro o acolhimento completo. A mãe saiu de dentro da casa. Passos no terreiro. Pés pesados em volta da casa. Contornou a casa por trás. O Grande masturbador.


 

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