terça-feira, 25 de janeiro de 2022

CONTO - A PEDRA DA SODOMIA

 A pedra da sodomia

         Quando Tito passou por baixo do pé de araçá levou uma chuvada, pois Jorge abalara a copa da árvore vertendo a água acumulada nas folhas sobre ele. Fitou o amigo com lástima, mas depois fingiu que não se importava nada com aquilo que ele tinha feito. Jorge sorria-lhe, cáustico, adivinhando-lhe a fúria mal contida diante daquela pulha imprevista. Mas Tito prevendo-o e deu-lhe as costas enquanto fingia prestar atenção num buraco de tocandira.

A PEDRA DA SODOMIA

         

    Jorge encostou-se ao tronco da árvore raspando-o com o canivetinho, Tito ouvia a respiração dele atrás de si. Não, nunca o deixaria saber de nada. Abaixou-se para ver de perto onde o inseto tinha se escondido defendendo-se de suas pesunhas. Jorge aproximou-se para ver o que era.

         ___ Se te pega, pior que lacraia. – Falou Jorge.

         ___ Lacraia dói mais. – Disse Tito.

         ___ Dói nada. Mas você não teria coragem. – Falou Jorge.

         ___ Mas medo eu não tenho – disse Tito. – Não tenho mesmo.

         ___ Só quero ver se – disse Jorge – olha quando chove os lacraus ficam aí em baixo das folhas, se a gente encontrar um você põe na mão? Só é homem se.

         ___ Eu sou um homem. – Disse Tito.

         ___ Vamos ver. – Falou Jorge.

         Jorge caminhou para a beira da mata e pôs-se a vasculhar a folhagem molhada com os pés, com um pau, com um ramo de bamburral. Tito circunvagou o olhar em volta. Agora impossível voltar ao que nunca deveria ter dito. – Mas Jorginho... – Pensou. – Não disse nada, sôfrego, seu coraçãozinho apertou-se numa expectativa torpe quando viu Jorge abaixar-se e apanhar uma coisa.

         ___ Não é nada, é apenas isto que eu achei – disse Jorge caminhando para ele – um seixo limpinho, você quer?

         Ele queria. Estendeu a mão para o amigo aceitando a oferta. Era uma pedrinha lisa e oval que Jorge tinha achado e lhe dava. Era mesmo que ver um ovinho. Rolou-a entre os dedos e depois guardou-a no bolso do calção.

         ___ Tito, você escuta – perguntou Jorge.

         ___ É o vento lá na oiticica – disse Tito.

         ___ Não seu tonto. – Disse Jorge entrando numa vereda. – Venha ver Tito, o riacho já tem água.

         Tito seguiu-o. Lá em baixo, no fim da vereda, o Córrego Seco. Quando ele chegou à margem do riacho uma água clarinha e fria escorria no leito do regato. Parou e contemplou o córrego renascido. A chuva quem o trouxera. Panelas de água fresquinha se formavam nas bibocas das pedras.

         Onde Jorge? Mas não via Jorge. Tito caminhou descendo pela margem do regato. Uma angústia lânguida e morna o tomava, onde Jorginho? Chamá-lo seria confessar tudo. Sentou-se num pedregulho na beirada duma cova grande onde o córrego se precipitava em cascatinha.

         Esperou Jorge ali.

         Respirava o ar molhado que se evolava da terra úmida, que se desprendia da folhagem verde e alegre da mata. Bruscas rajadas de vento passeavam na copa das árvores.

         Ali era uma clareira.

         O sol às vezes saía e voltava de entre as nuvens, batia sobre a superfície da água, o vento encrespava mais a mata. Cheiro de água fria e sensação de terra molhada. Tito ficou quieto. De repente sentiu a doce solidez da rocha nua sob ele. Estirou as pernas sobre a pedreira enquanto observava as réstias de sol passando na sua pele pardacenta e dourando a penugem trigueira. Do outro lado do riacho entre as árvores, entre as folhagens do ingá viu um tiê.

         ‘Seria bom ter um tiê na gaiola’ – se disse – mas só ele ouviu o que se disse por que Tito tinha falado isto só para si.

         Então Jorge começou a aparecer subindo pela margem do regato, vinha pulando nas pedras, sobraçando uma catemba. Então talvez Jorginho tenha mesmo encontrado, e agora ele – pensou Tito.

         ___ Sabe Jorginho, o que eu vi agorinha – Tito perguntou, acenando-lhe da rocha. – Pois foi um tiê, vi agorinha o pretume dele naquele galho ali.

         Jorge saltava pela margem enquanto equilibrava-se nas pedras. Quando chegou ao pedregulho o sol apareceu, iluminou-o. Jorge irradiava-se diante dele.

         Tito esquivou-se do amigo, ia dizer que.

         ___ Achei estas frutas. – Falou Jorge – aposto que você está faminto.

         ___ Aposto que estou sim. – Disse Tito.

         ___ São todas do mato. – Falou Jorge.

         ___ Quando chove acontece tanta coisa.

         ___ Já comeu dessas?

         ___ Você é esperto Jorginho.

         ___ Se sou. – Confessou Jorge.

         Comiam sentados na pedra na beirada da cova.

         ___ Você já viu uma nêspera Jorginho?

         ___ Se parece com o quê?

         ___ Como vou saber, eu nunca vi uma.

         ___ Nem eu – disse Jorge.

         Jorge mordia as frutas e jogava as cascas dentro do riacho. Logo Tito prestou atenção no que acontecia quando as cascas caíam na água e descobriu que uns filhotes de lambari vinham comer as cascas na superfície da água.

         ___ De onde eles vieram – perguntou Tito.

         ___ O quê?

         ___ Esses peixinhos. – disse Tito.

         ___ Mas se eu tenho certeza de que não são peixes – disse Jorge.

         ___ Só podem ser, olha lá Jorginho. – Falou Tito.

         ___ São girinos. – Disse Jorge.

         ___ Aposto que não. – disse Tito.

         ___ Mais fácil ser sapo, eles nascem muito quando chove.

         ___ Não crescem primeiro dentro dum ovo?

         ___ Você é bem lesado Tito, já viu ninho de sapo?

         ___ Nunca vi ninho de cobra, mas cobra bota ovo.

         ___ Lagartixa também. – Disse Jorge.

         ___ Tem ninho de lagartixa?

         ___ Nem de sapo – disse Jorge – Sapo nasce dentro da água.

         ___ Então não tem mesmo ninho de sapo – disse Tito. – E se gente botasse ovo?

         ___ Só as mulheres como as galinhas, né?

         ___ Não é o galo quem faz o ovo lá na galinha – perguntou Tito.

         ___ Mas a galinha é quem se esforça mais – disse Jorge.

         ___ E o homem quem põe os bebês lá na mulher?

         ___ Com um ferro – Falou Jorge.

         ___ Abraça. Beija elas e os bebês passam pra dentro delas.

         ___ Bem bestalhão você, hein?

         ___ E não é?

         ___ Nunca que é assim. Põe lá nelas. Passa o ferro. Enfia tudinho. Assim é que fazem os bebês.

         ___ Você já viu isso?

         ___ Já vi, sim. – Disse Jorge.

         Tito fixou o olhar na outra margem do riacho. Duas libélulas apegadas pousadas num ramo de capim. Então era assim que começava tudo...

         ___ Você viu – falou Tito – mas você viu como, Jorginho?

         ___ Vi Lucinha lá com Rubem.

         ___ Ah! Lucinha!...

         ___ Lembra que papai quase ficou maluco?

         ___ Lembro – disse Tito.

         ___ Pois foi isso. Lucinha descia pra cacimba, entrava no bananal e Rubem seguia ela. Vi isto porque eles faziam todo dia. Eu fui atrás deles e vi tudo como acontecia. Ela toda nuinha atrás do tanque. Então Rubem vinha com o palhaço lá dele e furava ela todinha.

         ___ Seu Zuza soube né?

         ___ Tinha que saber, porque o bebê começou a crescer no bucho.

         ___ Então foi assim que tua irmã.

         ___ Rubem se fartou. Papai ficou maluco. Lucinha nunca mais filha dele. Todo mundo sabe agora que ela dava pra ele.

         ___ Incrível. – Disse Tito.

         Jorge ergueu-se, o suor escorrendo na cara mulata. Em volta deles flutuava um odor escuro de umidade e flor de sabugueiro.

         ___ Olha pra mim Tito.

         O sol esbatia-se sobre a rocha e ele vislumbrou Jorge escuro e luminoso na sua frente. Sorriu-lhe, mas ainda não compreendendo tudo.

         ___ Olha, eu agora também estou duraço. – Disse Jorge.

         ___ ...

         ___ Tive uma ideia Tito – falou Jorge sorrindo-lhe – vamos fazer um bebê também?

         ___ Não, que doidice Jorginho – disse Tito.

         ___ Com a gente não vai ter problema, só os bebês das mulheres é que nascem.

         Vagamente Tito se lembrou o que lhe dissera o pai – sempre com esses filhos do Zuza – nem Bita, nem Jorge, com quem anda, cuidado Tito. – Fitou Jorge que se pusera de pé, rijo, macho diante dele, pemba preparada, todo armado.

         As palavras esvaíram-se. Não tinham razão. Jorginho, Bita, também o Berto e ele. Amigos todos.

         Mas devia aquilo?

         ___ Titinho, vem logo. – Chamou Jorge – primeiro eu faço em você e depois você faz em mim.

          

 


 

 

 

 

Corpo negro


sábado, 22 de janeiro de 2022

CRÔNICA- UM SONHO

 Um sonho

         Ele caminhou até a cama sem, contudo deitar-se logo no leito. Antes de se deitar demorou o olhar num canto do quarto e só então ele pensou que era bom estar sozinho. Havia uma cadeira vazia. Logo pensou também que se não chegara a ser completo durante todo aquele dia, entretanto não fora absolutamente um ser opaco e errático. Pássaro de voo curto. Mas ainda assim precisaria agarrar-se com mais força as pedras e partes fixas da paisagem para não deixar-se arrastar. Ele compunha-se basicamente de uma alma devotada a rendição, mas nem vencido se deixaria caído, sucumbiria, mas com certo esforço.

Um sonho

    Naquele dia se impressionara consigo, pois sempre se impusera a necessidade de ser brevemente feliz, não dessa felicidade sumarenta e totalitária, mas dessa felicidade que se sorve com a sede que se traz da travessia dum deserto. Os desertos tinham sido suas lavouras mais constantes e assim acostumara-se a ser feliz aos tragos, nunca jamais num jorro contínuo e fluido.

         No outro dia ele repetir-se-ia como um homem descontínuo que existia comprometendo-se para permanecer emerso. Entraria na sala e pararia expectante diante dos olhares deles, por um instante eles se abstrairiam perante sua chegada. Ele ouviria suas vozes suspendendo-se esperando que ele assumisse a palavra e se fizesse o senhor do ambiente. Indeciso ele pensaria num modo de falar e ser imediatamente atendido. Depois eles voltariam a si sem compreenderem como um homem se oferecia assim à sua aprendizagem.

         E então ele pensaria vagamente, longinquamente – sou um mestre, vim aqui trazer-vos o tesouro da juventude. – Depois, nada disto teria importância e eles e o mestre tacitamente pactuar-se-iam no altar da mediocridade. Era assim e como tinha que ser assim era bom que as coisas se acomodassem logo à sua substância. Caso pudessem... Mas não podiam nada disto e o melhor era mesmo impor-se um voo de galinha.

         Deitou-se e se disse – ah como estou cansado – pensou. – Depois puxou o lençol para si, mas não teve tempo de pensar: – ‘agora preciso dormir’ – teve a súbita sensação de que fizera-se um nadador bracejando em meio as ondas. Em verdade permanecera emerso? De repente sentiu-se não levado pela corrente, mas arrastado sem que ele pudesse agarrar-se as raízes da margem.

         Cruzou as mãos sobre o peito. Arfava. Cansava-se inutilmente. Esta luta era dessas que ele absolutamente já perdera. Mas por que ainda insistia em permanecer atento quando o mais fácil era fechar os olhos e deixar-se. Enquanto isto não acontecia vinham outros pensamentos e ele imaginava que compreendia. Afinal ele era um homem que não queria conduzir-se, ele era o homem que queria que o conduzissem.

         Descruzou as mãos e espalmou-as diante de si. Sob seu corpo sentiu o colchão. Superfície lisa e macia como deve ser um leito de Procusto. Então era mesmo isto. Encontrava outra vez esta verdade áspera e fria. Se o pudessem conduzir teria como defender-se afirmando sempre que caísse – mas afinal que queriam dele? – Caíra, mas é que o tinham conduzido até a queda.

         Mas assim como vivia, sempre teria medo, pois atravessava um deserto tentando refrigerar a sede e caindo, tropeçando e si mesmo quando afinal pensava que se havia encontrado. Um fruto? Um pássaro? Uma estrada amarela? Fatalmente curvar-se-ia sobre aquela água e com a sede que trazia a beberia aos tragos, tragos densamente vorazes que logo estaria saciado dela, quando pensasse – está tudo bem agora – seguiria com sede até a próxima fonte onde tudo se repetiria com a mesma ânsia e a mesma dor.

         Afinal que era ele senão um semeador que lançava as sementes na pedra, que lançava as sementes na margem do caminho, que esperava que as sementes goradas crescessem em plantas e flores e frutos?

         Vencido. Nunca vencedor. Pois jamais se oferecera para a luta. Fora sempre alguém a quem se impõe a vida. Mesmo que voltasse a sua infância, a sua memória o veria como um menino que sempre se deixava. Rolou na cama. Afastou o lençol de si. Por que ainda insistia-se naquele dia? Lembrou-se que não sabia a hora. Mas isto importava tão pouco. Quando finalmente dormisse as horas se escoariam brutalmente até que viria o outro dia com ele dentro de uma vasta manhã clara ou chuvosa, mas ainda assim um deserto onde ele existiria sem raízes e caminhando e pensando – eu me conduzo.

         Acomodou-se sobre seu lado direito. Puxou o lençol para si. Ouviu. Provavelmente ele ainda não dormira, mas os outros que também estavam cansados e não se ocupavam de si já tinham dormido o seu soninho justo. Como atravessaria aquela ponte? Não se lembrava absolutamente dela. Para chegar a casa não havia nenhuma ponte. Mas como estava diante de uma ponte e precisava chegar até a casa, atravessou-a. Limitou-se a seguir, pois não precisava compreender para caminhar. Caminhava sob o sol. Era quando? Importava isto? E quando soube de tudo tão subitamente estacou. Era mesmo a casa. Finalmente o haviam reconduzido para lá. Eu posso entrar? Ainda mais subitamente uma cadeira vazia. Contornou a casa. Nas gretas das paredes cresciam ovos brancos de enormes répteis brilhantes. De repente a mãe. A mãe era um ser imemorial parado ao lado da pedra. Iluminou-se. Caminhou para lá. A mãe vagamente olhando o poente. Por trás dos morros o sol a abandonara. Mas não era a mãe? Efetivamente era ela, uma mãe. Caminhou para lá. Nunca mesmo que chegasse. Estacou no umbral da porta. Aquela travessia jamais. Não se decidiu nunca e não entrou na casa. Contornou a casa por trás. Sentiu que uma presença crescia nas proximidades da casa. Num esforço quis compreender a essência daquela indubitável coisa, daquela crepitante presença. A mãe estava parada e ele caminhou para a mãe. Nem assim nunca chegou. A mãe sentada ao lado da pedra. Na paisagem havia uma cadeira vazia. Então outra vez veio-lhe a sensação da iminência duma presença. A casa compacta e ereta e ele parado diante da casa. A porta aberta. Lá dentro o acolhimento completo. A mãe saiu de dentro da casa. Passos no terreiro. Pés pesados em volta da casa. Contornou a casa por trás. O Grande masturbador.


 

segunda-feira, 17 de janeiro de 2022

CRÔNICA - OS NUS

 Os nus

Os nus
          As crianças tinham gritado a noite toda e nenhuma mãe havia dormido, ela disse. Nós sabíamos por que as crianças gritavam, mas a meia-noite, tomamos o jipe e voltamos para a base. Enquanto nos preparávamos para dormir veio um homem e caminhou pelo pátio da estalagem. Não prestamos muita atenção ao seu aspecto, mas sabíamos pela aparência que era um oficial da força pública. Pediu informações sobre o missionário e lhe indicamos aonde poderia achar o frei e ele caminhou para o quarto que lhes mostramos. Depois disso o esquecemos, até que meia hora depois, ouvimos vozes na entrada da estalagem. Escutamos para compreender do que se tratava e disseram que se não houvesse diálogo a CEB seria responsabilizada. Não soubemos nunca qual foi a resposta, o vento levara-a. Procuramos descansar um pouco antes que fosse madrugada. Não sei quanto tempo dormimos, mas quando fomos despertados ainda estávamos com sono. Então eu disse que já sabia o que as mulheres estavam pensando. 
    Chamaram-me e disseram:

         ___ Não procurou demovê-las, é uma temeridade isto.

         ___ A fome escuta a razão? – respondi –, melhor protegermos elas havendo ataque.

         Depois eu disse ao missionário que não tínhamos nada haver com as decisões delas. Mas eu disse que primeiro elas tinham deliberado sozinhas que se concentrariam na frente da prefeitura. Ainda aguardavam uma palavra que as impedisse. Só assumiriam uma nova postura se nada mais acontecesse naquele dia. Ele estava convicto de que nada realmente aconteceria, por isso não olhou-me diretamente e em silêncio escavou o chão com a ponta da botina. Quando voltou a nos encarar não foi para pedir que se interpuséssemos entre elas e o ato que pretendiam, mas que atuássemos pela segurança de algumas.

         Não dissemos mais nada e ele entrou no quarto para fazer suas laudes. Ouvimos seus passos do lado de dentro e ouvimos também quando ele arrastou uma cadeira para a mesinha que ele usava para escrever cartas. Ainda acreditava que o atenderiam e removeriam a força da praça. Olhamo-nos e eu disse-lhes que ficássemos acompanhando da escadaria da matriz, seríamos testemunhas se a violência fosse extrema.

         Você se lembra daquela manhã. As mulheres não tinham dormido com os filhos gritando nos braços. Havia um bando de aves pretas sobre o acampamento. Balduíno apareceu e pediu ordem, havia o direito à propriedade. Se quisessem seria intermediário. No fundo nós sabíamos que ele não intermediava nada e ele sabia que nós compreendíamos suas limitações perante a autoridade municipal. – Ainda que o bispo. - Mas nem o bispo! – Gritaram.

         ___ Minhas filhas – Disse Balduíno.

         O pior, disse ela, eram as mulheres com as crianças famélicas. Quanta carga pesava sobre elas. O alimento faltava para muitas bocas e lhes cabia à repartição desse pão escasso. Quando os bebês morriam elas bendiziam, bendiziam a boca que não precisava mais tomar alimento. E eram horrendas estas mães. Deus as escolhera para sangrar, tomar-lhes os filhos em holocausto, flagelar-lhes as almas, entregar seus corpos ao repasto dos chacais. As crianças morriam muito. Deus vinha e as fulminava, morriam muito mesmo.

         Eu fui ver como estava acontecendo com uma mãe e uma criança. O filho dessa mãe. Foi bem breve ele, nasceu e morreu sem viver. Começou chegando para pedir ajuda – e conseguiu – ela perguntou – não tinha ajuda nenhuma, o filho lá dela estava perdido. Perdido queria dizer que ela voltasse pra casa e esperasse pra ele morrer. – Doutor? – Hoje não atende mais, acho até que já saiu. – Volte pra casa, você é mãe, seu leite vai – Leite? – Ela não tem o que comer. – Só o leite da mãe. – Enfim morreu, tinha que morrer e então morreu.

         ___ Melhor assim, Deus escolheu mais esse. – Disse a mãe.

         ___ Deus escolhe muito seus filhos – eu perguntei.

         ___ Só os que morrem de fome – falou a mãe.

         Quando o puseram no caixãozinho e o rodearam de flores eu não sabia dizer se era um anjinho como a mãe queria. Mas não quis dizer assim pra ela e isto a consolou. Ainda olhei fixamente um tempo para o cadaverzinho de olhos abertos no ataudezinho tosco. Olhinhos abertos para não errar no escuro. Então eu pensei que como jogariam terra sobre aqueles olhinhos abertos a terra os consumiria primeiro. Tinha um nome, mas não viveu para atender pelo nome. Era um homem, mas jamais alcançaria virilidade. Avara, a terra o tomava para si, como também tinha tomado para si a água do rio. Vulgívaga, a terra se abria ao deserto.

         Alguns começaram a deixar o lugar. Conseguiram passagem para a capital do estado. Quando os caminhões começaram a rodar na estrada eu pensei que as autoridades estavam evacuando um lugar sob a ameaça de um ataque. Nas beiradas da rodovia nós víamos os animais mortos e acreditávamos que eles tinham matado seus muares e bois para poder migrar nos caminhões. Nós voltávamos para a estalagem e pensávamos quando o Deus acordaria.