A pedra da sodomia
Quando Tito passou por baixo do pé de araçá levou uma chuvada, pois Jorge abalara a copa da árvore vertendo a água acumulada nas folhas sobre ele. Fitou o amigo com lástima, mas depois fingiu que não se importava nada com aquilo que ele tinha feito. Jorge sorria-lhe, cáustico, adivinhando-lhe a fúria mal contida diante daquela pulha imprevista. Mas Tito prevendo-o e deu-lhe as costas enquanto fingia prestar atenção num buraco de tocandira.
A PEDRA DA SODOMIA |
Jorge encostou-se ao tronco da árvore raspando-o com o canivetinho, Tito ouvia a respiração dele atrás de si. Não, nunca o deixaria saber de nada. Abaixou-se para ver de perto onde o inseto tinha se escondido defendendo-se de suas pesunhas. Jorge aproximou-se para ver o que era.
___ Se te pega, pior que lacraia. – Falou Jorge.
___ Lacraia dói mais. – Disse Tito.
___ Dói nada. Mas você não teria coragem. – Falou Jorge.
___ Mas medo eu não tenho – disse Tito. – Não tenho mesmo.
___ Só quero ver se – disse Jorge – olha quando chove os lacraus ficam aí em baixo das folhas, se a gente encontrar um você põe na mão? Só é homem se.
___ Eu sou um homem. – Disse Tito.
___ Vamos ver. – Falou Jorge.
Jorge caminhou para a beira da mata e pôs-se a vasculhar a folhagem molhada com os pés, com um pau, com um ramo de bamburral. Tito circunvagou o olhar em volta. Agora impossível voltar ao que nunca deveria ter dito. – Mas Jorginho... – Pensou. – Não disse nada, sôfrego, seu coraçãozinho apertou-se numa expectativa torpe quando viu Jorge abaixar-se e apanhar uma coisa.
___ Não é nada, é apenas isto que eu achei – disse Jorge caminhando para ele – um seixo limpinho, você quer?
Ele queria. Estendeu a mão para o amigo aceitando a oferta. Era uma pedrinha lisa e oval que Jorge tinha achado e lhe dava. Era mesmo que ver um ovinho. Rolou-a entre os dedos e depois guardou-a no bolso do calção.
___ Tito, você escuta – perguntou Jorge.
___ É o vento lá na oiticica – disse Tito.
___ Não seu tonto. – Disse Jorge entrando numa vereda. – Venha ver Tito, o riacho já tem água.
Tito seguiu-o. Lá em baixo, no fim da vereda, o Córrego Seco. Quando ele chegou à margem do riacho uma água clarinha e fria escorria no leito do regato. Parou e contemplou o córrego renascido. A chuva quem o trouxera. Panelas de água fresquinha se formavam nas bibocas das pedras.
Onde Jorge? Mas não via Jorge. Tito caminhou descendo pela margem do regato. Uma angústia lânguida e morna o tomava, onde Jorginho? Chamá-lo seria confessar tudo. Sentou-se num pedregulho na beirada duma cova grande onde o córrego se precipitava em cascatinha.
Esperou Jorge ali.
Respirava o ar molhado que se evolava da terra úmida, que se desprendia da folhagem verde e alegre da mata. Bruscas rajadas de vento passeavam na copa das árvores.
Ali era uma clareira.
O sol às vezes saía e voltava de entre as nuvens, batia sobre a superfície da água, o vento encrespava mais a mata. Cheiro de água fria e sensação de terra molhada. Tito ficou quieto. De repente sentiu a doce solidez da rocha nua sob ele. Estirou as pernas sobre a pedreira enquanto observava as réstias de sol passando na sua pele pardacenta e dourando a penugem trigueira. Do outro lado do riacho entre as árvores, entre as folhagens do ingá viu um tiê.
‘Seria bom ter um tiê na gaiola’ – se disse – mas só ele ouviu o que se disse por que Tito tinha falado isto só para si.
Então Jorge começou a aparecer subindo pela margem do regato, vinha pulando nas pedras, sobraçando uma catemba. Então talvez Jorginho tenha mesmo encontrado, e agora ele – pensou Tito.
___ Sabe Jorginho, o que eu vi agorinha – Tito perguntou, acenando-lhe da rocha. – Pois foi um tiê, vi agorinha o pretume dele naquele galho ali.
Jorge saltava pela margem enquanto equilibrava-se nas pedras. Quando chegou ao pedregulho o sol apareceu, iluminou-o. Jorge irradiava-se diante dele.
Tito esquivou-se do amigo, ia dizer que.
___ Achei estas frutas. – Falou Jorge – aposto que você está faminto.
___ Aposto que estou sim. – Disse Tito.
___ São todas do mato. – Falou Jorge.
___ Quando chove acontece tanta coisa.
___ Já comeu dessas?
___ Você é esperto Jorginho.
___ Se sou. – Confessou Jorge.
Comiam sentados na pedra na beirada da cova.
___ Você já viu uma nêspera Jorginho?
___ Se parece com o quê?
___ Como vou saber, eu nunca vi uma.
___ Nem eu – disse Jorge.
Jorge mordia as frutas e jogava as cascas dentro do riacho. Logo Tito prestou atenção no que acontecia quando as cascas caíam na água e descobriu que uns filhotes de lambari vinham comer as cascas na superfície da água.
___ De onde eles vieram – perguntou Tito.
___ O quê?
___ Esses peixinhos. – disse Tito.
___ Mas se eu tenho certeza de que não são peixes – disse Jorge.
___ Só podem ser, olha lá Jorginho. – Falou Tito.
___ São girinos. – Disse Jorge.
___ Aposto que não. – disse Tito.
___ Mais fácil ser sapo, eles nascem muito quando chove.
___ Não crescem primeiro dentro dum ovo?
___ Você é bem lesado Tito, já viu ninho de sapo?
___ Nunca vi ninho de cobra, mas cobra bota ovo.
___ Lagartixa também. – Disse Jorge.
___ Tem ninho de lagartixa?
___ Nem de sapo – disse Jorge – Sapo nasce dentro da água.
___ Então não tem mesmo ninho de sapo – disse Tito. – E se gente botasse ovo?
___ Só as mulheres como as galinhas, né?
___ Não é o galo quem faz o ovo lá na galinha – perguntou Tito.
___ Mas a galinha é quem se esforça mais – disse Jorge.
___ E o homem quem põe os bebês lá na mulher?
___ Com um ferro – Falou Jorge.
___ Abraça. Beija elas e os bebês passam pra dentro delas.
___ Bem bestalhão você, hein?
___ E não é?
___ Nunca que é assim. Põe lá nelas. Passa o ferro. Enfia tudinho. Assim é que fazem os bebês.
___ Você já viu isso?
___ Já vi, sim. – Disse Jorge.
Tito fixou o olhar na outra margem do riacho. Duas libélulas apegadas pousadas num ramo de capim. Então era assim que começava tudo...
___ Você viu – falou Tito – mas você viu como, Jorginho?
___ Vi Lucinha lá com Rubem.
___ Ah! Lucinha!...
___ Lembra que papai quase ficou maluco?
___ Lembro – disse Tito.
___ Pois foi isso. Lucinha descia pra cacimba, entrava no bananal e Rubem seguia ela. Vi isto porque eles faziam todo dia. Eu fui atrás deles e vi tudo como acontecia. Ela toda nuinha atrás do tanque. Então Rubem vinha com o palhaço lá dele e furava ela todinha.
___ Seu Zuza soube né?
___ Tinha que saber, porque o bebê começou a crescer no bucho.
___ Então foi assim que tua irmã.
___ Rubem se fartou. Papai ficou maluco. Lucinha nunca mais filha dele. Todo mundo sabe agora que ela dava pra ele.
___ Incrível. – Disse Tito.
Jorge ergueu-se, o suor escorrendo na cara mulata. Em volta deles flutuava um odor escuro de umidade e flor de sabugueiro.
___ Olha pra mim Tito.
O sol esbatia-se sobre a rocha e ele vislumbrou Jorge escuro e luminoso na sua frente. Sorriu-lhe, mas ainda não compreendendo tudo.
___ Olha, eu agora também estou duraço. – Disse Jorge.
___ ...
___ Tive uma ideia Tito – falou Jorge sorrindo-lhe – vamos fazer um bebê também?
___ Não, que doidice Jorginho – disse Tito.
___ Com a gente não vai ter problema, só os bebês das mulheres é que nascem.
Vagamente Tito se lembrou o que lhe dissera o pai – sempre com esses filhos do Zuza – nem Bita, nem Jorge, com quem anda, cuidado Tito. – Fitou Jorge que se pusera de pé, rijo, macho diante dele, pemba preparada, todo armado.
As palavras esvaíram-se. Não tinham razão. Jorginho, Bita, também o Berto e ele. Amigos todos.
Mas devia aquilo?
___ Titinho, vem logo. – Chamou Jorge – primeiro eu faço em você e depois você faz em mim.
Corpo negro |