Viagem na família I
Ouço no escuro, a tua, a intranquila voz que me fala? E é o teu retrato, meu pai – Meu limite é a minha liberdade. Não a tua, pois tu és já tão antigo, dissolvido, memória incandescida, sombra decantada. E eu sou um animal invertebrado e sem ossatura avolumando-se e crescendo dentro do quarto. Não vejo você, vejo o retrato, inumano e material. Ver um retrato é perder a esperança de encontrar o ser real que um dia habitou o instante fatal em que produziram o retrato. Eu penso você meu pai, mas eu penso principalmente o retrato, o retrato é o que eu vejo, táctil – arestas, vértices, plano. O instante da ideia cristalizado na vossa imagem de papel e cromos. Eu penso e os outros não ouvirão, mas quando a ideia corporifica-se nas palavras que eu falo ou escrevo eu me torno todo explicável, transparente, fora das gavetas e a chave entregue, eu sinto então que há perplexidade em volta, pois concebo-me nesse momento como um ser translúcido que afinal habita com os outros seres que nasceram de um pai e que conserva num álbum o retrato dum pai. Objetos presumíveis, nós. Eu, o teu retrato meu pai e tua memória crestando-se em mim. Objetos presumíveis, não-arquétipos, fomes transitórias, pedras transitivas.
Mas é aqui que me transfiguro. Não me transfiguro como a ave no voo, nem me transfiguro como o verme no fruto. Toda minha transfiguração vem do que reverbera entre minhas camadas de ser. Do dia fatal dos nossos instintos medindo-se, no deserto, a nossa revolta a, a minha revolta, o insustentável amor, a dividir-nos, e eu impondo-se trágico e feliz. Agora dissoluto e livre, eu nego tua história em mim, e conservo teu retrato num álbum, lembranças violentas, empurrando-me pelo tempo e pelos lugares. Voragem. Um retrato num álbum é um relógio contando o tempo parado. Pensa-se num ser que já de tão antigo sucumbe, mas não numa queda súbita e imprescindível, sucumbe em silêncio, num silêncio amarelecendo, ficando branco-cinza, sem ruído, a aparência de ser esvaindo-se numa pátina tão lenta e tão constante e tão longamente imperceptível. Nem tão subitamente compreendemos a velhice desses objetos recônditos, primeiro descobrimos que eles foram guardados felizes, mas já suportando o peso do próprio tempo, depois somos lançados nessa voracidade atroz – no retrato sopesa-se o nosso próprio tempo, o bolor loquaz e o limo invariável vêm transpassar-nos, miríficos e cruéis vêm comer nossos cabelos, nossa barba, nossa face, nossos braços, nosso torso, nosso ilusório momento antigamente fundido.
Esse corpo há tanto existido que tu habitaste num tempo meu pai era teu invólucro humano, tua carne virente. Quantos anos? Nem pensavas em mim ainda não existido, depois é que tu te desdobrarias em mim e nos outros seres desdobráveis que vivem agora também entre nós. Agora tu és o quê? Há muitas camadas de pó sobre os meus retratos, meus quadros, meus livros, sobre meus móveis. É você, meu pai? O que te tornaste depois que nos perdemos no escuro, meu pai? Tantas sombras se acumularam entre nós, tantos rancores, mágoas não perdoadas. Você dentro do labirinto, no único retrato vosso que me ficou no álbum de família meu pai. Você à sombra do Minotauro. Vejo-os, labirínticos seres, tu e o touro esfíngico. Atrás de ti a massa escura de força e carne, seres agudos, mas tu destemível, o homem se impondo à fera. O retrato é teu ou do touro meu pai? Nome do touro – me falaram, não o escrevo, fica sendo assim – Retrato do pai com touro.
Mas onde estás agora? Onde estamos agora? Nós, dois homens, tu, eu. Mãos que se estendam não te alcançam. A verdade é que eu quero estar mais próximo do chão, mais ao rés da superfície, eu quero pisar as pedras com meus pés, caminhar nos espinhos, errar, poder cair e sentir-me humano e ineficaz. Acreditar que estou pronto desde o dia que me tiraram do barro, que minha argila maleada com descuido pelo deus me habilita unicamente a ser errado e vermicular. Transfundir-me? Em quê? A pergunta é sempre sobre mim, inquieta-me ser esta forma inconstante e presumível que escorre sobre a superfície do mundo. De repente vejo-me num espelho e me revelo todo incompleto. Transmutação de sangues, remorsos exposto. Meu avô num retrato, paisagem patética, o avô que morreu louco. Os homens da família todos previstos. Não fundarão reinos, não escreverão leis, não imporão ideias, nem terão terra, nem gado, nem máquinas, serão braços dum senhor. Este meu avô, como o avô deste meu avô, já plantou cana, já foi mestre de engenho, coseu pedras, teve muitos filhos, deu eles para o deus, quem não morreu ficou com este avô, fiando cardos, minha mãe, fiandeira muito exímia, no retrato com o touro, tensa, entregue, casamento pobre, hostil. Meu avô louco, últimos tempos cataléptico, nem me via. Vida dele nem me lembro. Num retrato de meio século e mais, único despojo da data sutil. O avô a enlaça, ela, a avó, ele tranquilo, escuro, preto, crioulo. Casamento de pretos. Substrato do que serei.
Homens vencidos – eu, você meu pai, meu avô. Emparedados no vício, erguendo abismos entre nós, repisando remorsos, trevas, descaminhos. Nossos retratos, nossas bocas mudas, nossas mãos mortas, nossos afetos calados. Nosso desencontro e nossas vidas oblíquas. Eu que nego a vossa história em mim. Que me desacerto no caminho, que me choco com outras vidas, não conheço vossas vidas, há tantas vidas ocultas e a vossa meu pai, a vossa meu avô, foram vidas tão ralas, foram vozes tão mudas, não repercutem senão em mim. Vossos braços que amaram a terra, vossas mãos que transfundiram o pão, vossos pés que me abrandaram as pedras, repercutem nas minhas camadas de ser. Mas nego vossa vida em mim. Nossas avós antigas violadas, qual delas em nós? Nem retrato delas, nem retrato dos homens que secaram sobre a terra alheia, sobre o sol alheio, dos homens que foram braços alheios. Eu jungido a você meu pai, jungido a você, avô, mas a eternidade, ó a precária e crepitante eternidade impondo-se entre nós com a sua voracidade e rigidez atroz.
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