Medo à liberdade
Para Gustav Mahler
Ofegante. Começou a chover lá fora. Mas começou a chover lá fora quando havia sol ainda na tarde plúmbea. De repente o sol se desmanchou no ar e veio à chuva. Poderia ter gritado. Sou humano e meu grito vem de mim. Meu grito nasce de mim. Nasce do que sou. Mas o que sou – então o que é que sou agora? Começou a chover lá fora. Chego até a janela. Meu deus ainda era de tarde. Não é ainda noite, mas a tarde não voltará mais. Tenuíssima luz no batente da janela. Die Auferstehung. Não falo isso, penso nessa música. A ressurreição. Retiro-me da janela. E agora sento-me. Esta música poderia ser toda compreendida por mim. Escuto? Grito? Me liberto? Uma Poesia? Grito? Recomeça a chuva. Não é constante, nem insistente a chuva. Não vai chover sempre. Volto pra janela. Queria saber de uma coisa que me revelasse tudo de uma única vez, que me propusesse que a própria verdade insubstancial poderia ser contemplada na sua absoluta presença imaterial. O céu é cinza. Olho o ar. O ar é úmido e pleno. Temos ar em todas as partes. A chuva cai das biqueiras do telhado e eu estendo minha mão para a bica e apanho um pouco dessa chuva que na concha da mão. O que é que eu faço mesmo disto de mim que sou? Quer que eu me compreenda? Quer que eu me procure? Estas mãos. Este grito. Esta chuva. Esta música – Totenfeier: Allegro maestoso. Bem tranquilamente foi parando de chover. No ar somente o silêncio frígido de depois da chuva. Lá fora as folhas ficaram molhadas. Gotas redondas pesam nos halos e caem sob a folhagem e molham a terra. Lesmas caminham na grama e sobre as pedras. As lesmas sobem no caule dos caniços. Eu sei que sou como os caniços, não os pensantes, sou como os caniços-não-pensantes. Cresço sob os carvalhos, vergo-me e o vento passa. Estou à procura. Estou à procura. Estou à procura. No mundo não encontro. No mundo não está. Disseram – mas a vida pode até ser uma busca – Estar lá. Pode ser que esteja depois de Saturno ou girando nos anéis de Saturno, mas não pense muito nisso agora. Pense como a galinha. A galinha produz o ovo a partir de si. Percebeu? A galinha produz o ovo a partir de si. Ainda não percebeu? O ovo é a matéria da galinha mesmo. Pensemos isto primeiro. Ah! um ovo! Andante moderato. Compreendeu? A galinha guarda o ovo no corpo e o ovo vai se construindo dentro da galinha. Quando a galinha se agita, (intranquilo o ovo sai da galinha), o ovo cai no mundo e galinha o ver branco e vivo. Mas o ovo fica sem amparo no mundo porque a galinha o abandona onde o pôs. Agora ele poderá ser uma vida ou o alimento de outras vidas. Escureceu. A galinha não procura o ovo no mundo, mas o ovo nasce da galinha. Era isso mesmo que eu queria dizer, mas fui complicando as coisas.
Eu queria somente escrever isto. Já escrevi, mas depois não veio o silêncio que eu intuí que ficaria em mim quando eu me revelasse que primeiro eu sou para depois me representar. Sempre essa vontade de me propor o grito. Escureceu profundamente agora. In ruhig fliessender Bewegung. Quem abriu aquela porta? Pensei num homem que um dia existiu e caminhava no mundo beijando os bexiguentos, dando olhos pros cegos que queriam ver, amando seus algozes, aqueles que o coroavam de cardos. Este homem dizia que era o deus e ele acreditava nisso. Era um homem tão simples que nasceu de um carpinteiro e de uma camponesa suja. Aprendeu a erística e saiu a deblaterar com os pescadores. Depois morreu e então houve quem cresse nesse homem e pensasse – ele era um homem que falava com a verdade. Eu poderia crer neste homem que era o deus. A música está propondo um dogma? Acredito no dogma dessa música? Eu poderia crer neste homem que era o deus. Com esforço eu poderia sim. Há tantos que são tão iguais a mim e que acreditam neste homem que era o deus. Seria perfeitamente resignável pra mim. Minha muleta. Eu diria depois de crer neste homem que era o deus – Era cego e agora vejo. Era coxo e agora caminho. Era escafandrista e ainda sou. Antes desse de quem penso, tinha outro homem que disse – conheço o que sou. E ainda outro sob uma figueira ensinando – não está no mundo, está em você. Quem deles? Crer em todos os homens que ensinam coisas bem sábias e nas quais eu posso crer? Serei como a galinha que cria o ovo a partir de si? Depois disso tudo, o que farei com ovo? Agora olho o vazio que ficou depois ovo. Para onde agora? Barulhos na casa. A menina no banho. A mulher na limpeza. E o cão? Eu grito, espere, eu grito. Mas vem-me uma memória. Quem? Sou eu. Lá longe, numa estrada. Num tempo que foi um dia o da minha infância. Sempre tive a ânsia do grito. De não me conter. De me contar. Agora me conto. Mas me conto de um jeito cru, volátil. Compreender-me? Esta é uma representação de mim onde me escondo de mim mesmo. Revelar-se completo doí-me. Doí-me porque esconder-se é um meio de ficar ainda sendo eu, mas um eu que não se revela e que não se reconhece um animal livre. Ser livre é um grito incontido. É a música polifonando. Me conto assim, em polifonia. Me conto assim porque tenho essa ânsia de liberdade adiada. Fico no caminho. Fico no caminho a espreita. Se vier eu espero me chamar ou sigo-o sem chamado algum? Melhor que me chamem, pois não posso caminhar com quem não se disse – vem comigo, eu te esperava também. Não sou ave, não sigo no bando, nunca segui bando, caminho sempre sozinho. Ser animal livre é uma condição que recuso-me, mas é minha condição ser isto assim, animal que é livre.
Wird leuchten mir bis in das ewig selig Leben!
Ser provisório é o temor que há em mim, é o tremor que arde em mim. Pensar que tudo o que sou é uma forma da minha própria argila e que desse barro vim. Então para que barro eu volveria? Outros se alimentarão da minha argila? Não creio nisto. Nada há em mim que faça crer que outros encontrarão refúgio na minha teia. Outro animal livre que tece sua teia a partir de si – a aranha. Os outros são a galinha e seu ovo e a vaca e seu leite. E eu o que sou? Uma recusa. Sobretudo tenho medo dessa arte de tomar formão, cinzel e goiva e trabalhar uma forma de si. A partir da pedra? Terei assim, uma vida? Contemplar-me na pedra e dizer-me – estou vivo lá dentro, esculpa-se. Aufersteh'n, ja aufersteh'n wirst du. Onde mãos que me possam desbastar e trazer-me de dentro da pedra e impor-me à vida afirmando – vem até mim, sou teu pai, fala a mim com tuas palavras. Fico perguntando a espessa noite iluminada pelo mercúrio da iluminação pública. A resposta? Nem sei dizer se ela importa. Tenho medo que ela venha de mim e eu não sou quem eu espero ouvir. Quero ouvir no vento. Quero ouvir na chuva. Quero ouvir nos astros, no silêncio do meu grito sempre contido. Morto.
[...] Com asas que ganhei [...]
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