Domingo
__Vem comigo, teu pai morreu – a mãe falou.
Então de repente ele sentiu o ar duro e crespo estagnando. Não olhou logo para a voz. Procurou com a ponta dos dedos seus lábios e impôs a si um silêncio invertebrado, sem o pasmo da surpresa presumida. Virou-se para a janela e ouviu os reflexos de sol no vidro, olhando com mais atenção descobriu o dia enorme e azul que o sufocava.
Ele pensava que era a voz da mãe, mas reconheceu então que era a mãe parada no meio da sala esperando. Olhou-a vagamente sempre pensando que se estivesse caminhando num caminho no meio duma paisagem teria diante de si margens à direita e a esquerda para descansar. Pensou também que fora um menino que gostava de deitar-se sobre as lájeas que cresciam na beira do rio e ouvir a água que descia em pequenas quedas, ouvir o vento que passava nas folhas, ouvir as aves que eram livres e voavam sob o céu enquanto ele as descobria como seres que flutuavam muito alto nas nuvens sem camadas.
__Morreu hoje, morreu de tarde, avisaram no telefone – disse a mãe depois do silêncio dele.
Poderia pegar o livro e abri-lo outra vez. Faria isso? Inclinou-se para frente. Suspendeu o gesto, parou pra ouvir o ar circulando pelo apartamento. O calor áspero e sufocante. Voltou à posição anterior. Ereto na cadeira.
__E vim porque precisamos fazer o que as pessoas pensam que é certo – a mãe disse.
Acompanhou o gesto do filho. Ele espalmou a mão sobre a mesa, tinha visto uma mosca. Esmagou-a com a palma da mão aberta. Gozou esse gesto. Era sua forma de dizer-se que tinha o poder. Era sua forma de dizer-se – olha, eu também sou o deus. Sem pensar que a mosca morrera e ele tivera o poder de fazê-la viver para sempre, o filho retirou a mão cuidadosamente e abstratamente observou os restos do inseto que sucumbira sob a sua potência humana superior. Ele o libertara para a vida eterna.
Ergueu-se na cadeira, a mãe caminhou até a janela. O filho pensou em voltar a sentar-se, mas apenas afastou de si outra mosca que voava a sua volta.
__Você vem – a mãe perguntou.
Não podia não ir. A mãe não precisava da resposta, sabia que ele que ele iria. Só então sentiu-se impactado das palavras dela. O pai tinha morrido e ele era o filho, ele tinha que ir com ela sepultá-lo. Quanto tempo fazia aquilo? Perguntasse a mãe ela diria que o pai morrera porque a que a morte é um encontro, havia a vontade do deus e o pai morrera mesmo.
No entanto, ele era o filho e havia a gratuidade da morte do pai pesando sobre ele. A mãe ouvia o que os antigos vizinhos pensando dela depois da morte do pai. E como marido da mãe tinha morrido os ressentimentos perdoavam-se. Mas ele era o filho e presumia-se tudo. Presumia-se que um bêbedo tinha morrido e agora perdoava-se porque ele tinha morrido. Mas não. Consolar-se nessa condição de honrar pai e mãe? Não distribuiria para si mandamentos.
Bateu com o pé no chão para impor-lhe aquela obstinação. Quando se voltou para si estava olhando fixo para a mãe e a mãe o olhava. Os dois tinham concordado com tudo. Cinco anos depois e agora o pai morto, a mãe voltaria com o filho para enterrar o pai.
Podia dizer-se – Não vou – e então a mãe voltaria pra casa e seguiria a vida com os outros filhos e sem pensar mais nele como o filho que ele levou para enterrar o pai. Estudar tinha sido a vida que ele escolhera. A vida que não exigia vícios, pois os vícios que ele tinha jaziam irrevelados. Viver como um intelectual de rastros, ele sentia gozo em acomodar-se naquela superfície, ainda que fossem perspectivas de um aquário, estreitas e parcas. Cruzou os braços atrás das costas e esperou pela mãe.
__ Não tenho dinheiro para as passagens. E vamos amanhã – disse a mãe.
Ele podia sorrir, explicar a ela que. Mas apenas escutou o que ela ainda disse:
__Temos ônibus pra lá só amanhã de manhã, onze horas.
Quando a mãe saiu ele sabia que tinha prometido pra ela que compraria as passagens e a seguiria pra enterrar o pai numa tarde do domingo. Ouviu o silêncio do fim do dia decantando-se na rua. Subitamente a noite tinha baixado e agora ele estava sozinho. Lá dentro um dos companheiros de quarto pontilhava o violão. Toalha molhada estendida no espaldar duma cadeira, pratos sujos na pia, livros na prateleira, cinzas no cinzeiro. Na tolha um desenho de praia e mar azul, guarda-sol vulgívago.
Ele fechou os olhos, as pupilas ardiam. Enfim, tinha sede e serviu-se da água que o dessedentaria. Enquanto bebia o líquido pensou – me afogo e recomeço a viver depois que eu tiver bebido toda a água que meu corpo puder conter.
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A mãe estava ao seu lado e os dois não se diziam nada. Eles eram quase os dois únicos passageiros no ônibus. O filho olhava para fora e mãe olhava para frente. Um velho viajava com eles três poltronas adiante. Tossia convulso, aquele velho.
O filho sentiu que, agora mesmo podendo fugir de tudo aquilo não fugiria, ele era uma pessoa temente da liberdade, gostava de pensar em si mesmo como um homem que arrastam para o destino. A mãe tinha aparecido no apartamento e o solicitara para enterrar o pai que morrera. Sábado ou domingo? Ficou pensando se era possível recordar-se de como soubera daquilo tudo. Havia a mãe que o procurara e dissera – Teu pai morreu. Ele ouvira mesmo a mãe dizer e compreendera realmente que em algum ponto do dia o pai morrera, por isso estavam ali sentados viajando para a casa do pai.
Quanto tempo fazia? A paisagem passava e ele não fixava o pensamento num vértice dela. Vinham outros trechos de mata, outras pedras, outras encostas da estrada. Uma ave cinza e esguia tinha pousado na cerca que margeava a rodovia de terra, mas logo ficara para trás. Procurou vê-la na memória recente, mas não a tinha fixado completamente. O ônibus cansava-se subindo a serra íngreme e escarpada. A poeira entrava em tufos pelas janelas e o velho puxou a cortina escura e poeirenta tapando-lhe o sol que entrava pelo direito do veículo. E o velho voltava a tossir freneticamente.
O filho reclinou-se na poltrona e sentiu a camisa colar-se nas costas. O calor e a poeira sufocava o ar. Lá atrás um homem e uma mulher falavam sobre. Fechou os olhos e toda aquela manhã veio-lhe a mente. Ele e a mãe esperando o ônibus no corredor de embarque. O vento passando e oscilando a folhagem das amendoeiras. O tempo parado e zumbindo nos carros que chegavam e partiam com as pessoas que embarcava na rodoviária ele sempre pensando – vão para bem mais longe do que eu, e se não voltarem nunca é porque não foram felizes.
Prendeu a respiração e só voltou a soltar o ar dos pulmões quando sentiu-se sufocando. Agora prosseguia viagem, a mãe olhava para frente. A mãe era uma mulher magra e curtida. A pele escura esticada sobre uma ossatura longa, rosto oblongo, olhos sanguíneos. Olhava pra frente. Quem dos dois com mais medo?
O pai lá ficara para morrer na casa. Agora o pai apodrecia com os olhos e a boca cheios de terra. Uma pedra cresceria sobre o ventre do pai e sua carne secaria e seus ossos seriam ocos sob o chão. Quando ninguém mais podia viver com o pai foram desertando. Ele desertara primeiro, era um filho, não havia como. Depois a mãe que fugira. E o pai vira-se sem nada, sozinho dentro da casa, os filhos e a mãe seguindo sem ele. O pai que morrera, enfim, domingo? Um filete de suor escorria-lhe no ventre, secava nas suas costas com a poeira da estrada. Mas afastou-se do encosto da poltrona e olhou outra vez para fora.
Apareciam casas na paisagem. Casebres atarracados, um arruado deles. Observou-os enquanto passavam. Quem viveria infeliz naqueles tugúrios? Os homens também habitam onde a terra é indócil. Ficou expectante para encontrar a fonte de água daquele lugar. Um poço, uma cisterna, um açude. Viu o curral das vacas e uma caveira de vaca morta sobre a estaca da cerca. Era uma caveira branca que olhava para a estrada com os olhos vazados ausentes. Tinham ensinado pra ele que a força do homem era um instrumento de trabalho, que o homem a vendia e que comprava a vida com essa venda. Mas como aplicar a microeconomia teórica?
Subitamente voltou-se para a viagem que ele fazia com a mãe porque o velho tossiu com mais força lá frente e não se contendo ele olhou pra dentro do ônibus, assustou-se com a sensação de estar se impondo um destino, de estar se impondo uma necessidade de não ser de repente livre.
Efetivamente estava cansado e aquela viagem não era necessária. Só era imprescindível que a mãe fizesse tudo como ela pensava que os outros queriam que ele, o filho, fizesse. Mas estava mesmo tão cansado, tão cansado, não lembrava-se do que o cansara tanto, mas sentia o corpo afadigado.
As pálpebras pesavam, pejadas de sono, caíam, fechou os olhos e eles lhe ardiam como brasas na face.
Quando abriu-os outra vez, a mãe o chamava. O ônibus havia parado e eles tinham chegado num lugar. Olhou rapidamente em volta e viu-se desamparado. Seguiu a mãe pelo corredor do ônibus e os dois desceram para o meio da rua. Percorreu com o olhar as casas da praça onde o ônibus parara e só então se disse – chegamos, mas ainda caminharemos até a casa do pai.
Era de tarde, entre meio dia e duas horas da tarde e o calor abrasava, era o domingo. Olhou a igreja fechada, as casas fechadas e os cães na sombra das platibandas amarelas. Já a mãe caminhava subindo a rua. Seguiu-a. Quanto eles viveriam ainda mais daquele dia? Caminhou atrás da mãe, não queria seguir ao lado dela. O sol era um olho crepitante fitando-o e julgando-o supremamente.
Vinha um homem, vinha um cão, desciam a rua. Nunca chegaram a passar pelo homem e pelo cão. Coágulos de sol escureciam sua visão. O deus que ele negara deveria estar feliz olhando-o desde o seu lugar de seu privilégio divino. Lá longe uma ave preta e densa voava em círculos, quando ele e a mãe chegassem naquele ponto do caminho se tranquilizaria observando que a ave tinha desaparecido voando para mais longe.
A mãe e o filho caminhavam sob o sol, o filho pisava duro na terra da estrada. Pisava num chão que ele calcara num tempo que se perdera, num tempo fora simples e sofrível. As pedras que haviam parado ao sol rutilavam na luminescência sólida e branca. Subitamente uma enorme árvore sombreando a estrada. Pensou em sentar-se e chorar sob aquela sombra, naquela pedra, naquele silêncio.
Mas continuou seguindo a mãe e seguiu-a até que os dois chegaram na frente da casa do pai.
Ele parou para não entrar. Pra quê? Olhou a ruína. Veio um vizinho e falou com a mãe:
__Não soubemos o que fazer com ele, e enterramos de manhã.
Sábado ou domingo? O filho pensou.
Mas a mãe agradeceu ao vizinho e entrou na casa. O filho aproximou-se da porta da frente e ouviu a mãe caminhando lá dentro. Aspirou o ar que se acumulara em volta, mas permaneceu parado, tinha que entrar, não entrou. As pernas pesadas, o corpo rijo, não entraram. Ergueu-se dentro de si, tinha que entrar. Olhou em volta. O vizinho parado no terreiro. A sombra da tarde crescendo na frente da casa. O algorobo oscilando no vento. Ouviu as sementes dentro das vargens. O odor sombrio que vinha de dentro da casa. Lá dentro a mãe caminhava. Se entrasse agora. Mas todo o corpo parou e os membros rijos e em volta dele um emparedamento invisível o retinha ali, o impedia de passar pela porta e entrar na casa do pai.
Deu a volta na casa.
As paredes gretadas. Nas gretas da taipa as lagartixas punham seus ovos e cresciam lá dentro, depois vinham para fora, frias e cintilantes. Ele parou atrás da casa, lá em baixo corria o riacho e era onde ele tinha crescido e pescado lambaris. Era também aonde a água corria nas pedras e ele a ouvia fluindo.
Mas agora que tudo fluíra cada momento era somente uma sucessão de várias mortes que chamavam ilusoriamente de mais vida. A mãe saía de dentro da casa e ele voltou para o terreiro da frente.
Ficou esperando. A mãe fechou a porta, entregando a chave ao vizinho, voltou-se para a casa, voltou-se para o filho.
__ Acabou, vamos embora – a mãe disse, e outra vez ele a seguiu.
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