domingo, 2 de maio de 2021

CRÔNICA - BANHOS DE RIO

 

Banhos de rio

         De repente ela ouviu as tranças da chuva batendo no telhado, seu coraçãozinho transiu-se numa ânsia voraz e ela envolveu-se toda nos lençóis da cama para dormir logo e esquecer-se que a chuva trazia-lhe uma expectativa.

         Mas pouco depois a menina compreendeu que não chegaria nunca a dormir completamente se não ficasse quieta e imóvel como uma grande orelha a escuta observando a chuva caindo do céu sobre o telhado da casa. Abriu os olhos e viu que a noite dentro de casa era viscosa e penumbrosa, pois havia uma claridade fina que atravessava o corredor e se arrastava sob a porta do quarto. Então a menina ficou de olhos abertos não vendo, mas pensando.


         Primeiro não pensou imediatamente na chuva. Pensou primeiro no pai cansado e estendido sobre a cama grande. A menina olhou a porta entreaberta procurando descobrir a presença humana observando-a do umbral. Não, ali ninguém havia. Só o escuro duro e impenetrável. Gotinhas de chuva molhavam seu rosto. Pensou que havia sentido borrifinhos da água na sua face. Desenrolou a mão direita para limpar os olhos, convenceu-se então de que não pensara haver sido borrifada com a água da chuva. Novas gotículas molharam a cara da menina. Então ela fechou os olhos e esperou essa nova sensação. Aspirou o ar com força e foi uma revelação de umidade e cheiro de barro lavado.

         Sentiu que o cheiro do escuro que antes havia se imposto flutuava agora mais acima e suas narinas captavam naquele momento apenas o bafo do telheiro molhado. Tudo ficara doce e feliz. A noite seria plenamente dormida como um vasto sono cujos sonhos lúcidos não estariam esquecidos quando ela acordasse de manhã.

         Mas a menina pensou também que se falasse com sua voz a palavra chuva haveria um súbito encantamento lá fora e a chuva seria constante, tão constante que atravessaria a própria noite, pois agora ela temia que de repente parasse de chover e o riacho não enchesse como seu coração queria. Importante lançar um feitiço que desencadeie a chuva completa sobre a terra. De manhã ela e ouviria com susto o riacho roncando e os passarinhos atrás da casa pulando no salgueiro. Falar a palavra chuva no escuro poderia ser um risco para a aranha que se equilibrava no escuro no canto do quarto. Mas entre seu coração e coraçãozinho aflito da aranha havia a expectativa do rio cheio e do pai levando-a pelo campo para tomar banhos de rio.

         Desse modo a menina afastou de si o medo e falou compassadamente à palavra que ela tinha viva dentro da boca – Chove-chuva. Mas não falou tão alto que eriçasse o escuro ou acordasse alguma claridade na casa. Falou num sussurro apressado e intranquilo. Só compreendeu que o condão fora maravilhoso quando ouviu a resposta do céu numa voz troante do trovão rolando no ar. A menina puxou o lençol e cobriu-se. Ficou lá dentro, imóvel, como imaginava que ficavam os pintinhos dentro do ovo quando sua mãe saia para comer minhocas.

         Enfim dormiu, mas só soube que tinha dormido no outro dia quando acordou e não ouviu mais a chuva. A primeira coisa que a menina pensou foi que o vento tinha entrado na casa, percorrido o quarto e derruído a pobre teia da pobre aranha equilibrista. Olhou para lá, mas lá estava ela ainda, intacta e paciente como uma flor aberta num canto do muro. A menina parou pra escutar e então se deu conta de que a casa estava aparentemente calma, mas na calma dum silêncio tão crespo que provavelmente seria rompido num súbito estampido.

         Ouviu mais longe, lá fora, em volta da casa. Ela sabia que os passarinhos voavam no céu atrás das aleluias e que sob o sol as minhocas saiam de dentro da terra molhada para respirar e secar-se na manhã viva. Mas o que elas não sabiam é que havia sempre uma galinha a espreita de uma minhoca boba que não tinha medo de vir para fora. Assim, ouvindo a menina ouviu o rio nas pedras, ouviu o rio fora do leito.

         Ia saltar da cama para correr ao pai, mas este se adiantou a ela e veio-lhe com o seu enorme sorriso paterno encontrá-la muito preguiçosinha entre lençóis. Viu-o entreabrindo mais a porta do quarto numa convocação que ela já adivinhava.

         __ Meu pai, eu vou já – ela falou.

         Quando a menina chegou à frente da casa o pai olhava o mato que crescia depois do curral que subia pelo morro e que descia para dentro do vale. O pai abraçava com o olhar vazio a paisagem da terra inteira pontilhada de cavalos, bois e vacas que estendia diante da casa. Voltando-se para ela, o pai olhou reconhecendo-a. Seu animalzinho crespo e pardo. 


         Seguiram pelo campo úmido. A menina quem mais feliz. Lá de detrás das nuvens escuras vinha o sol medroso e molhado. A menina quem mais feliz. Ela pisava a terra, mas procurava não machucar as flores que cresciam na erva, mas eram tantas que ela tinha medo de não ver todas elas e desastradamente com as suas pesunhas ferir muitas. O mais impossível era desviar-se completamente das baba-de-sapo, branco-visíveis, mas alastradas no meio do caminho. Salsa-da-praia, guarda-sol-aberto-pra-cima. A menina agachou-se para colher uma. A mais azulzinha que ela viu. Tinha um besouro dentro, mas o besouro fugiu da menina. Mais adiante colheu chananas, um molho delas só para depois largá-las no campo. E agora isto? Uma marcha de gafanhotos-soldados.

         Chegam ao rio. A chuva trouxera a água lá de cima. A menina pára diante da água que escorre nas pedras. A água lava as pedras que sempre que nunca se sujam, sempre tão limpinhas. Ela larga as flores na margem do rio. Caminha descalço até o laguinho, cava a areia com a ponta dos pés. Vem-lhe o pai.

          __ Meu pai, eu entro já – ela fala pra ele.

         A menina pensa calada, ela escuta o silêncio das árvores, escuta o silêncio das pedras e ouve somente o murmúrio constante da água que escorre no instante preciso do rio movente. Em cima o céu, mas quase que só se ver pontinhas de céu por sobre o dossel das folhas que cobrem o laguinho num sombreado perpétuo. A menina curva-se para a água. Toca-a com três pontinhas dos dedos da mão. Olha o pai, este depôs a toalha e o sabonete no capim da beira do riacho. Vai barbear-se, e é meu pai. É um homem alongado e troncudo. Onde ela ouviu isso? Provavelmente enquanto estava no quarto e esperava o primeiro instante da aranha.

         Pôs-se em maiô e pisou dentro d’água, sentiu-a líquida e afável na sua pele. Olhou-se no espelho límpido da superfície clara. Era a menina que se via coberta de sombras. Pardacenta como a vaca Mocha. Sorriu-se imitando a dentuça da vaca que a alimentava com o seu leite de uma brancura espessa. Olhou o pai e ele a viu através do espelhinho fixado num galho. Sorriram-se compreendendo-se como dois únicos seres.

         Decidindo-se, a menina caiu na água e nadou até o meio do laguinho, ficou parada ali e vieram-lhe os lambarizinhos comer-lhe fiapos de pele morta. Acima de sua cabeça ela viu entre as folhas grossas do capitão-do-campo os olhos frios de uma pombinha que a olhava pendendo a cabeça à direita e a esquerda. Ficaram se olhando, mas tão mutuamente que a menina temeu assustar a pobrezinha da ave cinza. Mas ainda assim continuaram insistindo-se no siso. Só quando o vento veio e passou entrando pela mata, foi que a menina compreendeu-se cercada de água e olhando para a margem onde o pai havia se sentado sobre uma pedra.

         Tapando as narinas com os dedos ela submergiu. Lá dentro do lago ousou-se. Abriu os olhos no vácuo. Grande foi seu susto ao revelar-se cercada da claridade vazia, da transparência oca e da sublimidade cristalina do sem lugar, do espaço ausente que a envolvia naquele instante. No entanto estava decidida a consumir todo o ar que havia em seus pulmões até quando ela chegasse apensar – se não subir agora morrerei sufocada na minha própria teia. Estendeu então um braço para o fundo do rio e colheu com a mão direita, a areia, a lama e as pedras que estavam pousadas lá embaixo.

         Quando emergiu para a superfície da água trazia fechada em suas mãos um segredo tão sigiloso que temia revelá-lo até mesmo ao pai. Não abriu logo a mão, levá-la-ia fechada até a casa e lá dentro, no semiescuro do quarto lançaria aquele ouro na caixinha de aço aonde o ela ia guardando o que vinha descobrindo sobre si, mantendo assim esquecido até do próprio pensamento.


 


 

 

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