domingo, 30 de maio de 2021

CRÔNICA - OS SOFRIMENTOS DE UMA JOVEM ESPOSA

 

Os sofrimentos de uma jovem esposa

         Casou porque amava o André, não tinha outro interesse. Mesmo porque era desejada, perseguida.  No fundo do quintal quase com o Joãozinho. Conteve-se, quando a avó soubesse o que seria dela? A avó de outro tempo nunca que entenderia que ela já com o Joãozinho. Também não era dessas desfrutáveis. Reconhecia que homem só quer chupar a pitanguinha, depois cospe caroço e adeusinho pureza. Por isso, mais que quisesse com o Joãozinho, deixou-o esvaindo-se na sarça ardente.

         Entrou correndo na cozinha, a avó voltou-se:

         __Viu o Labatut?

         Depois o Joãozinho nunca mais. Fechou-lhe a cara. Mas ela sem rancor nenhum do atrevidinho. Moça que se guarde. O exemplo de Maria, a judia. Nem com o José Carpinteiro ela fez. Então apareceu o André.

         Como foi que chegou o André?

         __ Entre, meu filho. Mamãe boazinha?

         __ ...

         __ Pena o que aconteceu com o compadre.

         __ ...

         __ Foi coração?

         __ ...

         __ Tinha falado pra Neném. Mas sente-se, café?

         Quem era este vovó? Velha maluca, nem pra responder direito. Perguntei quem era o moço, vem com quatro pedras. Vidro moído no teu caldinho ó velha bruaca! Depois viu ele num encontro fortuito.

         __ Não é o André?

         __ Sou.

         __ O afilhado da avó?

         __ Você, então?

         __ Pois é, cresci.

         Entrou na minha vida o André. Liberdade, liberdade, abre as asas sobre nós. Caso com o André e mudo de vida. Noivinha até que a avó junte os pés. Paciência, Deus não é o diabo que vai fazendo com tanta pressa que faz mal feito. Agora que tinha o André, ele esperaria por ela. Mulher sabe fazer o homem esperar. Me espera Andrezinho, a bruaca morre aí fico livre. Só eu pela velhota gorda, reumática e hidrópica.

         Lá no quarto, escuta. Ela sabe de tudo. No tempo dela foi puta, mas depois foi catequista e finalmente acólita. Guarda a chavinha dourada do sacrário no bolso e vai pro céu, a bruxa. Mãos do Andrezinho perigosamente nos seios, no sexo. Ai dela! Toda molhadinha! Ser permissiva, mas não oferecida. Deixar o André tontinho, refém da bucetinha. Pra me comer só casando, já viu.

         Antes de casar não case Rosinha. Vieram dizer. Por que não se casava então? O André é o homem. Meu escolhido, muitas com inveja. Até as velhuscas. A avó morta para sempre e ela nunca que sozinha. Encontrou o homem e gostou do André. Não lhe tiram esse gosto.

         __ Problema do André é a mãe.

         __ Problema do André é a mãe.

         __ Dona Neném?

         __ A bruxa.

         __ Nenhuma velhinha me vence. Eu peitinhos duros, perninha grossa, varizes nenhuma. E mulatinha, pra quê bronze? Tenho o Andrezinho na palma.

         Primeiros tempos de casada no paraíso. A Rosinha louquinha de amor. Pipira livre voando no céu de abril. E o André? Esse vencido, refém, submetido, caído aos pés da. Melhor que ele jamais outro. Ordenado nas mãos da rosinha, ela quem sabe o melhor uso. Pouca urgência eles tinham. Instalados na casa da sogra, a mãe do André. Tratava-a como uma filha. Ela que fosse acreditar na boca maldita. Dona Neném uma santa.


 

         No domingo passeio e sorvete feliz. As ruas do centro sem movimento. A cidade lânguida cansava-se e estirava-se na tarde morna. Ela se aconchegava no calor do André. Os dois sentadinhos no banco da praça, a catedral brutal e rígida. De repente um passarinho. De repente o vento nas folhas das árvores da praça. De repente um esguicho de água na fonte do coreto. Era uma cidade que ainda tinha um coreto. E ainda de repente o relógio tin-dleeeeeennnnnn! Na torre da matriz. A Rosinha bem preguiçosinha queimando sob o vestidinho carmim.

         Em casa a Rosinha bem nuinha na cama. As coxas afastadas, o André vinha e a tomava. Siliciosa espada de dois gumes transpassava-lhe o ventre. Aço frio e compacto, a enregelava por dentro, carpia-se com uma dorzinha rútila e cruel. E de repente! Ah! Espasmo! Com ataque de cadelinha trêmula nos braços do André.

         Ela assim muito feliz. Nunca que outra vida. Esperou e teve o fruto proibido. Em verdade Deus era um velho que não sabia escrever o curso da vida humana. Escrevia torto porque não usava bela caligrafia, depois não lia o que escrevia e nem se arrependia do texto. Mas ela estava escrevendo a própria vida. Agora que soubera do fruto, não haveria espada de arcanjo trançada que a impedisse de saquear o jardim do paraíso.

         Mas Dona Neném a serpente no paraíso. Te ofereci um fruto, comeste-o todo. Agora recebo-o de volta. O penhor era o André. Foste com muita sede ao vinho, o odre secou. Não recebo migalhas. Na verdade antes de teu homem o André sempre meu filho. Sem vergonha. Ouço teu miado no quarto. Cadela no gozo. O André magrinho, fraquinho o meu filho. Tu uma possessa. Eu nunca. Todo dia no banho, na cama com o André. Me insulta, não me respeita. Não respeita teu marido. Neta daquela de muitos homens. Podia ser outra?

         __ Meu filho abre o olho, essa tua mulher.

         __ A Rosinha, minha mãe?

         __ Essa que está lá dentro.

         __ E então?

         __ Em segredinhos com a Lili.

         __ O que me diz mãezinha?

         __ Juro pela Luz Celeste.

         __...

         __ A Lili você sabe meu filho. Até com o velhote manco.

         __ Amigas?

         __ Em segredinhos lá no fundo do quintal, quando apareci se calaram. Muitos risinhos. A Lili loura e puta e tua mulher com esta amizade.

         Mentia Dona Neném. Quer o meu mau ó André! Tua mãe me odeia. Me vigia, nem olho pra rua. Aqui no quarto sempre. Uma vez só. Faz tempo André. Tinha goiaba e eu quis uma. Você se lembra? Eu pensei que estava. Que já teria nosso filho. Vi as goiabas e fui. A Lili lá. Muro baixo não é? Vou virar a cara pra moça? Vida dela não me importa. Cada um faz como quer quando o que tem é seu. Falou de tudo. Menos de homem, ó André. Ensinei pra ela um método pra anjo. Foi isso que sua mãe ouviu.

         Agora a pipira na gaiola. Ficará louca. O quarto é privação. Nem na sala mais pode. Dona Neném com a chave pra sempre. Morrer esta não morre. Dura como vaca velha. Na mesa nem olha mais o André. Separação de quartos. A solidão da mulher casada. Noites se consumindo no vapor do seu inferno. A mãe do André tomou-lhe o marido. Choro, ranger de dentes. Unhas na cara. Já muito magrinha. A infelicidade dela foi vir morar naquela casa. Escutasse o que diziam da sogra. Uma bruxa. Matou o marido na unha. Um dia a bruaca estourou o coração do velho.

         Então quer o filho pra ela? Admira o André não ver quem a mãe. Frouxo, veado, fresco. Eu ardendo na febre do amor e o xibungo na cama da mãezinha. Sim que o André já se deitava com a mãe na mesma cama. Ela que nunca imaginasse. Se espalhasse, um escândalo!

         Vou e digo a Lili:

         __ Sabe o André?

         __ Teu marido?

         __ Era.

         __...!

         __ A mãe dele me tomou.

         __ Não diga!

         __ Digo. E pode dizer por aí que eu disse.

         __ Pois confirme.

         __ Me deixou pela velha. Me maltrata. Até me bate. Me deixa sem comer. Eu quase louca já. Naquela casa há um pecado em cada buraco, em cada prego, em cada greta da parede.


 

sexta-feira, 28 de maio de 2021

CRÔNICA-VIAGEM NA FAMÍLIA I

 Viagem na família I

         Ouço no escuro, a tua, a intranquila voz que me fala? E é o teu retrato, meu pai – Meu limite é a minha liberdade. Não a tua, pois tu és já tão antigo, dissolvido, memória incandescida, sombra decantada. E eu sou um animal invertebrado e sem ossatura avolumando-se e crescendo dentro do quarto. Não vejo você, vejo o retrato, inumano e material. Ver um retrato é perder a esperança de encontrar o ser real que um dia habitou o instante fatal em que produziram o retrato. Eu penso você meu pai, mas eu penso principalmente o retrato, o retrato é o que eu vejo, táctil – arestas, vértices, plano. O instante da ideia cristalizado na vossa imagem de papel e cromos.  Eu penso e os outros não ouvirão, mas quando a ideia corporifica-se nas palavras que eu falo ou escrevo eu me torno todo explicável, transparente, fora das gavetas e a chave entregue, eu sinto então que há perplexidade em volta, pois concebo-me nesse momento como um ser translúcido que afinal habita com os outros seres que nasceram de um pai e que conserva num álbum o retrato dum pai. Objetos presumíveis, nós. Eu, o teu retrato meu pai e tua memória crestando-se em mim. Objetos presumíveis, não-arquétipos, fomes transitórias, pedras transitivas.

         Mas é aqui que me transfiguro. Não me transfiguro como a ave no voo, nem me transfiguro como o verme no fruto. Toda minha transfiguração vem do que reverbera entre minhas camadas de ser. Do dia fatal dos nossos instintos medindo-se, no deserto, a nossa revolta a, a minha revolta, o insustentável amor, a dividir-nos, e eu impondo-se trágico e feliz. Agora dissoluto e livre, eu nego tua história em mim, e conservo teu retrato num álbum, lembranças violentas, empurrando-me pelo tempo e pelos lugares. Voragem. Um retrato num álbum é um relógio contando o tempo parado. Pensa-se num ser que já de tão antigo sucumbe, mas não numa queda súbita e imprescindível, sucumbe em silêncio, num silêncio amarelecendo, ficando branco-cinza, sem ruído, a aparência de ser esvaindo-se numa pátina tão lenta e tão constante e tão longamente imperceptível. Nem tão subitamente compreendemos a velhice desses objetos recônditos, primeiro descobrimos que eles foram guardados felizes, mas já suportando o peso do próprio tempo, depois somos lançados nessa voracidade atroz – no retrato sopesa-se o nosso próprio tempo, o bolor loquaz e o limo invariável vêm transpassar-nos, miríficos e cruéis vêm comer nossos cabelos, nossa barba, nossa face, nossos braços, nosso torso, nosso ilusório momento antigamente fundido.

         Esse corpo há tanto existido que tu habitaste num tempo meu pai era teu invólucro humano, tua carne virente. Quantos anos? Nem pensavas em mim ainda não existido, depois é que tu te desdobrarias em mim e nos outros seres desdobráveis que vivem agora também entre nós. Agora tu és o quê? Há muitas camadas de pó sobre os meus retratos, meus quadros, meus livros, sobre meus móveis. É você, meu pai? O que te tornaste depois que nos perdemos no escuro, meu pai? Tantas sombras se acumularam entre nós, tantos rancores, mágoas não perdoadas. Você dentro do labirinto, no único retrato vosso que me ficou no álbum de família meu pai. Você à sombra do Minotauro. Vejo-os, labirínticos seres, tu e o touro esfíngico. Atrás de ti a massa escura de força e carne, seres agudos, mas tu destemível, o homem se impondo à fera. O retrato é teu ou do touro meu pai? Nome do touro – me falaram, não o escrevo, fica sendo assim – Retrato do pai com touro.

         Mas onde estás agora? Onde estamos agora? Nós, dois homens, tu, eu. Mãos que se estendam não te alcançam. A verdade é que eu quero estar mais próximo do chão, mais ao rés da superfície, eu quero pisar as pedras com meus pés, caminhar nos espinhos, errar, poder cair e sentir-me humano e ineficaz. Acreditar que estou pronto desde o dia que me tiraram do barro, que minha argila maleada com descuido pelo deus me habilita unicamente a ser errado e vermicular. Transfundir-me? Em quê? A pergunta é sempre sobre mim, inquieta-me ser esta forma inconstante e presumível que escorre sobre a superfície do mundo. De repente vejo-me num espelho e me revelo todo incompleto. Transmutação de sangues, remorsos exposto. Meu avô num retrato, paisagem patética, o avô que morreu louco. Os homens da família todos previstos. Não fundarão reinos, não escreverão leis, não imporão ideias, nem terão terra, nem gado, nem máquinas, serão braços dum senhor. Este meu avô, como o avô deste meu avô, já plantou cana, já foi mestre de engenho, coseu pedras, teve muitos filhos, deu eles para o deus, quem não morreu ficou com este avô, fiando cardos, minha mãe, fiandeira muito exímia, no retrato com o touro, tensa, entregue, casamento pobre, hostil. Meu avô louco, últimos tempos cataléptico, nem me via. Vida dele nem me lembro. Num retrato de meio século e mais, único despojo da data sutil. O avô a enlaça, ela, a avó, ele tranquilo, escuro, preto, crioulo. Casamento de pretos. Substrato do que serei.

         Homens vencidos – eu, você meu pai, meu avô. Emparedados no vício, erguendo abismos entre nós, repisando remorsos, trevas, descaminhos. Nossos retratos, nossas bocas mudas, nossas mãos mortas, nossos afetos calados. Nosso desencontro e nossas vidas oblíquas. Eu que nego a vossa história em mim. Que me desacerto no caminho, que me choco com outras vidas, não conheço vossas vidas, há tantas vidas ocultas e a vossa meu pai, a vossa meu avô, foram vidas tão ralas, foram vozes tão mudas, não repercutem senão em mim. Vossos braços que amaram a terra, vossas mãos que transfundiram o pão, vossos pés que me abrandaram as pedras, repercutem nas minhas camadas de ser. Mas nego vossa vida em mim. Nossas avós antigas violadas, qual delas em nós? Nem retrato delas, nem retrato dos homens que secaram sobre a terra alheia, sobre o sol alheio, dos homens que foram braços alheios. Eu jungido a você meu pai, jungido a você, avô, mas a eternidade, ó a precária e crepitante eternidade impondo-se entre nós com a sua voracidade e rigidez atroz. 


 

sábado, 22 de maio de 2021

CRÔNICA -DOMINGO

 

Domingo

         __Vem comigo, teu pai morreu – a mãe falou.

         Então de repente ele sentiu o ar duro e crespo estagnando. Não olhou logo para a voz. Procurou com a ponta dos dedos seus lábios e impôs a si um silêncio invertebrado, sem o pasmo da surpresa presumida. Virou-se para a janela e ouviu os reflexos de sol no vidro, olhando com mais atenção descobriu o dia enorme e azul que o sufocava.

         Ele pensava que era a voz da mãe, mas reconheceu então que era a mãe parada no meio da sala esperando. Olhou-a vagamente sempre pensando que se estivesse caminhando num caminho no meio duma paisagem teria diante de si margens à direita e a esquerda para descansar. Pensou também que fora um menino que gostava de deitar-se sobre as lájeas que cresciam na beira do rio e ouvir a água que descia em pequenas quedas, ouvir o vento que passava nas folhas, ouvir as aves que eram livres e voavam sob o céu enquanto ele as descobria como seres que flutuavam muito alto nas nuvens sem camadas.


         __Morreu hoje, morreu de tarde, avisaram no telefone – disse a mãe depois do silêncio dele.

         Poderia pegar o livro e abri-lo outra vez. Faria isso? Inclinou-se para frente. Suspendeu o gesto, parou pra ouvir o ar circulando pelo apartamento. O calor áspero e sufocante. Voltou à posição anterior. Ereto na cadeira.

         __E vim porque precisamos fazer o que as pessoas pensam que é certo – a mãe disse.

         Acompanhou o gesto do filho. Ele espalmou a mão sobre a mesa, tinha visto uma mosca. Esmagou-a com a palma da mão aberta. Gozou esse gesto. Era sua forma de dizer-se que tinha o poder. Era sua forma de dizer-se – olha, eu também sou o deus. Sem pensar que a mosca morrera e ele tivera o poder de fazê-la viver para sempre, o filho retirou a mão cuidadosamente e abstratamente observou os restos do inseto que sucumbira sob a sua potência humana superior. Ele o libertara para a vida eterna.

         Ergueu-se na cadeira, a mãe caminhou até a janela. O filho pensou em voltar a sentar-se, mas apenas afastou de si outra mosca que voava a sua volta.

         __Você vem – a mãe perguntou.

         Não podia não ir. A mãe não precisava da resposta, sabia que ele que ele iria. Só então sentiu-se impactado das palavras dela. O pai tinha morrido e ele era o filho, ele tinha que ir com ela sepultá-lo. Quanto tempo fazia aquilo? Perguntasse a mãe ela diria que o pai morrera porque a que a morte é um encontro, havia a vontade do deus e o pai morrera mesmo.

         No entanto, ele era o filho e havia a gratuidade da morte do pai pesando sobre ele. A mãe ouvia o que os antigos vizinhos pensando dela depois da morte do pai. E como marido da mãe tinha morrido os ressentimentos perdoavam-se. Mas ele era o filho e presumia-se tudo. Presumia-se que um bêbedo tinha morrido e agora perdoava-se porque ele tinha morrido. Mas não. Consolar-se nessa condição de honrar pai e mãe? Não distribuiria para si mandamentos.

         Bateu com o pé no chão para impor-lhe aquela obstinação. Quando se voltou para si estava olhando fixo para a mãe e a mãe o olhava. Os dois tinham concordado com tudo. Cinco anos depois e agora o pai morto, a mãe voltaria com o filho para enterrar o pai.

         Podia dizer-se – Não vou – e então a mãe voltaria pra casa e seguiria a vida com os outros filhos e sem pensar mais nele como o filho que ele levou para enterrar o pai. Estudar tinha sido a vida que ele escolhera. A vida que não exigia vícios, pois os vícios que ele tinha jaziam irrevelados. Viver como um intelectual de rastros, ele sentia gozo em acomodar-se naquela superfície, ainda que fossem perspectivas de um aquário, estreitas e parcas. Cruzou os braços atrás das costas e esperou pela mãe.

         __ Não tenho dinheiro para as passagens. E vamos amanhã – disse a mãe.

         Ele podia sorrir, explicar a ela que. Mas apenas escutou o que ela ainda disse:

         __Temos ônibus pra lá só amanhã de manhã, onze horas.

         Quando a mãe saiu ele sabia que tinha prometido pra ela que compraria as passagens e a seguiria pra enterrar o pai numa tarde do domingo. Ouviu o silêncio do fim do dia decantando-se na rua. Subitamente a noite tinha baixado e agora ele estava sozinho. Lá dentro um dos companheiros de quarto pontilhava o violão. Toalha molhada estendida no espaldar duma cadeira, pratos sujos na pia, livros na prateleira, cinzas no cinzeiro. Na tolha um desenho de praia e mar azul, guarda-sol vulgívago.

         Ele fechou os olhos, as pupilas ardiam.  Enfim, tinha sede e serviu-se da água que o dessedentaria. Enquanto bebia o líquido pensou – me afogo e recomeço a viver depois que eu tiver bebido toda a água que meu corpo puder conter.

 

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         A mãe estava ao seu lado e os dois não se diziam nada. Eles eram quase os dois únicos passageiros no ônibus. O filho olhava para fora e mãe olhava para frente. Um velho viajava com eles três poltronas adiante. Tossia convulso, aquele velho.

         O filho sentiu que, agora mesmo podendo fugir de tudo aquilo não fugiria, ele era uma pessoa temente da liberdade, gostava de pensar em si mesmo como um homem que arrastam para o destino. A mãe tinha aparecido no apartamento e o solicitara para enterrar o pai que morrera. Sábado ou domingo? Ficou pensando se era possível recordar-se de como soubera daquilo tudo. Havia a mãe que o procurara e dissera – Teu pai morreu. Ele ouvira mesmo a mãe dizer e compreendera realmente que em algum ponto do dia o pai morrera, por isso estavam ali sentados viajando para a casa do pai.

         Quanto tempo fazia? A paisagem passava e ele não fixava o pensamento num vértice dela. Vinham outros trechos de mata, outras pedras, outras encostas da estrada. Uma ave cinza e esguia tinha pousado na cerca que margeava a rodovia de terra, mas logo ficara para trás. Procurou vê-la na memória recente, mas não a tinha fixado completamente. O ônibus cansava-se subindo a serra íngreme e escarpada. A poeira entrava em tufos pelas janelas e o velho puxou a cortina escura e poeirenta tapando-lhe o sol que entrava pelo direito do veículo. E o velho voltava a tossir freneticamente.

         O filho reclinou-se na poltrona e sentiu a camisa colar-se nas costas. O calor e a poeira sufocava o ar. Lá atrás um homem e uma mulher falavam sobre. Fechou os olhos e toda aquela manhã veio-lhe a mente. Ele e a mãe esperando o ônibus no corredor de embarque. O vento passando e oscilando a folhagem das amendoeiras. O tempo parado e zumbindo nos carros que chegavam e partiam com as pessoas que embarcava na rodoviária ele sempre pensando – vão para bem mais longe do que eu, e se não voltarem nunca é porque não foram felizes.

         Prendeu a respiração e só voltou a soltar o ar dos pulmões quando sentiu-se sufocando. Agora prosseguia viagem, a mãe olhava para frente. A mãe era uma mulher magra e curtida. A pele escura esticada sobre uma ossatura longa, rosto oblongo, olhos sanguíneos. Olhava pra frente. Quem dos dois com mais medo?

         O pai lá ficara para morrer na casa. Agora o pai apodrecia com os olhos e a boca cheios de terra. Uma pedra cresceria sobre o ventre do pai e sua carne secaria e seus ossos seriam ocos sob o chão. Quando ninguém mais podia viver com o pai foram desertando. Ele desertara primeiro, era um filho, não havia como. Depois a mãe que fugira. E o pai vira-se sem nada, sozinho dentro da casa, os filhos e a mãe seguindo sem ele. O pai que morrera, enfim, domingo? Um filete de suor escorria-lhe no ventre, secava nas suas costas com a poeira da estrada. Mas afastou-se do encosto da poltrona e olhou outra vez para fora.

         Apareciam casas na paisagem. Casebres atarracados, um arruado deles. Observou-os enquanto passavam. Quem viveria infeliz naqueles tugúrios? Os homens também habitam onde a terra é indócil. Ficou expectante para encontrar a fonte de água daquele lugar. Um poço, uma cisterna, um açude. Viu o curral das vacas e uma caveira de vaca morta sobre a estaca da cerca. Era uma caveira branca que olhava para a estrada com os olhos vazados ausentes. Tinham ensinado pra ele que a força do homem era um instrumento de trabalho, que o homem a vendia e que comprava a vida com essa venda. Mas como aplicar a microeconomia teórica?

         Subitamente voltou-se para a viagem que ele fazia com a mãe porque o velho tossiu com mais força lá frente e não se contendo ele olhou pra dentro do ônibus, assustou-se com a sensação de estar se impondo um destino, de estar se impondo uma necessidade de não ser de repente livre.

                  Efetivamente estava cansado e aquela viagem não era necessária. Só era imprescindível que a mãe fizesse tudo como ela pensava que os outros queriam que ele, o filho, fizesse. Mas estava mesmo tão cansado, tão cansado, não lembrava-se do que o cansara tanto, mas sentia o corpo afadigado.

As pálpebras pesavam, pejadas de sono, caíam, fechou os olhos e eles lhe ardiam como brasas na face.

         Quando abriu-os outra vez, a mãe o chamava. O ônibus havia parado e eles tinham chegado num lugar. Olhou rapidamente em volta e viu-se desamparado. Seguiu a mãe pelo corredor do ônibus e os dois desceram para o meio da rua. Percorreu com o olhar as casas da praça onde o ônibus parara e só então se disse – chegamos, mas ainda caminharemos até a casa do pai.

         Era de tarde, entre meio dia e duas horas da tarde e o calor abrasava, era o domingo. Olhou a igreja fechada, as casas fechadas e os cães na sombra das platibandas amarelas. Já a mãe caminhava subindo a rua. Seguiu-a. Quanto eles viveriam ainda mais daquele dia? Caminhou atrás da mãe, não queria seguir ao lado dela. O sol era um olho crepitante fitando-o e julgando-o supremamente.

         Vinha um homem, vinha um cão, desciam a rua. Nunca chegaram a passar pelo homem e pelo cão. Coágulos de sol escureciam sua visão. O deus que ele negara deveria estar feliz olhando-o desde o seu lugar de seu privilégio divino. Lá longe uma ave preta e densa voava em círculos, quando ele e a mãe chegassem naquele ponto do caminho se tranquilizaria observando que a ave tinha desaparecido voando para mais longe.

         A mãe e o filho caminhavam sob o sol, o filho pisava duro na terra da estrada. Pisava num chão que ele calcara num tempo que se perdera, num tempo fora simples e sofrível. As pedras que haviam parado ao sol rutilavam na luminescência sólida e branca. Subitamente uma enorme árvore sombreando a estrada. Pensou em sentar-se e chorar sob aquela sombra, naquela pedra, naquele silêncio.

         Mas continuou seguindo a mãe e seguiu-a até que os dois chegaram na frente da casa do pai.

         Ele parou para não entrar. Pra quê? Olhou a ruína. Veio um vizinho e falou com a mãe:

         __Não soubemos o que fazer com ele, e enterramos de manhã.

         Sábado ou domingo? O filho pensou.

         Mas a mãe agradeceu ao vizinho e entrou na casa. O filho aproximou-se da porta da frente e ouviu a mãe caminhando lá dentro. Aspirou o ar que se acumulara em volta, mas permaneceu parado, tinha que entrar, não entrou. As pernas pesadas, o corpo rijo, não entraram. Ergueu-se dentro de si, tinha que entrar. Olhou em volta. O vizinho parado no terreiro. A sombra da tarde crescendo na frente da casa. O algorobo oscilando no vento. Ouviu as sementes dentro das vargens. O odor sombrio que vinha de dentro da casa. Lá dentro a mãe caminhava.  Se entrasse agora. Mas todo o corpo parou e os membros rijos e em volta dele um emparedamento invisível o retinha ali, o impedia de passar pela porta e entrar na casa do pai.

         Deu a volta na casa.

         As paredes gretadas. Nas gretas da taipa as lagartixas punham seus ovos e cresciam lá dentro, depois vinham para fora, frias e cintilantes. Ele parou atrás da casa, lá em baixo corria o riacho e era onde ele tinha crescido e pescado lambaris. Era também aonde a água corria nas pedras e ele a ouvia fluindo.

         Mas agora que tudo fluíra cada momento era somente uma sucessão de várias mortes que chamavam ilusoriamente de mais vida. A mãe saía de dentro da casa e ele voltou para o terreiro da frente.

         Ficou esperando. A mãe fechou a porta, entregando a chave ao vizinho, voltou-se para a casa, voltou-se para o filho.

         __ Acabou, vamos embora – a mãe disse, e outra vez ele a seguiu.