Um dia
Então ele curvou-se para baixo e imitou os náufragos que veem o navio a pique. Respirou e o ar era sólido estagnado no quarto. Quantas horas agora? Por isso num hospital a morte é tanta. Onde o tempo cessa e se cristaliza sobre as horas imensas. Pensou pela primeira vez.
Foi desse modo que Dinorá veio-lhe à memória. Notícia dos pais. Mandavam o que ele precisava para o começo do tratamento. Quanto sofrera com a vertigem? Mais lisa que a dor, mais crivado do que o seteado. O que ele deplorava, o que ele mais deplorava vinha e lhe acontecia. Nunca que nascesse para aprender com o látego. Também não lhe viessem com o sofrimento que redime.
Mas pensar em Dinorá não era problema. Descansou então o pensamento nela. E quando amanhecesse ele sabia que ela voltaria e a veria entrar no quarto. Se não estivesse doente voltariam a se amar com frêmito e alvoroço constante como até então fizeram. O que o consolava era que ele ia melhorando depressa e tinha aquela para ser com ele. Venha à manhã que sucede sempre à noite. Voltou a pensar que se pudesse dormir teria a tranquilidade necessária para não ver o passo lento das horas que se imobilizam num hospital onde a paciência é a virtude transcendente.
Só se ele adivinhasse as horas. Olhou a lâmpada fosca que não chegava a iluminar, reverberava nas paredes. Chegou a perceber ondas de luz vagando no espaço. O vento é quem sopraria estas ondas opacas para fora. Mexeu-se na cama, afastou-se até a beirada. Poderia com um esforço porque tinha vontade de urinar. Gozaria com o líquido escorrendo dele e o som da água espessa na privada branca. Mas não se pôde explicar como de repente não teve mais coragem para o ato e a vontade passou.
Insistiu que se pudesse dormir. O ar era impuro e ele só respiraria o quanto lhe fosse necessário. Recostou-se no travesseiro e procurou pensar que se fosse um balão cheio de ar não chegaria a subir porque atingiria o teto e ficaria preso entre as rachaduras e as manchas de sujeira das moscas. Há toda uma matéria se purificando e se amalgamando em camadas de grosso limo em qualquer lugar preso no tempo ou asfixiando-se aonde não chega nenhuma ponta de sol.
É que ele também ia perdendo o brilho e com pouco não teria como irradiar nenhuma outra luz. Consolou-se com o pensamento de que Dinorá chegaria como uma manhã nova e então ele compreenderia que o tempo mudara-se e se concebera como forma clara lá fora, no meio-dia definido e exato. Fechou os olhos. Eram os olhos que lhe ardiam. A febre evaporara-o. Tinha sede e um copo d’água era uma salvação num deserto. Mas ele era obscuro até mesmo para si mesmo. Teria que decifrar suas próprias palavras e aclarar suas próprias ideias.
Os olhos ardiam e a boca era seca e a língua era uma pasta amarga. Como dormir sem pensar na insônia? Respirou, mas o ar, ele sentia-o, era impuro e intragável. Ar áspero, rarefeito, eram crostas de cristais nas fossas nasais, nos alvéolos. Se ele só pensou que ficaria bom é porque não tinha como negar o que lhe sucedera era uma síncope.
Mas se ele continuasse pensando nunca chegaria à tranquilidade do sono. Pensou assim e acomodou-se aos lençóis e ao travesseiro. Iria reverter-se numa pessoa que se reconcilia consigo mesmo e chega à paz interior onde há sono e comodidade d’alma. Ousava se transfundir em um homem que acredita na sua própria calma. Mas de repente esqueceu o que vinha pensando e ele nem precisou crer que o sono vinha-lhe.
Veio-lhe o sono, com efeito, pois quando acordou era outro dia, pois foi o que concluiu quando sentiu a presença elementar de uma camada de ar renovado no quarto. Pensou já amanheceu e tinha amanhecido mesmo.
A primeira coisa que ele pensou quando voltou a acordar foi que tinha sede porque sua boca estava seca e sua saliva era uma crosta de linfa pregada na sua língua. Teve náuseas e pensou que não reteria nada dentro de si, que verteria tudo, primeiro viraria do avesso expondo todos os órgãos no chão do quarto. Quando a enfermeira entrou ele estava reclinado para baixo da cama e se tinha putrefato de merda.
Só quando o limparam é que ele sentiu que era humano. Como pôde? Mas não quis saber disto porque era um vexame. Encolheu-se na cama e esperou. Com a atenção parada procurou não ouvir nada. Assim ficou até que a viu entrar.
__Então você melhor – ela falou.
__ ...
__ Acredite o médico quem fala.
__ Pra você – ele falou.
__ Muita manha – ela disse.
__ Engoli um caminhão com o tanque de óleo diesel.
__ Efeito – ela disse.
Ele acreditou. Não era para descrer disto. Quando estivesse melhor? Completaria o tratamento, os pais mandavam. E Dinorá? Ele ia, mas ela que não podia. Sem ela, Dinorá ficava. As aulas não paravam. Ele naturalmente descontinuava o curso. Até que acabasse. Acaba, doutor? Pode acabar se o tratamento completo. Ele um jovem, muita vida, bons pais. E tinha Dinorá. Ela que era a dedicação. Como tinham vivido cúmplices nos últimos tempos. E entre eles tinha nascido aquela erva promíscua que haviam desfrutado com ardor e brutalidade.
__ Eu vou e você fica – ele perguntou.
__ Até você estar bom – ela disse.
__ Então não é para sempre – ele perguntou.
__ Eu não disse para sempre. Estarei aqui.
__ Naturalmente você acaba o curso.
__ Naturalmente – ela disse.
Muitos anos depois quando ela ainda se lembrava dele, Dinorá pensava como a vida passava ao longo do transigir do tempo. Ela que tinha se realizado, mas não era constantemente feliz porque reconhecia as falhas do amor, mas nem isto também, não era feliz porque mesmo a constância das coisas traria em seu bojo a insegurança e o vazio substancial. Assim ela contemplava seus alunos longamente num silêncio superior e bruto. Mas sorria para si e continuava vivendo.
Quanto a ele, efeito do tratamento – ficou bom e não precisava mais ser bacharel. Então era homem e fodeu a prima que ficou grávida e o filho era dele, mas os dois conversaram e ela abortou e tudo continuou bem.
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