Tentações de uma virgem
__ Maria traz meu rosário – a mãe pedia.
Levava o rosário de contas de vidro.
__ Maria, meu livro de horas – a mãe queria.
Levava-lhe o missal aberto na página de Santa Rita, vencedora da causa impossível de tê-la curado da furunculose nas nádegas.
__ Maria meu remédio, meu chá de alho, minha balinha de goma, meu café preto, meus biscoitinhos de polvilho.
Maria limpava, Maria brunia, cozinhava, lavava toda a roupa. Maria a escrava da casa. A mãe entrevada, dela nunca mais livre. Dona Lídia que era a mãe. Maria quem ficou pra tia. As outras irmãs sururinas livres. Seus maridinhos bons, seus filhinhos encatarrados, seus almocinhos de domingo. Só ela, Maria, a vítima imolada.
__ Mamãe com você Maria, não queira homem, trabalho em dobro – a irmã quem falava.
__ Essa casa sua Maria, mamãe morrendo ninguém reclama – e era o irmão quem concedia.
__ Se não fosse você Maria quem por Dona Lídia – se indagavam os vizinhos.
Mas ninguém por Maria. Sua vida que se acabava e depois ela que seria velha para sempre. Onde Gilberto noivo ingrato? Assim a vida de Maria nem sempre tinha sido esta de se cozinhar em fogo brando no purgatório da mãe paralítica.
Um dia Maria foi esperança. No ginásio era destaque. No colegial a melhor da classe. Seguisse pro normal quem sabe depois professora amiguinha dos alunos?
Mas aí foi que o pai morreu. Dona Lídia nenhum plano pras filhas. Bom que aprendessem as coisas de casa, sempre poderiam casar e com marido e filhos não se brinca.
Ana não quis, era a filha rebelde. Via crucis da mãe. Maria a mais velha era docilzinha, Dona Lídia explorava-a. Maria aprendeu a segui-la. Geraldo era o homem, glória da maternidade. Com ele prosperou a firma. Lucinha, essa a mãe nem contasse, com dezenove anos perdida pelo André.
Quem casou foi Lucinha com o André mesmo, Ana com o homem que ela quis escolher, Geraldo com quem a mãe propôs e Maria nem não casou. Teve o Gilberto que namorou e foi o noivo.
Foi no tempo de Maria com vinte e nove anos, a sua última esperança. Mas o Gilberto anoiteceu e não amanheceu. Melhor que não chores Maria, quem vive sozinho melhor do que em muita má companhia. A camisolinha de lua-de-mel picotada com tesoura glabra. O destino quis isto, seu corpo de Jesus.
Os dias e os anos fez o trabalho. Maria era uma flor escondida. Foi assim que a mãe precisou dela. Queda no pátio, fêmur partido. Teimosa com os vasos de manjericão. Descuido e assoalho molhado. Quando Maria chegou da missa ouviu que era silêncio. Onde a mãe que não perto da janela fazendo rosas?
__ Mamãe!
__ Pisei falso, Maria.
__ Com a senhora nem Deus no altar.
Depois disso a mãe paralítica. Dona Lídia muito gorda e nervosa, andar nunca mais. A perna sem força pra tanto peso assim. Cadeira-de- rodas agora. Ela quis? Não e nunca. Quando se cansava da cama –Maria, me bota sentada. Quando doíam as nádegas – Maria me leva pra cama. Cansada do quarto – ó Maria quero ver a rua pela janela. O dia era claro – Mirinha estou sem cor nenhuma.
Deus permitia isso dela ser a mártir. Pagava os pecados. Mas pagava pecados de quem? Nunca ela nada com Gilberto. Tinha coisas que ela fazia, mas era sozinha e não deliberava fazer. Eram sempre coisas que aconteciam com as suas mãos. A água escorria nas gretas e era assim que ela vinha sendo feliz. Nenhum pecado aparente, pois ainda conservava sua flor. Quem Deus para saber disso? Ela nunca que fizera com a luz acesa. Guardava silêncio, pra que dizer o que nem ela pensava sempre?
Se Deus era contra sua jardinagem a livrasse das mãos ou a fizesse maneta. A mãe era o madeiro e era a coroa de sarças. Melhor pra ela, assim não tinha mais que padecer com Berzebu. Ela, santa Maria aureolada, direto para os campos do Senhor.
Foi Geraldo quem lembrou o que acontecia:
__ Então Mirinha, cinquenta anos menina!
Olhou-o com arzinho de lástima, ficou pra ser sempre o filhinho da mãe, protegido, bubuiado.
__ Você nossa fortaleza – sem você nem mamãe, nem nós, mana!
De nada, não tinha que agradecer. Ela sangrava para eles viverem. Fossem felizes. Maria recebeu o palavrório de apoio dos manos, mas não tinha nenhum orgulho de sua vida. Que vida? Ela pensou. Falava como se tivesse uma vida. Já teve uma, muito breve, um fruto esperando ao sol. Depois, depois foi isso.
Então essa era a noite dos seus cinquenta anos? Uma velhota no claustro. Seria agora rezingona com um terço na mão. Abriu os olhos dentro do escuro. O quarto era um grilo escondido sob um móvel. Ouviu-o. O grilo era frio e expandia a treva. Voltou-se para dormir. Não achou sono. Sentou-se na beirada da cama. Ouviu mais. Ainda era o grilo. Ouviu com mais cuidado. Era a mãe que roncava no quarto ao lado. Descobriu que tinha sede. Procurou as chinelas. Achou-as, calçou-as, ergueu-se. Caminhou pelo quarto silenciando o grilo. Abriu a porta e caminhou pela casa. Dentro da penumbra o movimento dos ponteiros do relógio. Caminhou até lá, ele suspenso na parede da cozinha. Observou-o. Eis o dono de Deus, dos homens e das mulheres medrosas. Olhou-o com mais força até se cansar de pensar no tempo. Não bebeu a água que se propunha. Voltou a caminhar pela casa. Parou diante do aparador e consertou um molho de rosas artificiais num vaso de louça branca. Era o que lhe faltava, perder para sempre o sono por causa de um viático. Voltou a consertar o ramo de rosas artificiais. Propôs-se voltar pra cozinha e beber um longuíssimo copo d’água. Cansou-se de si, das flores e de estar acordada no meio da noite. Caminhou pela sala. Postou-se diante da janela. Abriu-a. A lua era um minguante cambiante e pálido. A noite era uma madrugada sufocante que soçobrava-a. Fosse antes ela não deixaria que toda a sua vida corresse como um regato para um tanque de água parada. Não, essa comparação não servia nada. A sua vida era mesmo era uma semente morrendo dentro da terra seca do deserto areento. Era uma comparação que também não servia pra nada. Até sobre ela mesma equivocava-se. Melhor estaria na sua cama. Se viesse sono, seria um refrigério, lá teria conciliação. Foi o que pensou, mas não pôde ir logo, vinha um homem pela rua. Era um homem sozinho. Era um preto. Não vinha pela rua, vinha pela calçada. Maria recuou para o resguardo da treva da sala. O homem não a via, era ela quem o via. Ele parou sob o poste olhando para as casas do outro lado da rua. Era um ladrão. O coração de Maria tinha parado. Não era um ladrão. Era só um homem, quase um jovem. Menino não era nunca, essa hora não há meninos na rua. Era um homem que passava. Então ela pensou que quando o homem acabasse de passar na frente da casa dela, ela fecharia a janela e voltaria pro quarto. Mas ele estava parado e quando voltou a mover-se foi para virar-se pro lado onde estava Maria. Ela adivinhou o que era e seu coração voltou num tumulto. E o homem pôs-se a urinar grosso e compassado ao pé do poste. Touro vadio. Maria quem via. Água das fontes, termo de todas as sedes. Ouvia manar a água, bátegas no pavimento da calçada. Chuva loura e clara. Quando ela pensou que ele tinha acabado surpreendeu-se com o jorro longo que lavou todo o pavimento iluminado. A água escorrendo espumosa. Ele acabou, mas não se guardou logo, manteve-se exposto, feliz, olhando a lua baça, sem pressa, exposto e feliz. Quando voltou a si vinha um cão e ele conteve-se. Recompôs-se e desceu a rua. O cão o seguiu. Maria reclinou-se para fora da janela, o viu caminhando, entrando no beco, sumindo. Aspirou o ar da noite, recuou pra dentro. Fechou a janela e caminhou para a cozinha. Encheu um espesso copo de água e bebeu-o com voracidade. Depôs o objeto na pia, voltou para o quarto. Antes de entrar e fechar-se parou no limiar da porta. Ouviu se a mãe respirava. Surpresa por algum momento, mas logo a ouviu ressonar no quarto ao lado. Entrou no seu aposento e deitou-se imediatamente na cama. Quando enrolou-se com os lençóis Maria ardia em febre.
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