segunda-feira, 13 de julho de 2020

CONTO -AMOR

Amor

         O céu era azul e parado quando ela viu pela janela e a tarde também era uma imóvel quinta-feira. Estava em pé no meio da sala e olhava para fora. Lá fora sob a sombra das amendoeiras da praça um velho, dois velhos, um homem sentado, um cão. O mundo ardia. O apartamento ardia. O calor era outubro. Manchas de óleo no asfalto. Ela era mulher e não tinha nenhum ofício precípuo para cumprir naquela hora. Estaria assim tranquilizada pronta para si mesmo até que se cansasse de ser uma ideia no seu pensamento. O seu maior temor já se lhe impusera e agora ela não tinha fronteiras, podendo verter-se por bordas, margens e escoadouros. A mulher era um ser totalmente reverberante, como as rosas aos molhos, como as madressilvas num muro baixo. Se não estava cansada era porque prepara-se com a força tonante de um ser feminino para caminhar durante todo aquele pisando nos recantos do caminho. Evitara assim os areais, os pedrouços e os abrolhos e chegara ao cume das coisas com o esforço de seus braços, pernas e sentidos ativos. Acreditava no seu poder e assim crendo em si ela era a maior rocha que podia conceber-se irremovível para sua própria força. Afastou-se da janela e aproximou-se do balcão da cozinha onde Ana permanecera calada aguardando-a. Ana estirou-se no banco. Inclinou-se para trás no espaldar. Ela passou perto da amiga postando-se na entrada da área de serviço.

         __ O que é que podemos fazer? – perguntou ela encostando-se a parede e olhando os pontos de fezes de moscas na luminária do teto.

         __ Está quente, muito abafado – respondeu-lhe a amiga.

         __ Que tal uma cerveja? – ela propôs.

         __ Está aceito – Ana falou.

         Atravessou o cômodo exíguo e retirou da geladeira uma cerveja preta. Apanhou duas taças na cristaleira e serviu.

         __ Você toma preta? – perguntou à amiga.

         __ Não importa.

         Beberam. A cerveja reconfortou sua sede e ela sentiu como se estivesse aplacando-se por dentro. Ana era a única pessoa que sabia dela, pois nem com as irmãs ela poderia contar.

         __ Você parece decifrada – Ana falou.

         __ Acho que fui mesmo – ela sorriu.

         __ Como é que é ser esfinge?

         __ Não é – ela respondeu.

         __ O médico soube logo? – Ana era curiosa ou amiga.

         __ Tinha que saber, é o trabalho que ele assumiu. Não procurei outro porque eu sabia que este não tinha medo.

         __ Mesmo sabendo que é um crime.

         __ Eu sabia logo que era. O médico não tinha que me ensinar ou repreender nada. Não sou criança. Hoje tenho 29 anos. Escolhi o que queria.

         __ Você sempre foi assim livre – Ana falou.

         __ Não, nunca. Assumi minha liberdade porque não tive escolha – ela parou de falar e ficou olhando as gotas de água que havia se agrupado no vidro da taça. Ana viu-a distraída e bebeu mais da cerveja.

         __ No começo eu chorava, não queria essa vida que tinha. Havia quem tinha pai, quem tinha mãe, quem afinal tinha uma família e detestava. Eu sempre quis foi ter tudo isto. – Sônia falou pra Ana. Tomou a taça nas mãos e a sentiu molhada. Ia levá-la a boca, mas conteve-se. Olhou o líquido dentro da taça e devolveu-a para a mesinha. Não voltou a falar até quando Ana acabou a cerveja.

         __ Minha vida sempre foi isto. Não tem surpresas. Eu escolho e sei o que escolho e pronto. Sônia disse e fixou o olhar na borda da mesinha de centro. Distraiu-se, não pensava. Estava vazia.

         __ Há sigilo suficiente? – Ana quis saber.

         __ Creio nisto. O Dr.... não é burro. É um profissional. A lei não paga seus empréstimos, seus financiamentos, a pensão da mulher.

         __ Roberto quando soube – ainda Ana.

         __ Tudo certo com ele. Falei: vou abortar o teu filho. Acabou aí. Ele sabia que eu faria isto. Já fiz vários. Todos filhos dele. Quando escolher um filho de Roberto, seremos uma família.

         __ Você fala que não é livre – Ana questionou.

         __ Não sou livre porque não escolhi que o seria.

         Ela pensou que Roberto era a sua sombra. Ana não compreendia como amar uma pessoa sem comedimento e com surpresa geral. Ana era uma mulher que se apropriava do fruto e o comia em pedaços separando a casca e as sementes. Mas para ela esse modo de viver era um impasse e não a acalmava nem tampouco lhe aquecia a alma. Tomou a taça e bebeu um gole grosso e compassado de sua cerveja. Ergueu-se e foi trazer a garrafa para servir mais à amiga. Serviu-a e serviu-se também. As duas ficaram caladas. Concentravam-se respectivamente na mesma ideia. A cerveja era um líquido agradável numa tarde de calor sufocante.

         Quando voltaram a falar foi Sônia quem começou:

         __ Eu não pude parar de pensar foi em nossa vida.

         __ Minha vida ou a sua?

         __ A nossa. Tanto faz né?

         __ Você sempre foi melhor do que eu nesse negócio – ponderou Ana.

         __ Fui mesmo, mas nunca me deixei crescer sobre você.

         __ Eu amo. Você ama – perguntou Ana.

         __ Deixei o amor pra você.

         __ Muito generosa – Ana falou olhando-a de frente.

         __ O que eu queria do amor eu tenho em Roberto. Um noivo.

         __ Você se lembra como agente fazia?

         __ Ainda lembro. Duas meninas. Não era?

         __ E o Pedro e Juninho e a Lígia – Ana disse.

         __ Isso mesmo. Era uma família.

         __ A família e as visitas da família.

         __ A brincadeira acontecia no quintal – Sônia lembrou.

         __ Era no quintal sob a mangueira. Acontecia de tudo.

         __ Por que o Pedro – Sônia perguntou.

         __ Foi loucura. Você gostava dele?

         __ Eu gostava dele depois de um tempo, quando a gente deixou de ser criança.

         __ Gostou dele até quando – Ana que queria saber.

         __ Foi até o tempo que eu fui estudar. Depois aconteceu tanta coisa. As coisas acontecem e nós vamos com elas. É aquela história das águas sempre novas de um rio.

         __ Você ainda fez com ele?

         __ Fiz. Acho que fui – disse Sônia.

         __ Acontecia tanta coisa – Ana pensando.

         __ Crianças quase – disse Sônia.

         __ Pedro era imoral. Você achava?

         __ Era – disse Sônia.

         __ Você queria ele?

         __ De certa forma por um tempo.

         __ A vida dele acabou quando o carro – Ana relembrou.

         __ Soube quando você me contou. Eu nem pensava mais nele, mas um dia a gente sempre reencontra quem está no nosso passado.

         __ Para que mesmo isto não é – Ana perguntou cruzando as pernas.

         Sônia bebeu o resto da cerveja da taça, ia depô-la na mesa de centro quando propôs à amiga.

         __ Mais uma cerveja?

         __ Sempre – Ana disse.

         Quando Sônia voltou com a outra garrafa e encheu as taças Ana levantou-se e foi ao banheiro urinar. Sônia bebeu um gole do líquido espesso sentindo-o regelá-la como uma pedra sob uma manhã fria. Recolheu as pernas e apoiou-se languidamente nos braços do sofá meio reclinada de lado. Ajeitou a saia do vestido nos tornozelos. Fechou os olhos e concentrou-se nos coágulos que subiam e desciam dentro de sua treva. Estava imensa, ela era imensa. Sempre fora uma pessoa com o coração regalado. Pensou nas irmãs para concluir que era bom não ter muita intimidade com a família. Amava-as, mas entendia que melhor do que isso era a conservação do afeto das distâncias. Quando fossem as férias, ela as veria, cada uma presa às suas pequenas vidinhas. Abriu os olhos e viu Ana postada na frente dos basculantes. Assim ela lhe tapava o sol. Como estava com a taça nas mãos bebeu metade do que tinha nela. Ana voltou a sentar-se.

         __ De modo que estamos fodidas – Ana disse.

         __ É – Sônia falou.

         Ficaram em silêncio. Sônia pensou numa inverdade. Pois não era verdade que ela acreditava que pudessem sair ilesas daquele impasse, mas o impasse era a própria vida delas. Como uma mulher se sobressai coberta por toda a vegetação que crescia sobre seu corpo? Era imprescindível que cada uma delas pudesse desbastar-se e recolher a uma forma concisa de ser. Quanto se lhes exigia sem pensar que elas eram como estrelas se apagando numa longínqua distância fria. Essa forma de pensar abstrata e incorpórea dava-lhe os limites crescentes de que ela carecia para não revelar-se insidiosa e parada olhando a rua. Nas férias o banho de mar a salvaria, ela voltaria a sentir a salmoura da água marinha na sua pele e nas espáduas. Viajaria até o mar como sempre, não para encontrá-lo, mas para poder contemplar a indômita incerteza das ondas. Ana reclinou-se para frente e ela ia ampará-la. Não precisou, a amiga voltou à sua haste, abaixara para pôr a meia em ordem.

         __ Você almoça ou mais cerveja – Sônia perguntou.

         __ Mais cerveja, vamos beber que temos direito.

         __ De modo que hoje não trabalha.

         __ Sim, hoje sou improdutiva – Ana falou.

         __ Podemos celebrar então – Sônia disse.

         __ É – Ana aceitou.

         Abriu a geladeira e tirou outra garrafa de cerveja. Serviu-se, serviu Sônia.

         __ Ao morto antes de nascer – Sônia disse.

         __ A este que é o mais feliz – Ana falou.

         Beberam. Sônia estava relaxada e compreendia que a vida crescia dentro dela como hera trepadeira. Esticou o braço para diante de si e analisou as carnes do membro com uma atenção descuidada. Se acontecesse de perder aquela parte do seu corpo ela sabia que se regeneraria como uma salamandra.

         __ O que temos para pensar – Ana perguntou.

         __ A arte de não ter que pensar – Sônia falou.

         __ A cabeça cansa e tomba.

         __ Cabeças rolantes que percorrem campos, desertos, praias, grotões.

         __ As cabeças rolantes do mundo – Ana propôs.

         __ Cabeças rolantes ocas e vazias com dois olhos e deixando os dentes nas pedras – Sônia brindou.

         Beberam e estavam felizes porque não eram duas mulheres tristes, vivendo uma vida que se acabava todo dia. Ana pensou que precisava ir pra casa. Sônia tinha vontade de dormir, mas achava que teria medo do sono sozinha.

         __ Vamos comer alguma coisa – Sônia falou.

         __ Eu não sei se eu gosto de comer – Ana disse.

         __ Comeremos o que for possível.

         __ Ainda podemos beber.

         __ É – Sônia concordou.

         __ O que faremos então?

         Sônia levantou-se do sofá. Esperou um instante, em pé, parada, para verificar as próprias forças. Estava pedrenta, mas a cerveja não lhe impusera nenhum estado de unidade aparente.

         __ Vamos caminhar lá fora – falou pra Ana.

         __ Respira-se muito o ar da tarde, aceito.

         __ Seguimos pela avenida até o parque municipal, o sol nos tocará com sua virilidade feminina e seremos quem sabe? Duas flores murchas secando num vaso de barro. É como o amor que morre para renascer em outros canteiros, entre novas raízes.

         __ Você acredita na vida – Ana perguntou.



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