domingo, 1 de dezembro de 2019

CONTO: A Morte Eterna



A morte eterna


         EU NÃO ACREDITAVA que realmente fosse verdade, quando agente pensa e descobre que temos medo procuramos logo inventar uma forma de não acreditar, mas também inventamos uma maneira de acreditar que nos ajude a superar o medo daquilo que nos faz tremer e perder o controle.
         Por isso eu realmente me recusei a acreditar que fosse verdade, mas hoje, tanto tempo depois que morri, não tenho motivos para não acreditar nesse fato tão evidente e claro. Eu seria bem mais do que um tolo se continuasse pensando na morte como um vivo pensa. Para mim mesmo hoje, parece bem absurdo que um homem que está vivo fique pensando na morte.
         Essa tarefa é unicamente minha, um homem que morreu, porque naturalmente não cabe aos que vivem concluir algo sobre a morte, eles absolutamente nada alcançarão, ficarão muitas noites discutindo e gastarão muito papel descrevendo-a para afinal concluir que a morte não é evidentemente a morte, ou que a morte é uma espécie de metáfora, que chamarão de extinção da chama da vida.
         Muitos foram os sábios que já sucumbiram dentro desse vórtice, pesquisando a razão última da morte. Nenhum, entretanto chegou a perdoá-la. Nem o venerável Sócrates, nem o fescenino Epicuro. Quem a perdoaria? Nem o grande Aquiles a perdoou e eu também não a perdoo. Porque não há nada mais inútil no mundo. Nada. Nada. Nada. A morte é essa coisa tão gratuita e desnecessária que não chegamos a acreditar que nós estamos definitivamente mortos quando já não estamos mais vivos.
         Mas como disse, sou eu, um homem que morreu que vou fazer um relatório sobre a morte, espero que as academias aproveitem meus dados e que os muitos homens sábios façam o devido uso do que ora passo a fazer desde a eternidade da morte onde agora jazo preso.
         Não tem nenhum sabor de novidade esse meu relato, dirão os críticos, já outros mortos também o fizeram, o ilustre Brás Cubas abriu um sério precedente, antes dele também houve mortos que falaram da morte e também, como eram mortos inconformados falaram principalmente da vida que tiveram e precisaram largar.
         Eu não falarei da minha vida feliz, falarei da minha morte eterna. Falarei mesmo da morte superior, aquela que acontece quando não se é mais coisa nenhuma. Que é um morto senão a própria morte? Vou propor desde onde estou no fundo da minha sepultura, onde já fui roído pelos vermes, já apodreci e já fedi e finalmente fiz-me apenas ossos, feixe de ossos calcinados sob a terra, alguns dados referentes a essa matéria estranha a qualquer homem vivo, a morte eterna. Dados precisos é fato, pois que se trata de coisa papa fina, experiência real, conhecimento empírico.
         Acho que eu morri logo após o almoço. Não é que não me lembre como eu morri, é que as circunstâncias da morte é coisa que agrada mais aos vivos do que a pessoa que está morta. Como não é coisa que se possa voltar atrás não acho que eu deva ficar pensando nessa circunstância da minha hora extrema.
         Só sei que eu estava vivo depois que terminei de almoçar, também sei que estava vivo quando me sentei na sala diante da janela olhando pra rua. Fazia calor porque era de tarde e era uma tarde quente. Ainda lembro que era setembro, pois havia no horizonte uma copa amarela de ipê florido.
         Era de tarde porque me lembro que tinha almoçado e fazia calor, pois nem mesmo os cães estavam na rua. Quer dizer os cães não tinham desaparecido, mas fazia tanto calor que estavam retirados sob a sombra das platibandas ou dos fícus da rua.
         Mas talvez fosse setembro, repito que isto não é importante. O tempo cessa completamente quando agente morre. Nenhum morto precisa saber quanto tempo se passou desde a sua a morte por que quando estamos mortos estamos presos nessa coisa desesperadora que é a totalidade do infinito. Os vivos, esses se surpreenderam de que eu houvesse morrido tão de súbito! Houve os que afirmaram que tinha chegado minha hora, eram os que não estavam muito longe da verdade, posto que a verdade também não seja precisamente esta.
         Não chegamos mesmo a atinar exatamente porque é que morremos. Mesmo agora que estou morto, posso concluir com certeza de que minha morte não foi programada, apenas morri naquela tarde porque tinha chegado minha hora. Mas creia que se eu tivesse morrido somente durante a noite ou ainda tivesse vivido muitos anos, ainda assim só teria morrido porque enfim minha hora chegara.
         A conclusão mais óbvia é de que toda morte é estúpida, mas uma vez chegada a sua hora não adiarás e providencialmente morrerás como quem não podia mais viver no mundo.
         É uma explicação que não explica nada e eu sei disso, mas mesmo depois de morrer eu não tenho outra. Quem acredita que na morte contemplamos a clarividência de toda a grande verdade mística que habita o universo inteiro, está mentindo para si mesmo, isto é, esse que assim pensa é apenas um homem vivo que faz filosofia imaginária.         Eu poderia ainda estar vivo, mas ainda assim não teria importância nenhuma se eu estivesse e morresse agora. A vida extinguiu-se-me e eu morri é o que posso dizer. Foi o calor quem me matou porque antes de morrer senti muito calor e meu corpo todo ficou lânguido e minha consciência se apagou para sempre.
         Parece que fiz esforço pra voltar. Num brevíssimo segundo ainda cri que poderia abrir os olhos, achar voz humana e gritar, acreditei mesmo que estava sonhando e que o líquido espesso e quente que escorria pelas minhas pernas era a água dos sonhos. Nunca mais acordei e nunca cheguei a voltar para a sala, toda a consciência esvaiu-se-me para sempre.
         Depois disso o que sei não são lembranças minhas. Um morto não tem consciência própria. Essa atividade do pensar não existe para quem como eu está morto. Tudo isso são ilusões dos filósofos, devaneios dos teólogos. Eu tive que aprender isto.
         No começo agente acha que é dono de uma razão, que a consciência é um campo vasto e clarividente. Primeiro vem à sensação única de que estamos às portas da totalidade da percepção e que a verdade sufocante finalmente ilumina o universo inteiro, mas logo o lodo e a lama se impõem e estamos afundando.
         Esse não é o naufrágio nos mares de água límpida, não é também o soçobrar de um navio batido pela borrasca tempestuosa de ventos e trovoadas. Tudo acontece com a cessação completa do concreto ato de estar num lugar. Não estamos mais em lugar nenhum e o que era material e certo para a consciência e possível até para as mãos, torna-se fluído, impalpável e logo ponto impróprio onde apoiar o pensamento para reter a existência.
         Cada coisa que antes existia tão naturalmente e sem nenhum empecilho fora de nossa mente, para de existir na nossa mente e de repente não existe mais em ponto nenhum das galáxias. Mesmo o maior esforço da razão para conceber essas existências que impusessem ao mundo minha própria existência não alcançou sucesso. Eu estava morto e não tinha mais propriedade material neste mundo.
     Então o brevíssimo raio que cortou as estrelas apaga-se e estamos presos na treva imensa que se abate sobre as muitas camadas dessa noite eterna. Precisei me acostumar com isto. De repente o que havia era só o infinito, uma eternidade que jungia todo o meu não-ser. Eu não existia, mas tinha a sensação de que isso não era verdade. Que eu estava dormindo e tinha sonhos perturbados.
         Mas eu sabia que estava morto e que não havia mais nenhuma esperança para mim. Então tratei logo de me conformar com a minha novíssima condição não existencial. Precisei me habituar a minha nova natureza. Eu não era pássaro, eu não era pedra, sabia que tinha morrido, esses eram pensamentos claros em meus ossos, esqueci de dizer que um homem morto pensa principalmente com os ossos.
         Eu tinha morrido e conhecia os rituais da morte. Primeiro veio à constatação muito evidente de que eu não vivia mais. Eu vivera e tinha morrido com setenta e um anos, fora uma longa vida para quem como todos os homens, nascera pra morrer. Não importa como eu tinha vivido, importa como estando morto tive de me acostumar a esta indubitável verdade do não-ser.
         Vestiram-me morto, cobriram-me de flores, puseram-se no caixão. Vi para cá muito paramentado. Coisa muito ineficaz, eu poderia ter vindo nu que o resultado final teria sido o mesmo. Como um homem morto eu teria que permanecer preso ao chão onde me sepultaram, não tinha como fugir. Então nem me mexi, onde me puderam eu fiquei. Metros de terra abaixo, o solo inteiro sobre mim pesando sobre o frágil tampo de madeira do caixão.
         Aí a natureza fez o seu trabalho específico.
         Primeiro as flores que me puseram murcharam e finalmente secaram. Eu não seria um morto incorruptível, a terra quente do Socorro estava sobre mim e eu já sentia todos os vermes que eu trouxera da vida fermentando dentro das minhas entranhas, logo eles estourariam meu ventre e me roeriam por fora.
         Transformariam com seu diário trabalho de decomposição meu corpo numa pasta de carne apodrecida em líquidos nefastos e finalmente em bom repasto para suas feéricas mandíbulas.
         Fui consumido vorazmente. Isso absolutamente não me constrangeu. O que me inquietou no começo foi o fedor que exalei enquanto os vermes me comiam. Eu não queria feder tanto. Mas fedi como um cão atropelado. Felizmente fedi sozinho, não houve testemunhas dessa minha grosseria à humanidade.
         Antes de uma semana eu já estava acostumado a feder e absolutamente não impus resistência aos grandes operários das ruínas. Então quando eles terminaram seu trabalho prepararam-se para sair, mas como tinham vindo comigo para aquela longuíssima viagem não havia igualmente saída para eles. Eu não precisava de alimento, pois um morto se consome, mas meus ilustres companheiros de última jornada eram vorazes e sem alimento foram perecendo.
         Morreram aos enxames e aqueles que morriam logo eram comidos pelos que procuravam resistir, mas estes também não resistiram ao último assalto da fome e enfim também morreram e quando não havia mais nenhum verme que me roesse foi então que me senti absolutamente sozinho. Agora o que eu era? Apenas ossos no fundo do caixão envoltos nos trapos gordurosos que fediam.
         Acostumar-se a solidão da morte foi o que precisei fazer em seguida. Outros mortos haviam sido sepultados em outras covas pelo cemitério, mas uma coisa que logo compreendi quando morri é que a solidão do morto é absoluta e impenetrável! 

         Vivos andarão sobre a terra do cemitério, mas para o morto isto se revelará inútil. Outros mortos habitarão a mesma sepultura que ele, mas nenhum saberá da proximidade do outro. Os dois estarão completamente sozinhos, nenhuma voz humana chegará até o fundo da sua cova. Também não há diálogo dos mortos, nós que estamos mortos somos constrangidos ao interminável solilóquio com os nossos próprios ossos. Toda uma não existência profunda, irracional e amorfa é o que temos quando estamos morremos.
         As noites não se sucedem e os dias não vêm após a sucessão de noites. São tantas camadas de noites e trevas que mesmo se pudéssemos revolvê-las com as mãos não chegaríamos nunca a encontrar uma fenda por onde vislumbrar uma fresta de fraca luz. O silêncio é tão profundo, tão profundo e espesso que comprime nossos ossos e esmaga a tampa do ataúde em que nos conduziram ao cemitério. Aqui nem o som da nossa própria voz seria audível. Nem mesmo os pensamentos se os tivéssemos por cá seriam ouvidos.
         Assim, como não temos consciência parece que estamos rodando dentro de um velocíssimo redemoinho sem vento cujo espaço faltasse. Isso, para o morto não existe o espaço, não existe o tempo e suas mãos estão postas, mas não foi ele que as pôs assim, seus olhos secaram ou foram comidos. A morte é assim um longo desespero, quem está aqui nada é, e como não é e não existe como idealidade nem tampouco com um nome específico. O morto não tem nome. Quem o chamaria pelo nome? Abate-se sobre nossa não existência substancial uma primordial e nefanda eternidade do nada.
         Tudo plano, nada convexo ou côncavo, nenhuma gradação, apenas a impalpabilidade de não existir, de metafisicamente não-ser, de estar nulo, completamente sucumbido a imaterialidade absoluta, a totalidade infinita da plenitude do vazio e a certeza última e inequívoca de que estamos sempre caindo, mas não chegaremos nunca a parar de cair, porque não havendo espaço impossível saber se estamos caindo para baixo ou sendo arremessados para o alto, porque sem o tempo não podemos contar o intervalo da queda ou do arremesso, conforme for caso.
         Quando morremos nos convertemos na própria morte, somos isto, somos precisamente isto, a morte. Assim quando falo da morte, falo de mim mesmo. Deste lado de cá do não-ser, e assim eu que estou completamente morto e nada sou, que infinitamente nada mais serei, falo do lugar onde nenhum sofrimento atroz ou embriagadora felicidade nos alcançará!

         Carlos Souza

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