domingo, 22 de dezembro de 2019

CRÔNICA - A SESTA DA TARDE



 A sesta da tarde

         O SILÊNCIO JAZIA imóvel sobre os pratos do almoço acabado, era a tarde que começava. Carlos sentou-se sobre a cadeira. Pensou em quê? O sol. O sol que estava sempre lá enquanto a Terra fazia o seu carrossel. Pensou em quê? O pai. Mas tinha medo do pai. Pensou em quê? O menino. Então ele era um menino que não era feliz.
         Olhou as coisas paradas mergulhadas no silêncio completo. Nenhuma sombra na imobilidade geral da tarde. Agora ele não podia mais brincar. Agora precisava percorrer todo o país do tédio até que o avô estremunhasse acabando a sesta. Se pudesse respirar sorveria todo o ar em volta para dentro dos seus pulmões. Contentou-se apenas com a respiração natural que lhe garantia o mínimo de vida.
         E se procurasse descansar de brincar? Mas como descansar se estava sufocando dentro dele? Principalmente não havia como descansar de brincar porque ele era um menino. Fechou os olhos e contou cada um dos ladrilhos que se estendiam diante de seus olhos abertos. Parou sem terminar, pois se perdera no meio desse labirinto de desencanto. Abriu os olhos e viu diante de si uma mosca que voava no espaço vazio.
         ─ Quem a trouxe aqui?
         Sua voz agitou o ar e ele quase se arrependeu de continuar. Como o recomendado, fez silêncio. Durante certa hora da tarde era preciso andar pela casa como os móveis: tristes e parados. Havia uma lei tácita que se estabelecera e ficara para sempre guardada no alto do armário. Era a hora da tarde que o avô dormia e não havia como desfazer isso.
         Passou a mão na testa para enxugar o suor que se acumulara sobre os cílios. Ele sentia o incômodo das mãos paradas. Pôs cada uma delas numa posição. Em cima da mesa não dava, podia sentir a materialidade da madeira nos seus dedos e isto trazia desconforto à sua tenra alma. Pousou a outra no joelho. Também não pôde retê-la ali, pois compreendia que o sangue escorria pelo seu corpo e passava nas palmas de suas mãos. Estendeu-as para frente, livres, como dois frutos pendentes sobre o abismo, mas logo cansou os braços e recolheu-as sem nenhuma outra saída.
         Agora estava preso como um besouro dentro de uma garrafa transparente. Via a luz vasta e imensa lá fora, mas sem nenhuma saída chocava-se contra as paredes de vidro.
         Um raio de sol caia do telhado sobre o chão. Deitou-se ao lado dele. Era longo e frio e através dele via-se pó suspenso rodando na luminosidade visível.

         Então era verdade que lá fora o sol era intenso e estava completamente livre. Pôs a mão esquerda sob esse raio de sol, esperou que ele a queimasse para sentir como a sua pele preta logo estouraria em pequenas feridas lancinantes. Mas era um raio frio que fugira do sol e já não tinha a agudez das lanças solares que crestavam o mundo. Retirou esta mão e pôs a outra, depois se cansou disto e deitou-se de costas olhando o telhado.
         Cada telha unia-se a outra telha até completar o telhado inteiro e permitir que o sol não entrasse na casa e recolhesse a chuva para que ela não molhasse dentro de casa.
         E o avô disputava com os gatos o domínio sobre o telhado. Os gatos o percorriam e ele não os queria lá, então o avô jogava pedra nos gatos e os gatos deixavam buracos no telhado por onde passava o sol e eventualmente a chuva.
         Mas logo se cansou de pensar nisso porque eram pensamentos bobinhos esses que estava pensando. Cruzou as mãos sobre o peito e imaginou que pudesse ficar assim até que tudo acabasse. Mas como não acabou logo fechou os olhos para esquecer. Mas como não esqueceu nada abriu-os outra vez e viu a mosca voltando da sua viagem até Saturno.
         Seguiu-a até que ela pousou não soube nunca onde, mas compreendeu que ela estava próxima e sem esforço primeiro decidiu esquecê-la depois quis procurá-la. Finalmente não fez nem uma coisa nem a outra, apenas ergueu meio corpo e tentou olhar para o lado da sala.
         A luz procurava arrastar-se por baixo da porta que estava fechada. Havia uma enorme sombra parada na soleira. Pensou que poderia ir até lá, mas o avô dormia na sala, poderia acordá-lo se desse um encontrão na cadeira ou se pisasse em alguma aranha que estivesse arrastando-se ali.
         Sentou-se e recolheu a cabeça entre as mãos. Carlos era um menino que não tinha passarinho na gaiola para poder trocar a comida e a água quando não tivesse nada para brincar.
         Tudo isso que lhe acontecia era verdadeiramente culpa dele. Culpa dele mesmo. Quando pudesse sair iria até em baixo da mangueira e arrancaria as asas das mariposas que pousavam no tronco da mangueira, então ele ficaria feliz porque não seria o único que não teria asas.
         Pôs então a cabeça entre as pernas e começou a chorar, mas chorava tão baixo que seus soluços pareciam bolhas de peixes estourando na superfície da água parada.





domingo, 15 de dezembro de 2019

CRÔNICA - SELMA




Selma



 ─ HOJE NÃO DÁ, não quero mais caçar. Perdeu o sentido, não estou com vontade mesmo de fazer isso.
─ E você está com vontade de quê?
­─ Não sei. Menos pegar lagartixa, isso eu sei que não quero.
─ Então vamos fazer outra coisa.
─ Também não.
─ Eu ia propor pescar.
─ Viu? Também não quero isso.
         Os dois ficaram calados olhando as galinhas que corriam atrás das outras galinhas e era como se de repente eles tivessem brincado e acabado. O sol ardia na pele escura de Carlos e ele afastou as pernas para a sombra da platibanda. André permanecia imóvel olhando as últimas galinhas que passavam atrás das outras. Não aguentaria aquela coisa toda, mas antes de explodir André falou:
─ Vamos lá pra Selma hoje não tem ninguém em casa.
─ ...
─ Bobo você é.
─ ...
─ Vamos logo depois agente pesca.
─ O sol vai ficar quente.
─ Melhor assim, os peixes vêm do fundo beber água na margem.
─ Nunca ouvi dizer isso.
─ Eu estou dizendo.
         Carlos achou que André mentia, mas não tinha outro pensamento onde se amparar e ficou calado e como ele tinha ficado calado André compreendeu que tinha vencido e os dois se levantaram, limparam os joelhos e desceram o morro.
         A casa de Selma ficava em baixo, antes do rio e eles poderiam aproveitar e levar as varas de pescar com eles, mas nem se lembraram disso e desceram sem pensar mais nos peixes que pescariam.
         Desceram e atravessaram a estrada completamente parada sob o sol. Onde os bois que passavam? Há esta hora todos no pasto, outra vez só quando chegasse a hora de beber. Boi só conduzido por gente, e é por isso que segue o curso.
         Na frente da casa pararam. A porta fechada. Bater não era preciso. Dar a volta. Fizeram isso. Carlos viu uma lagartixa bem grande correr na parede. Subiu até a cumeeira. Não ter trazido o laço.
         André abriu a portinhola. Estavam no quintal. Porta da cozinha aberta. Só a parte de cima. Tinha gente na casa. Lá em baixo o riacho cheio de peixes e a água mansa parada, parada no meio da manhã.
         Selma lá dentro. Veio ver quem era. Mas como não sabia que eram eles? Empurraram a porta.
         Dentro da casa o fogo quase apagado. Selma não estava sozinha. Quer dizer não completamente sozinha. Sabiam disso. Carlos ficou atrás, mas seguiu André até a sala. Era a irmãzinha dela que estava com ela na casa. Os dois sabiam tudo isso. Veio então à decisão.
─ Quer fazer aquela coisa? Ninguém aqui, só minha irmãzinha.
         Os dois confirmaram o que queriam apesar daquela verdadeira empata.
         Sacrificar um pelo outro. Carlos aceitou a condição. Pelo amigo daria um braço. Haveria retribuição? André empenhado. Não fosse Carlos cobrar antes que ele pudesse. Os dois combinados. Depois seria a vez de Carlos e André se imporia a mesma condição.
         Ficou com a irmãzinha na sala. Os dois no quarto sobre a cama com lençol de retalhos. André seguiu-a.
         Na outra cama, a dos pais. Depois ela arrumava tudo. Cuidado a irmãzinha não vir lá da sala. Os quartos sem porta. Perigo não há. Brincando nem vai saber de nada.

         André ficou nu. O quarto na penumbra. Ele no meio do escuro. Selma pôs tolha na beirada da cama. Que a mãe não soubesse de nada. Dona Neném não volta. Que o pai nem pensar. Só meio dia em casa, ainda longe disso. Até lá tudo acabado.
─ Vamos logo. Tire a cueca.
─ Não vim de cueca.
─...
─ Não achei nenhuma.
─ !
─ Você quer que eu vá até aí?
─ Em pé não dar, mais alta que você.
─ Onze anos, eu homem.
─ Melhor começar. O almoço ainda.
─ Só quis informar.
─ Não me importo.
         André sentou na borda da cama. A palha do colchão chiando sob seu peso. O passo seguinte ele não sabia. Então ela pôs o seio pra fora da blusa aí ele adivinhou o resto.
         Sugou-o. Primeiro como um menino, só depois com avidez. Aprendeu de repente. Quando repetiu a ação já sabia o que fazer com os dois seios. Sem mordê-los. Só com a língua. Finíssima ponta da língua de uma salamandra.
         Não cheiraria mais a menino. Teria sangue de homem. O leite não verteu e ele compreendeu que aqueles peitos eram diferentes dos outros peitos onde pusera a boca e as mãos um dia.
         Prendeu-se neles, mas ela o fez parar. Aquietou-se indeciso. Teria acabado tudo? Preparou-se. A roupa no canto quarto onde ele tinha se despido.
         Mas não tinha convicção de que já havia terminado. Parecia-lhe que havia um resto de coisa. Como Selma lançou o corpo para trás obrigou-o a subir na cama para ampará-la. Não, não era necessário. Ela susteve o corpo com as próprias mãos apoiadas no colchão. Olhava para o teto onde as telhas coavam a luz do sol que iluminava toda a manhã. O menino parado indeciso. Tomou-o pela mão, conduziu-o. Baixou-lhe os dedos até o sexo. Estremeceu quando ele a tocou. André entendeu tudo e prosseguiu sozinho.
         Abraçaram-se sobre a colcha de retalhos costurada pelas mãos da mãe. Ela dispôs-se a ele. André ainda não sabia servir-se de uma mulher, mas ela reconhecia-lhe o esforço e onde ele não alcançava chegar ela o ajudava solícita.
         Também era importante não ficar imóvel quando as mãos poderiam fazer algum trabalho e colaborar na obtenção da felicidade. Reconhecia o esforço de André e como ele era um menino não poderia deixá-lo sozinho.
         Os meninos vinham e ela não os recusava. Eles suplicavam dela o amor. E ela gostava dessas súplicas nadando no fundo dos olhos dos meninos. Não se impedia de servi-los.
         Detestava o amor dos homens. O cheiro dos homens queimava-a por dentro e o amor deles a esvaziava. Queria que os meninos sempre a tivessem amado. Mas quando o tio veio os meninos ainda não sabiam amar e não teve nenhuma chance contra o bruto. Agora só com os meninos.
         O tio morto para sempre. Deus criou o cavalo e o cavalo pisou em cima do tio. Nenhum remorso porque Deus a protegera como ela tinha pedido a Ele.
         Mas André tinha acabado? Pobrezinho, apenas resvalando nas coxas. Ajudou-o ainda dessa vez. Tinham que acabar logo. O outro lá fora. A irmãzinha se lembraria dela e a procuraria pela casa.
─ Acabe.
─ Acho que já acabei.
─ ...
─ Acha que fizemos bebês? Ele quis saber por que sentia que uma corrente de água fria e morna havia percorrido sua espinha e ossos.
─ Acho que não. Posso saber se você acabou?
─ Pode.
         Ela olhou-o de pé no meio do quarto através dos dedos que tapavam seus olhos. Era um menino escuro que brilhava no meio da luz que entrava frouxamente pelas frestas do telhado. Acompanhou-o enquanto ele se vestia.
         Então viu-o sair com a camisa nas mãos. Aí estirou-se languidamente na cama, abriu as pernas para receber um pouco daquela luz enquanto esperava Carlos.


Carlos Souza

domingo, 1 de dezembro de 2019

CONTO: A Morte Eterna



A morte eterna


         EU NÃO ACREDITAVA que realmente fosse verdade, quando agente pensa e descobre que temos medo procuramos logo inventar uma forma de não acreditar, mas também inventamos uma maneira de acreditar que nos ajude a superar o medo daquilo que nos faz tremer e perder o controle.
         Por isso eu realmente me recusei a acreditar que fosse verdade, mas hoje, tanto tempo depois que morri, não tenho motivos para não acreditar nesse fato tão evidente e claro. Eu seria bem mais do que um tolo se continuasse pensando na morte como um vivo pensa. Para mim mesmo hoje, parece bem absurdo que um homem que está vivo fique pensando na morte.
         Essa tarefa é unicamente minha, um homem que morreu, porque naturalmente não cabe aos que vivem concluir algo sobre a morte, eles absolutamente nada alcançarão, ficarão muitas noites discutindo e gastarão muito papel descrevendo-a para afinal concluir que a morte não é evidentemente a morte, ou que a morte é uma espécie de metáfora, que chamarão de extinção da chama da vida.
         Muitos foram os sábios que já sucumbiram dentro desse vórtice, pesquisando a razão última da morte. Nenhum, entretanto chegou a perdoá-la. Nem o venerável Sócrates, nem o fescenino Epicuro. Quem a perdoaria? Nem o grande Aquiles a perdoou e eu também não a perdoo. Porque não há nada mais inútil no mundo. Nada. Nada. Nada. A morte é essa coisa tão gratuita e desnecessária que não chegamos a acreditar que nós estamos definitivamente mortos quando já não estamos mais vivos.
         Mas como disse, sou eu, um homem que morreu que vou fazer um relatório sobre a morte, espero que as academias aproveitem meus dados e que os muitos homens sábios façam o devido uso do que ora passo a fazer desde a eternidade da morte onde agora jazo preso.
         Não tem nenhum sabor de novidade esse meu relato, dirão os críticos, já outros mortos também o fizeram, o ilustre Brás Cubas abriu um sério precedente, antes dele também houve mortos que falaram da morte e também, como eram mortos inconformados falaram principalmente da vida que tiveram e precisaram largar.
         Eu não falarei da minha vida feliz, falarei da minha morte eterna. Falarei mesmo da morte superior, aquela que acontece quando não se é mais coisa nenhuma. Que é um morto senão a própria morte? Vou propor desde onde estou no fundo da minha sepultura, onde já fui roído pelos vermes, já apodreci e já fedi e finalmente fiz-me apenas ossos, feixe de ossos calcinados sob a terra, alguns dados referentes a essa matéria estranha a qualquer homem vivo, a morte eterna. Dados precisos é fato, pois que se trata de coisa papa fina, experiência real, conhecimento empírico.
         Acho que eu morri logo após o almoço. Não é que não me lembre como eu morri, é que as circunstâncias da morte é coisa que agrada mais aos vivos do que a pessoa que está morta. Como não é coisa que se possa voltar atrás não acho que eu deva ficar pensando nessa circunstância da minha hora extrema.
         Só sei que eu estava vivo depois que terminei de almoçar, também sei que estava vivo quando me sentei na sala diante da janela olhando pra rua. Fazia calor porque era de tarde e era uma tarde quente. Ainda lembro que era setembro, pois havia no horizonte uma copa amarela de ipê florido.
         Era de tarde porque me lembro que tinha almoçado e fazia calor, pois nem mesmo os cães estavam na rua. Quer dizer os cães não tinham desaparecido, mas fazia tanto calor que estavam retirados sob a sombra das platibandas ou dos fícus da rua.
         Mas talvez fosse setembro, repito que isto não é importante. O tempo cessa completamente quando agente morre. Nenhum morto precisa saber quanto tempo se passou desde a sua a morte por que quando estamos mortos estamos presos nessa coisa desesperadora que é a totalidade do infinito. Os vivos, esses se surpreenderam de que eu houvesse morrido tão de súbito! Houve os que afirmaram que tinha chegado minha hora, eram os que não estavam muito longe da verdade, posto que a verdade também não seja precisamente esta.
         Não chegamos mesmo a atinar exatamente porque é que morremos. Mesmo agora que estou morto, posso concluir com certeza de que minha morte não foi programada, apenas morri naquela tarde porque tinha chegado minha hora. Mas creia que se eu tivesse morrido somente durante a noite ou ainda tivesse vivido muitos anos, ainda assim só teria morrido porque enfim minha hora chegara.
         A conclusão mais óbvia é de que toda morte é estúpida, mas uma vez chegada a sua hora não adiarás e providencialmente morrerás como quem não podia mais viver no mundo.
         É uma explicação que não explica nada e eu sei disso, mas mesmo depois de morrer eu não tenho outra. Quem acredita que na morte contemplamos a clarividência de toda a grande verdade mística que habita o universo inteiro, está mentindo para si mesmo, isto é, esse que assim pensa é apenas um homem vivo que faz filosofia imaginária.         Eu poderia ainda estar vivo, mas ainda assim não teria importância nenhuma se eu estivesse e morresse agora. A vida extinguiu-se-me e eu morri é o que posso dizer. Foi o calor quem me matou porque antes de morrer senti muito calor e meu corpo todo ficou lânguido e minha consciência se apagou para sempre.
         Parece que fiz esforço pra voltar. Num brevíssimo segundo ainda cri que poderia abrir os olhos, achar voz humana e gritar, acreditei mesmo que estava sonhando e que o líquido espesso e quente que escorria pelas minhas pernas era a água dos sonhos. Nunca mais acordei e nunca cheguei a voltar para a sala, toda a consciência esvaiu-se-me para sempre.
         Depois disso o que sei não são lembranças minhas. Um morto não tem consciência própria. Essa atividade do pensar não existe para quem como eu está morto. Tudo isso são ilusões dos filósofos, devaneios dos teólogos. Eu tive que aprender isto.
         No começo agente acha que é dono de uma razão, que a consciência é um campo vasto e clarividente. Primeiro vem à sensação única de que estamos às portas da totalidade da percepção e que a verdade sufocante finalmente ilumina o universo inteiro, mas logo o lodo e a lama se impõem e estamos afundando.
         Esse não é o naufrágio nos mares de água límpida, não é também o soçobrar de um navio batido pela borrasca tempestuosa de ventos e trovoadas. Tudo acontece com a cessação completa do concreto ato de estar num lugar. Não estamos mais em lugar nenhum e o que era material e certo para a consciência e possível até para as mãos, torna-se fluído, impalpável e logo ponto impróprio onde apoiar o pensamento para reter a existência.
         Cada coisa que antes existia tão naturalmente e sem nenhum empecilho fora de nossa mente, para de existir na nossa mente e de repente não existe mais em ponto nenhum das galáxias. Mesmo o maior esforço da razão para conceber essas existências que impusessem ao mundo minha própria existência não alcançou sucesso. Eu estava morto e não tinha mais propriedade material neste mundo.
     Então o brevíssimo raio que cortou as estrelas apaga-se e estamos presos na treva imensa que se abate sobre as muitas camadas dessa noite eterna. Precisei me acostumar com isto. De repente o que havia era só o infinito, uma eternidade que jungia todo o meu não-ser. Eu não existia, mas tinha a sensação de que isso não era verdade. Que eu estava dormindo e tinha sonhos perturbados.
         Mas eu sabia que estava morto e que não havia mais nenhuma esperança para mim. Então tratei logo de me conformar com a minha novíssima condição não existencial. Precisei me habituar a minha nova natureza. Eu não era pássaro, eu não era pedra, sabia que tinha morrido, esses eram pensamentos claros em meus ossos, esqueci de dizer que um homem morto pensa principalmente com os ossos.
         Eu tinha morrido e conhecia os rituais da morte. Primeiro veio à constatação muito evidente de que eu não vivia mais. Eu vivera e tinha morrido com setenta e um anos, fora uma longa vida para quem como todos os homens, nascera pra morrer. Não importa como eu tinha vivido, importa como estando morto tive de me acostumar a esta indubitável verdade do não-ser.
         Vestiram-me morto, cobriram-me de flores, puseram-se no caixão. Vi para cá muito paramentado. Coisa muito ineficaz, eu poderia ter vindo nu que o resultado final teria sido o mesmo. Como um homem morto eu teria que permanecer preso ao chão onde me sepultaram, não tinha como fugir. Então nem me mexi, onde me puderam eu fiquei. Metros de terra abaixo, o solo inteiro sobre mim pesando sobre o frágil tampo de madeira do caixão.
         Aí a natureza fez o seu trabalho específico.
         Primeiro as flores que me puseram murcharam e finalmente secaram. Eu não seria um morto incorruptível, a terra quente do Socorro estava sobre mim e eu já sentia todos os vermes que eu trouxera da vida fermentando dentro das minhas entranhas, logo eles estourariam meu ventre e me roeriam por fora.
         Transformariam com seu diário trabalho de decomposição meu corpo numa pasta de carne apodrecida em líquidos nefastos e finalmente em bom repasto para suas feéricas mandíbulas.
         Fui consumido vorazmente. Isso absolutamente não me constrangeu. O que me inquietou no começo foi o fedor que exalei enquanto os vermes me comiam. Eu não queria feder tanto. Mas fedi como um cão atropelado. Felizmente fedi sozinho, não houve testemunhas dessa minha grosseria à humanidade.
         Antes de uma semana eu já estava acostumado a feder e absolutamente não impus resistência aos grandes operários das ruínas. Então quando eles terminaram seu trabalho prepararam-se para sair, mas como tinham vindo comigo para aquela longuíssima viagem não havia igualmente saída para eles. Eu não precisava de alimento, pois um morto se consome, mas meus ilustres companheiros de última jornada eram vorazes e sem alimento foram perecendo.
         Morreram aos enxames e aqueles que morriam logo eram comidos pelos que procuravam resistir, mas estes também não resistiram ao último assalto da fome e enfim também morreram e quando não havia mais nenhum verme que me roesse foi então que me senti absolutamente sozinho. Agora o que eu era? Apenas ossos no fundo do caixão envoltos nos trapos gordurosos que fediam.
         Acostumar-se a solidão da morte foi o que precisei fazer em seguida. Outros mortos haviam sido sepultados em outras covas pelo cemitério, mas uma coisa que logo compreendi quando morri é que a solidão do morto é absoluta e impenetrável! 

         Vivos andarão sobre a terra do cemitério, mas para o morto isto se revelará inútil. Outros mortos habitarão a mesma sepultura que ele, mas nenhum saberá da proximidade do outro. Os dois estarão completamente sozinhos, nenhuma voz humana chegará até o fundo da sua cova. Também não há diálogo dos mortos, nós que estamos mortos somos constrangidos ao interminável solilóquio com os nossos próprios ossos. Toda uma não existência profunda, irracional e amorfa é o que temos quando estamos morremos.
         As noites não se sucedem e os dias não vêm após a sucessão de noites. São tantas camadas de noites e trevas que mesmo se pudéssemos revolvê-las com as mãos não chegaríamos nunca a encontrar uma fenda por onde vislumbrar uma fresta de fraca luz. O silêncio é tão profundo, tão profundo e espesso que comprime nossos ossos e esmaga a tampa do ataúde em que nos conduziram ao cemitério. Aqui nem o som da nossa própria voz seria audível. Nem mesmo os pensamentos se os tivéssemos por cá seriam ouvidos.
         Assim, como não temos consciência parece que estamos rodando dentro de um velocíssimo redemoinho sem vento cujo espaço faltasse. Isso, para o morto não existe o espaço, não existe o tempo e suas mãos estão postas, mas não foi ele que as pôs assim, seus olhos secaram ou foram comidos. A morte é assim um longo desespero, quem está aqui nada é, e como não é e não existe como idealidade nem tampouco com um nome específico. O morto não tem nome. Quem o chamaria pelo nome? Abate-se sobre nossa não existência substancial uma primordial e nefanda eternidade do nada.
         Tudo plano, nada convexo ou côncavo, nenhuma gradação, apenas a impalpabilidade de não existir, de metafisicamente não-ser, de estar nulo, completamente sucumbido a imaterialidade absoluta, a totalidade infinita da plenitude do vazio e a certeza última e inequívoca de que estamos sempre caindo, mas não chegaremos nunca a parar de cair, porque não havendo espaço impossível saber se estamos caindo para baixo ou sendo arremessados para o alto, porque sem o tempo não podemos contar o intervalo da queda ou do arremesso, conforme for caso.
         Quando morremos nos convertemos na própria morte, somos isto, somos precisamente isto, a morte. Assim quando falo da morte, falo de mim mesmo. Deste lado de cá do não-ser, e assim eu que estou completamente morto e nada sou, que infinitamente nada mais serei, falo do lugar onde nenhum sofrimento atroz ou embriagadora felicidade nos alcançará!

         Carlos Souza