A
morte eterna
EU
NÃO ACREDITAVA que realmente fosse verdade, quando agente pensa e descobre que
temos medo procuramos logo inventar uma forma de não acreditar, mas também
inventamos uma maneira de acreditar que nos ajude a superar o medo daquilo que
nos faz tremer e perder o controle.
Por
isso eu realmente me recusei a acreditar que fosse verdade, mas hoje, tanto
tempo depois que morri, não tenho motivos para não acreditar nesse fato tão
evidente e claro. Eu seria bem mais do que um tolo se continuasse pensando na
morte como um vivo pensa. Para mim mesmo hoje, parece bem absurdo que um homem
que está vivo fique pensando na morte.
Essa
tarefa é unicamente minha, um homem que morreu, porque naturalmente não cabe
aos que vivem concluir algo sobre a morte, eles absolutamente nada alcançarão,
ficarão muitas noites discutindo e gastarão muito papel descrevendo-a para
afinal concluir que a morte não é evidentemente a morte, ou que a morte é uma
espécie de metáfora, que chamarão de extinção da chama da vida.
Muitos
foram os sábios que já sucumbiram dentro desse vórtice, pesquisando a razão
última da morte. Nenhum, entretanto chegou a perdoá-la. Nem o venerável
Sócrates, nem o fescenino Epicuro. Quem a perdoaria? Nem o grande Aquiles a
perdoou e eu também não a perdoo. Porque não há nada mais inútil no mundo.
Nada. Nada. Nada. A morte é essa coisa tão gratuita e desnecessária que não
chegamos a acreditar que nós estamos definitivamente mortos quando já não
estamos mais vivos.
Mas
como disse, sou eu, um homem que morreu que vou fazer um relatório sobre a
morte, espero que as academias aproveitem meus dados e que os muitos homens
sábios façam o devido uso do que ora passo a fazer desde a eternidade da morte
onde agora jazo preso.
Não
tem nenhum sabor de novidade esse meu relato, dirão os críticos, já outros
mortos também o fizeram, o ilustre Brás Cubas abriu um sério precedente, antes
dele também houve mortos que falaram da morte e também, como eram mortos
inconformados falaram principalmente da vida que tiveram e precisaram largar.
Eu
não falarei da minha vida feliz, falarei da minha morte eterna. Falarei mesmo
da morte superior, aquela que acontece quando não se é mais coisa nenhuma. Que
é um morto senão a própria morte? Vou propor desde onde estou no fundo da minha
sepultura, onde já fui roído pelos vermes, já apodreci e já fedi e finalmente
fiz-me apenas ossos, feixe de ossos calcinados sob a terra, alguns dados
referentes a essa matéria estranha a qualquer homem vivo, a morte eterna. Dados
precisos é fato, pois que se trata de coisa papa fina, experiência real,
conhecimento empírico.
Acho
que eu morri logo após o almoço. Não é que não me lembre como eu morri, é que
as circunstâncias da morte é coisa que agrada mais aos vivos do que a pessoa
que está morta. Como não é coisa que se possa voltar atrás não acho que eu deva
ficar pensando nessa circunstância da minha hora extrema.
Só
sei que eu estava vivo depois que terminei de almoçar, também sei que estava
vivo quando me sentei na sala diante da janela olhando pra rua. Fazia calor
porque era de tarde e era uma tarde quente. Ainda lembro que era setembro, pois
havia no horizonte uma copa amarela de ipê florido.
Era
de tarde porque me lembro que tinha almoçado e fazia calor, pois nem mesmo os
cães estavam na rua. Quer dizer os cães não tinham desaparecido, mas fazia
tanto calor que estavam retirados sob a sombra das platibandas ou dos fícus da rua.
Mas talvez
fosse setembro, repito que isto não é importante. O tempo cessa completamente
quando agente morre. Nenhum morto precisa saber quanto tempo se passou desde a
sua a morte por que quando estamos mortos estamos presos nessa coisa
desesperadora que é a totalidade do infinito. Os vivos, esses se surpreenderam
de que eu houvesse morrido tão de súbito! Houve os que afirmaram que tinha chegado
minha hora, eram os que não estavam muito longe da verdade, posto que a verdade
também não seja precisamente esta.
Não
chegamos mesmo a atinar exatamente porque é que morremos. Mesmo agora que estou
morto, posso concluir com certeza de que minha morte não foi programada, apenas
morri naquela tarde porque tinha chegado minha hora. Mas creia que se eu
tivesse morrido somente durante a noite ou ainda tivesse vivido muitos anos,
ainda assim só teria morrido porque enfim minha hora chegara.
A
conclusão mais óbvia é de que toda morte é estúpida, mas uma vez chegada a sua
hora não adiarás e providencialmente morrerás como quem não podia mais viver no
mundo.
É
uma explicação que não explica nada e eu sei disso, mas mesmo depois de morrer eu
não tenho outra. Quem acredita que na morte contemplamos a clarividência de
toda a grande verdade mística que habita o universo inteiro, está mentindo para
si mesmo, isto é, esse que assim pensa é apenas um homem vivo que faz filosofia
imaginária. Eu poderia ainda estar
vivo, mas ainda assim não teria importância nenhuma se eu estivesse e morresse
agora. A vida extinguiu-se-me e eu morri é o que posso dizer. Foi o calor quem
me matou porque antes de morrer senti muito calor e meu corpo todo ficou
lânguido e minha consciência se apagou para sempre.
Parece
que fiz esforço pra voltar. Num brevíssimo segundo ainda cri que poderia abrir
os olhos, achar voz humana e gritar, acreditei mesmo que estava sonhando e que
o líquido espesso e quente que escorria pelas minhas pernas era a água dos
sonhos. Nunca mais acordei e nunca cheguei a voltar para a sala, toda a consciência
esvaiu-se-me para sempre.
Depois
disso o que sei não são lembranças minhas. Um morto não tem consciência
própria. Essa atividade do pensar não existe para quem como eu está morto. Tudo
isso são ilusões dos filósofos, devaneios dos teólogos. Eu tive que aprender
isto.
No
começo agente acha que é dono de uma razão, que a consciência é um campo vasto
e clarividente. Primeiro vem à sensação única de que estamos às portas da
totalidade da percepção e que a verdade sufocante finalmente ilumina o universo
inteiro, mas logo o lodo e a lama se impõem e estamos afundando.
Esse
não é o naufrágio nos mares de água límpida, não é também o soçobrar de um navio
batido pela borrasca tempestuosa de ventos e trovoadas. Tudo acontece com a
cessação completa do concreto ato de estar num lugar. Não estamos mais em lugar
nenhum e o que era material e certo para a consciência e possível até para as
mãos, torna-se fluído, impalpável e logo ponto impróprio onde apoiar o
pensamento para reter a existência.
Cada
coisa que antes existia tão naturalmente e sem nenhum empecilho fora de nossa
mente, para de existir na nossa mente e de repente não existe mais em ponto
nenhum das galáxias. Mesmo o maior esforço da razão para conceber essas
existências que impusessem ao mundo minha própria existência não alcançou
sucesso. Eu estava morto e não tinha mais propriedade material neste mundo.
Então
o brevíssimo raio que cortou as estrelas apaga-se e estamos presos na treva
imensa que se abate sobre as muitas camadas dessa noite eterna. Precisei me
acostumar com isto. De repente o que havia era só o infinito, uma eternidade
que jungia todo o meu não-ser. Eu não existia, mas tinha a sensação de que isso
não era verdade. Que eu estava dormindo e tinha sonhos perturbados.
Mas
eu sabia que estava morto e que não havia mais nenhuma esperança para mim.
Então tratei logo de me conformar com a minha novíssima condição não existencial.
Precisei me habituar a minha nova natureza. Eu não era pássaro, eu não era
pedra, sabia que tinha morrido, esses eram pensamentos claros em meus ossos,
esqueci de dizer que um homem morto pensa principalmente com os ossos.
Eu
tinha morrido e conhecia os rituais da morte. Primeiro veio à constatação muito
evidente de que eu não vivia mais. Eu vivera e tinha morrido com setenta e um
anos, fora uma longa vida para quem como todos os homens, nascera pra morrer.
Não importa como eu tinha vivido, importa como estando morto tive de me
acostumar a esta indubitável verdade do não-ser.
Vestiram-me
morto, cobriram-me de flores, puseram-se no caixão. Vi para cá muito
paramentado. Coisa muito ineficaz, eu poderia ter vindo nu que o resultado
final teria sido o mesmo. Como um homem morto eu teria que permanecer preso ao
chão onde me sepultaram, não tinha como fugir. Então nem me mexi, onde me
puderam eu fiquei. Metros de terra abaixo, o solo inteiro sobre mim pesando
sobre o frágil tampo de madeira do caixão.
Aí a
natureza fez o seu trabalho específico.
Primeiro
as flores que me puseram murcharam e finalmente secaram. Eu não seria um morto
incorruptível, a terra quente do Socorro estava sobre mim e eu já sentia todos
os vermes que eu trouxera da vida fermentando dentro das minhas entranhas, logo
eles estourariam meu ventre e me roeriam por fora.
Transformariam
com seu diário trabalho de decomposição meu corpo numa pasta de carne
apodrecida em líquidos nefastos e finalmente em bom repasto para suas feéricas
mandíbulas.
Fui
consumido vorazmente. Isso absolutamente não me constrangeu. O que me inquietou
no começo foi o fedor que exalei enquanto os vermes me comiam. Eu não queria
feder tanto. Mas fedi como um cão atropelado. Felizmente fedi sozinho, não
houve testemunhas dessa minha grosseria à humanidade.
Antes
de uma semana eu já estava acostumado a feder e absolutamente não impus
resistência aos grandes operários das ruínas. Então quando eles terminaram seu
trabalho prepararam-se para sair, mas como tinham vindo comigo para aquela
longuíssima viagem não havia igualmente saída para eles. Eu não precisava de
alimento, pois um morto se consome, mas meus ilustres companheiros de última
jornada eram vorazes e sem alimento foram perecendo.
Morreram
aos enxames e aqueles que morriam logo eram comidos pelos que procuravam
resistir, mas estes também não resistiram ao último assalto da fome e enfim
também morreram e quando não havia mais nenhum verme que me roesse foi então
que me senti absolutamente sozinho. Agora o que eu era? Apenas ossos no fundo
do caixão envoltos nos trapos gordurosos que fediam.
Acostumar-se
a solidão da morte foi o que precisei fazer em seguida. Outros mortos haviam
sido sepultados em outras covas pelo cemitério, mas uma coisa que logo
compreendi quando morri é que a solidão do morto é absoluta e impenetrável!
Vivos
andarão sobre a terra do cemitério, mas para o morto isto se revelará inútil. Outros
mortos habitarão a mesma sepultura que ele, mas nenhum saberá da proximidade do
outro. Os dois estarão completamente sozinhos, nenhuma voz humana chegará até o
fundo da sua cova. Também não há diálogo dos mortos, nós que estamos mortos
somos constrangidos ao interminável solilóquio com os nossos próprios ossos.
Toda uma não existência profunda, irracional e amorfa é o que temos quando
estamos morremos.
As
noites não se sucedem e os dias não vêm após a sucessão de noites. São tantas
camadas de noites e trevas que mesmo se pudéssemos revolvê-las com as mãos não
chegaríamos nunca a encontrar uma fenda por onde vislumbrar uma fresta de fraca
luz. O silêncio é tão profundo, tão profundo e espesso que comprime nossos
ossos e esmaga a tampa do ataúde em que nos conduziram ao cemitério. Aqui nem o
som da nossa própria voz seria audível. Nem mesmo os pensamentos se os
tivéssemos por cá seriam ouvidos.
Assim,
como não temos consciência parece que estamos rodando dentro de um velocíssimo
redemoinho sem vento cujo espaço faltasse. Isso, para o morto não existe o
espaço, não existe o tempo e suas mãos estão postas, mas não foi ele que as pôs
assim, seus olhos secaram ou foram comidos. A morte é assim um longo desespero,
quem está aqui nada é, e como não é e não existe como idealidade nem tampouco
com um nome específico. O morto não tem nome. Quem o chamaria pelo nome?
Abate-se sobre nossa não existência substancial uma primordial e nefanda
eternidade do nada.
Tudo
plano, nada convexo ou côncavo, nenhuma gradação, apenas a impalpabilidade de
não existir, de metafisicamente não-ser, de estar nulo, completamente sucumbido
a imaterialidade absoluta, a totalidade infinita da plenitude do vazio e a
certeza última e inequívoca de que estamos sempre caindo, mas não chegaremos
nunca a parar de cair, porque não havendo espaço impossível saber se estamos
caindo para baixo ou sendo arremessados para o alto, porque sem o tempo não
podemos contar o intervalo da queda ou do arremesso, conforme for caso.
Quando
morremos nos convertemos na própria morte, somos isto, somos precisamente isto,
a morte. Assim quando falo da morte, falo de mim mesmo. Deste lado de cá do
não-ser, e assim eu que estou completamente morto e nada sou, que infinitamente
nada mais serei, falo do lugar onde nenhum sofrimento atroz ou embriagadora
felicidade nos alcançará!
Carlos Souza