Infância
Como a noite tinha começado lá fora? Para conhecer esse mistério cujo corpo duro caía sobre ele, André curvou-se para o chão. Com as mãos ele não podia sentir essa coisa totalitária que chegava assim mansa, assim fria e se estendia parada sobre o mundo. Ele conhecia outras coisas frias, mas eram sempre seres que não ficavam parados, eram seres que em algum momento se revelavam vivos e cuja pele mesmo assim tão escura era ainda viscosa e as mãos pegavam. E a noite era um relógio sufocando-se e respirando o ar soprado. Com as duas mãos André procurou pegar um pouco da treva. Mas ainda não havia trevas muito espessas, aquela treva grossa e geral que vinha chegando desde o rio até na frente da casa. André pensou no pânico dos peixes ouvindo escurecer sob a transparência da água, quando as galinhas pressentiam a noite, entravam em pânico primeiro e tinham que parar de comer bichinhos na terra e minhocas no quintal, e para os peixes que estavam sempre molhados? A noite não entrava no rio então os peixes não sabiam nada sobre a noite. André praticamente tinha pena dos peixes porque nunca iam parar de brincar e assim as brincadeiras se gastavam mais. Ele abriu as mãos num gesto curto, espalmou-as sobre a noite, curvou-se mais, ainda via seus pés, eram dois pés pretos, negrume humano. André afastou as pernas, as mãos acariciaram o dorso da terra, a terra era crespa e morna e lá dentro da terra moravam os bichinhos que as galinhas comiam no quintal. Ele agachou-se, havia tranquilidade e força na terra. Lá em baixo ele sabia que as pedras estavam crescendo e depois quando não houvesse mais limites para elas lá em baixo elas subiriam pra fora e ficariam morando no chão. André procurou uma pedra morando no terreiro, mas deparou-se com as camadas mais densas da noite. As sombras que tinham começando lá no cerro tinham descido para o rio e tinham chegado na frente da casa. Mas ele só tinha deixado de olhar para o céu um instante de olhar pra o chão e procurar uma pedra ou besouro caminhando no terreiro. Aí quando voltou a piscar apareceu à primeira estrela. Era uma estrela luzindo, começando a boiar e brilhando calma e fria. André passou a mão na terra outra vez. Dalí saía seu sangue, seus ossos, seus cabelos, os ovos das galinhas também saíam da terra por um processo de vir existindo em cada coisa que ia ficando para trás enquanto outras se sucediam nelas para diante. E ele se esforçava pra compreender como primeiro havia a terra e as minhocas, depois a terra abraçava a semente e a semente que morria era depois uma planta, e a planta crescia e vinham as flores e das flores aparecia uma fruta e a fruta ele comia e quando ele comia a fruta vivia nele e ele usava essa vida da fruta para viver depois da fruta comida e caminhar no mundo onde havia peixes, galinhas e sapos. As galinhas comiam as minhocas que nasciam na terra e da vida das minhocas as galinhas faziam um ovo e o ovo era uma nova galinha crescendo presa dentro de uma casa branca. Então ele ria porque quando pensava assim se revelava pra ele um mistério que nem ninguém compreendia – primeiro são as minhocas e as galinhas é quem comem as minhocas e aí as galinhas fabricam o ovo com a pequena vida das minhocas comidas. Os sapos não tinham mistério, ou pelo menos o segredo dos sapos não era como o dos peixes. Ele compreendia os sapos porque uma vez tinha rolado uma pedra e de dentro da pedra saiu um sapo. Então ele se disse, os sapos crescem dentro das pedras e as pedras vêm de debaixo da terra e não pode existir sapos sem as pedras. Mas os peixes podiam viver sem as pedras porque eles são lisos e as pedras também. Os sapos não são lisos. E André parou pra ouvir. E ouvindo e ele soube que não tinha visto uma pedra no terreiro, tinha visto uma forma de pedra, mas a pedra que ele tinha visto era uma pele, e era uma pele que a noite parecia uma pedra, mas não era uma pedra. Era um sapo que ele tinha visto. Por isso tinha pensando num sapo antes. Bem que Nazinha pegava num sapo com a mão. Ele também pegava, mas não podia ficar com ele porque enfim havia a mãe. Então o sapo vinha saindo ou vinha entrando na noite? Um sapo tinha muitas camadas de vidas e isto era bom para o sapo, pois era o único ser que André conhecia que dormia nas pedras, nadava no rio, se banhava na chuva, se escondia no brejo e cavava na terra. Nunca soube como um sapo entra para viver em baixo da terra. Mas ele só soube que sapo dorme enterrado quando cavou lá no molhado do quintal pra achar minhocas pra pescar e encontrou um sapo dormindo de olhos fechados sem querer acordar. De tal modo achou que aquilo era misterioso que cobriu de terra outra vez o sapo e não foi pescar naquele dia. Esse podia ser um mistério dos sapos, mas quando a gente pega um sapo na mão e ver ele quieto e se mijando todo ele fica sem mistério algum. Chegou então pra perto do sapo, eles eram dois seres vagos e úmidos. André falou, você vem no caminho errado o rio é pra lá. Sapo não sabe entender quando gente fala, mas gente entende quando sapo fala, grrrrrrrrrrrrrrruuuuuuuuuuu, grrrrrrrrrrrrrrruuuuuuuuuuu, agora ele entendia, não André, o sapo quem entendia André. Estendeu a mão para tocar o dorso do sapo, na ponta dos dedos já se antecedia a ardência do calor do sapo pulsando em suas mãos. Mas subitamente suspendeu o gesto porque seu coração disparou louco de fúria. Arrebatara-o tão subitamente aquilo que o sapo viera procurar e que André não tinha visto antes porque ainda olhara tudo a sua volta. O que era que mais alvoroçava a noite? Pois lá estava ela, silenciosa, crua, branca, blândula. André assustou-se, não adivinhara a sua presença. Era leitosa e crescia mais, mais, mais. Seu coração sufocava-se de terror, André era um homem pequeno, baixote, estava crescendo, mas não tinha crescido ainda para suportar aquela dor, mas a lua o ameaçava, intumescia suas entranhas, e ele tremia porque tinha medo, e tinha medo porque sempre vira a lua já grande no céu. Quando ele conheceu a lua foi a mãe quem disse, olha lá a lua luar! Era a primeira vez que a lua ardia-lhe no estômago que ela o sufocava no peito. Estava parado e ele que nunca fora assim quieto, ele que sempre se impusera como um menino cuja vida era vivida dentro de uma coisa movendo-se, dentro de outra coisa caminhando, dentro de outro ser correndo, e nadando, e perseguindo o potro, o carneiro e subindo na mangueira. Agora ele era uma pessoa parada olhando, uma pessoa parada num caminho escuro numa noite onde ninguém passava pela estrada. O que ele sentia eriçava os seus pelos, esfriava o seu corpo, brilhava sobre seu cobre pardacento, brilhava também sobre a água e dentro da água e areia lá onde os peixes dormiam. Mas como ele pensando antes ele não sabia dizer se os peixes dormiam, mas a lua entrava na água porque uma vez ele viu a lua caminhando dentro do rio. O luar deixava-o remoto e ele agora era um animal oco. Então ele soube que a lua percutia todos os seres. Que o luar percutia também nas asas dos seres. Nesse momento que a lua começa a ficar branca no céu tem passarinho que dorme pra acordar quando o sol chegar e ave que acorda pra dormir quando a lua se apagar. As galinhas se assustam com a luz próspera da lua, as galinhas eram sempre as primeiras que se atarantavam sem a compreensão das coisas. Elas olhavam de lado e com cada olho que elas tinham no lado esquerdo e direito queriam saber o que era, mas faziam um escândalo. Gente também não compreendia, mas ficava calada esperando que aparecesse outra gente para fazer o escândalo pros outros ouvirem que não se sabia o que era aquilo, mas que não era possível aceitar uma coisa cuja compreensão não se entregava. Então André sentiu que alguma coisa nele se quebrava, cruzou os braços sobre o tronco para protegê-la, o vento passou ventando em torno dele e André viu a raiz mais grossa da figueira avançando sobre a terra e entrando no chão com as suas unhas mais grossas, mas a figueira era forte e não se rendia e lutava com o vento, e o vento trazia o cheiro das flores de murta do quintal e André sentia-se assim tão forte e ilimitado, pois suas mãos e seus pés cresciam, foi sentindo-se rijo, resistente ao vento, resistente como uma raiz dentro da terra. Se tinha quebrado dentro dele uma semente e agora ele sentia uma longa bolha de ar se avolumando e tomando-o. Descruzou os braços e apontou para a lua, ela o revelara, alguma coisa estava dentro dele e ainda podia crescer mais, algo que o faria viver depois, que o fortaleceria para caminhar e compreender não somente o que vinha acontecendo agora, e não somente quando ele brincava no quintal, mas algo que acontecesse quando ele não tivesse mais dentro dum quintal com galinhas, formigas e goiabas maduras. Era algo que aconteceria principalmente fora do ovo. Para não se perder nesta margem fez então uma poesia,
A lua chegou e eu vi a lua
A lua estava sem pressa
Mas eu encontrei uma raiz na terra.
André ouviu a avó atrás de si. Voltou-se para a porta da casa. Nazinha saía de dentro da casa, então André se lembrou da casa. André se lembrou que tinha jantado, se lembrou que a mãe tinha se sentado na cadeira da cozinha para amamentar e André tinha visto a teta da mãe, a teta da mãe era morena com um bico escuro. André se lembrou da irmã que mãe ia amamentar e aí ele saiu de dentro da casa. Não foi pro quintal que André saiu, ele não queria ir pro quintal porque o pai caminhava lá no quintal. Então André olhou o fogo aceso e como ainda tinha brasas no fogo ele pensou que podia ir lá pra fora, ir pro terreiro, no terreiro tinha a figueira onde ele se ampararia. Mas como não se amparou logo na figueira veio à noite que o fez ficar pensando para além daquela realidade onde a mãe amamentava a irmã e o pai caminhava no quintal. Agora Nazinha quem tinha chegado. Mas a avó não tinha visto ainda o menino coberto pela lua e a avó tinha parado no meio do terreiro olhando a lua. Nazinha pitava cigarro de palha, o menino viu Nazinha olhando pra lua e pitando um cigarro de palha de milho. Então ele caminhou de volta para a calçada pelo canto da parede da casa, sentou-se no parapeito e dali observou a avó. O vento ventava no vestido de ramagens de Nazinha. As flores do vestido se curvavam e agora o vento era mais afoito e mais violento. Nazinha muito cor da terra, magrinha e dura. O vento não venceria Nazinha. As histórias que Nazinha sabia contar. Então o menino pensa que quando a avó acabar o cigarro ela vai se sentar e contar uma história e a história que a avó contar será uma em que ele estará dentro. André sempre entra nas histórias que a avó sabe contar. Ele, o menino que ficou sendo um Cão-de-espeto. Depois foi que se esqueceu daquela história e não teve mais medo dela. A avó disse que era um exemplo, quando ele se lembra desse exemplo fica um menino bom enquanto não o esquece. Vento furioso.
“Hoje tá uma ventania”. A avó falou.
“Força da lua”. O pai disse.
O pai tinha dito força da lua e André não tinha descoberto o pai ainda ali. A lua tinha força então. A lua era fria, mas tinha força. A luz do luar não era como a luz do sol que urticava na pele. A lua iluminava macia e branda. A lua era como braços abrindo-se para abraçar. Súbito um pio e voo rasante. O menino encolheu-se, o cão não olhou nem para a ave nem para a lua. A avó caminhou pra calçada, a irmã chorava lá dentro da casa, a mãe ninava a irmã que já tinha sugado toda a teta da mãe. André pensou no gosto do leite claro e oleoso da teta da mãe. Não devia de ser bom não, mas a irmã gostava e parava de chorar quando mamava na teta da mãe. Nazinha sentou-se no banco de pau. O menino veio, sentou-se ao lado. André sentiu o cheiro do queijo guardado, ele o conhecia como o cheiro da avó. Chegou-se ao corpo dela, pressentiu a tirania de afetos da avozinha, o vento encrespava-se na folhagem da figueira e a coruja voltou a piar. As aves que voam de noite não gostam da lua porque lhes revela o voo, mas tinha bicho que preferia a lua de noite ao escuro de breu. Ele sabia que lá longe no cerro moravam os bichos que ele não perdoava, a mãe-da-lua, o pai-da-mata e o bacurau. Nazinha quem sabia deles. Do curiango Nazinha dizia, vem cantar na entrada do pasto e no estrume do curral. Sapo-boi também canta, mas fica no brejo cantando chamando os peixes pra fora d’água. Sapo-boi não é ave é sapo. A mãe-da-lua nunca chega pra perto da casa, mas o catar dela chegava e o menino tremia dentro dele pensando que eram a mãe-da-lua e o pai-da-mata que mandavam nas coisas de noite. Depois tinha o jaraguá que era um bicho que ele sabia que não podia existir, mas que Nazinha contava que existia. Deitou-se no regaço da avó, o calor dela o envolveu, chegou-se mais ao ventre para ficar mais tranquilo, dali podia ver a lua, a figueira se retorcendo e o vento que lutava com ela. Podia ouvir também a voz de Nazinha que começava a contar.
“Diz que era dois irmão que pai e mãe queria matar, nome do menino João, da menina era Maria e o pai mais a mãe resolveram.”
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